quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011
Recognize
segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011
Eduarda Chiote: Órgãos Epistolares
A estreia de Eduarda Chiote deu-se na poesia, em 1975, com o livro "Esquemas", e foi prosseguindo serenamente pela poesia, com "Estilhaços" (1979), "Refúgio em Vez de Câmara Mortuária" (1979), "Travelling" (1983), "Altas Voam Pombas" (1982), "Armando Alves e a Lâmpada de Aladino" (1984) e "A Preços de Ocasião" (1987). Depois deste livro, temos um hiato de sete anos, e parece-me indicado aqui mesmo fazer uma quebra na bibliografia de Eduarda Chiote. Quando regressa à poesia em "Branca Morte" (1994), encontramos uma poesia diferente, maturada, altamente filosófica e pródiga em imagens fortes. Por assim dizer, os primeiros livros formavam um conjunto, mas, a partir de "Branca Morte", um outro conjunto se inaugura. Prolonga-se então para "A Celebração do Pó" (2002), "Não Me Morras" (2003) e "O Meu Lugar à Mesa" (2006).
O que separa estes dois conjuntos é, a meu ver, uma postura, que inicialmente se apresenta mais fragmentária e fugaz, e depois de torna mais reflexiva, mais intensa e, de certa forma, mais emotiva. Mas algo une todos os livros: uma lucidez, um olhar cru e nunca resignado, capaz de questionar todas as coisas continuamente.
Se, numa fase inicial, particularmente em "Esquemas" encontramos frequentemente o poema curto, onde inclusivamente se nota alguma influência da Poesia Concreta, na sua atenção ao vazio e às suas possibilidades, gradualmente a poesia de Eduarda Chiote se torna mais extensa, sem nunca, no entanto, aceitar o puro enchimento de palavras sem importância.
Agora mesmo nos chega este "Órgãos Epistolares". Anunciado como um livro de fim de obra poética -será o último-, em todas as medidas ele se concentra em concluir todas as ideias.
Uma vez mais, como tem acontecido com todos os livros da autora, este livro tem uma ideia, uma espécie de narrativa que o orienta. Não se trata de uma narrativa como a de um romance ou de um conto, mas de uma narrativa que serve precisamente para orientar o discurso, mas nunca para o limitar. Por assim dizer, o poema serve-se da narrativa, e não o contrário. Esta estrutura tem feito parte de todos os livros de Eduarda Chiote, e serve de exemplo a organização de "Esquemas", em que cada capítulo começava com um poema em prosa, sendo que os poemas em verso seriam desenvolvimentos sobre fragmentos desse poema em prosa inicial.
"Órgãos Epistolares" é a história de uma mulher cancerosa, em fase terminal, que sente o corpo, órgão por órgão, desfazer-se, servindo esta deterioração como metáfora para a morte da escrita poética.
Este é, portanto, o ponto de partida para uma análise do mundo. Essa análise passa, evidentemente, pela literatura, mas também, e será essa uma das características mais surpreendentes, pela ciência, pela filosofia, pela psicologia e pela política, parecendo-me esta última uma das mais garridas ao longo de todos os poemas.
A ideia da morte enquanto metáfora aplicável a tudo o que compõe a vida estava já muito presente em livros passados, com particular pungência, na minha opinião, em "Branca Morte" e "O Meu Lugar à Mesa". E, se "Branca Morte" se centrava na questão da escolha, a escolha da morte (Observando os títulos: "Escolho Morte", "Escolho Branca Morte", "Escolho Morrer Criança", etc.), e "O Meu Lugar à Mesa" se centrava na morte das pessoas próximas, "Órgãos Epistolares" centra-se numa morte própria, que se estende ao que está à volta da mulher moribunda, uma morte prevista e lenta, que tem de mais penoso o apodrecimento interior.
O livro inaugura com a seguinte frase:
"Vem, disse a minha Alma
Escrevamos versos para o meu Corpo (porque somos um)"
(pag.7)
Esta é sem dúvida uma boa explicação para a génese de "Órgãos Epistolares". Podemos observar esta frase comparando-a um pouco com o título. Se os "órgãos" funcionam quer como "cadeias de transmissão" quer como elementos biológicos, "epistolares" designa precisamente a questão de um diálogo. Essa é uma componente importante deste livro, a questão do diálogo. Quer o diálogo explicado na epígrafe, entre o Corpo e a Alma, sendo que um morre e a outra se vai agarrando debilmente ao que lhe resta de vida; quer o diálogo entre várias pessoas, cuja escrita não raras vezes parece remeter-nos, deliberadamente, para a escrita de cartas; sendo que no poema "Um Poema Meramente Explicativo" encontramos isto expressamente frisado:
"Escrevemo-nos, eu e os meus órgãos"
(pag.34)
Este é, para mim, um livro desesperante. Incomoda, fere. Isso faz dele, desde logo, um excelente livro. A sua linguagem consegue ser forte sem, no entanto, ceder à facilidade de transformar os poemas em prantos desesperados cheios de sentimentos excessivos. Pelo contrário, este livro constrói-se com o pensamento, com a reflexão, e é através da inteligência extrema e extremamente crua com que se nos dirige que "Órgãos Epistolares" consegue atingir-nos com mais eficácia.
A primeira ideia é precisamente a de uma desistência forçada:
"Vontade de ter perdido a vontade,
(...)
Quero agora esquecer que há poemas com muitas receitas,
contas por pagar,
unhas que se esgotam
nos dedos; páginas separadas dos livros -são as contingências"
(pag.11)
penso que nestes versos, retirados do poema inaugural deste livro, se nota a dualidade que existe perante a desistência: é necessário desistir, ainda que esta mulher não queira desistir, pois não perdeu a vontade: tem vontade de a perder; quer esquecer, mas não esquece. É esta mesma dualidade, esta divisão, que encontraremos mais tarde, em "O Silêncio e o Grito":
"Uma parte de mim
grita
e a outra abusa do silêncio
e a parte que sabe das duas não distingue
uma
da outra."
(pag.17)
de facto, esta tonalidade marcará todos os poemas. Esta divisão, penso, poderá ir de encontro à minha ideia anterior, pois esta poesia está cheia dessa dualidade entre, em última análise, racionalidade e emotividade: uma abusa do silêncio, a outra grita; uma tem vontade de perder a vontade, a outra não consegue perder a vontade.
Parece-me que uma das preocupações deste livro é precisamente a de analisar as várias componentes do ser humano, os vários “eus” que o compõem, numa atitude quase cubista, mas sabendo, à partida, que a soma de todos os pontos de vista não dá o todo.
Assim sendo, não é de estranhar que encontremos aqui expressões como “à minha/ natureza biológica” (p.18), “a minha natureza/ consciente” (p.28), “A sua constante química” (p.32), “Ah! O social!” (p.32), “feroz/ amoralismo” (p.35), entre várias outras.
O diálogo com tudo isto é, efectivamente, um diálogo com a vida e morte, com a passagem. Essa ideia, parece-me, estava já presente no fragmento que acima citei de “Um Poema Meramente Explicativo”.
Se muitos destes “diálogos” acontecem dentro da própria pessoa, que questiona os seus órgãos, a sua doença, o seu lugar no mundo, a sua inteligência, os seus sentimentos ou a sua ética ou a sua moral, evidentemente uma narrativa como a deste livro tem que envolver também um diálogo com o exterior: com o mundo e com outras pessoas. É “o social” que encontramos em “Por Tragicidade e Perfeição Entendo a Mesma Coisa” (pag.32).
Dou alguns exemplos:
“Você negou-se e fez-me entender
que a minha presença lhe faria mais mal
que bem,
e eu entendi que tem de ser segundo o seu código,
o seu programa –que tenho de agir em conformidade
entre o que necessita e não com a textual invenção
da sua necessidade. Pobre de si alucinado de dor pela mulher
cancerosa!”
(pag.20)
“Vi-te rastejante e repulsiva, depois de uma cena
(de puro masoquismo),
implorares-me
por amor de Deus
não me deixes.
Se tu soubesses o quanto me foi constrangedora
a tua humilhação.”
(pag.42)
“A imposição de autenticidade que me exiges
à porta fechada leva-me a perder
toda a verdadeira alegria
que de tristeza te não
mente.”
(pag.44)
Importa referir que “Órgãos Epistolares” está dividido em três capítulos. Dos fragmentos acima citados, o primeiro pertence à primeira parte, sem título; o segundo e o terceiro pertencem à segunda parte, “Lodos e Dolos”. Interessa referir aqui esta divisão porque, afinal, é no segundo capítulo que se nota, penso, uma maior “resposta” dessas outras pessoas que mantêm um diálogo com a mulher cancerosa. Penso que os dois fragmentos do segundo capítulo demonstram bem como a doença e a morte lenta vão secando lentamente as relações; ainda que a mulher cancerosa tenha consciência disso, como vemos no primeiro fragmento. Uma vez mais, regresso à ideia da diferença entre razão e emoção, que apontei acima. Penso que a leitura destes três fragmentos mostra bem as diferenças entre uma e outra. Só a lucidez representa a força, a capacidade de sofrer dignamente. Como vemos, através de uma atitude de razão, a mulher cancerosa percebe a atitude que deve ter perante o homem que está “alucinado da [sua] dôr”; e quando tem uma atitude mais sentimental –“por amor de Deus/ não me deixes”, a reacção do outro é a pior; causa-lhe constrangimento.
No entanto, é preciso não esquecer que Eduarda Chiote tem o gosto da questão, do “colocar em causa”. E, perante a atitude racional, encontramos-lhe, mais à frente, esta pergunta:
“Porque utilizas uma floresta
de enganos
para glorificar a intransigência
perante o que supões serem hipocrisias, corrupções,
explorações: quem te deu o canónico poder do erro e da
verdade?”
(pag.58)
parece-me claro aquilo que une a racionalidade à emotividade: o facto de ambas serem verdades. Assim sendo, preferir uma em detrimento da outra é utilizar “uma floresta de enganos”. E é perante isto que encontramos, continuando o mesmo poema, uma justificação política para tal comportamento:
“-É grave a natureza das acusações
que fazes a uma cultura burguesa
com a qual pareces não compactuar, tenho de reconhecê-lo;
pois dela excluis os órgãos e os seus reflexos
precisos (e físicos).
Recusas benefícios que te podiam
ser concedidos por mérito; e não os aceitas por
desprezo. Na verdade, não te deixas atrair
pela confusão comprometedora
das ideias que apregoas.”
(pag.58)
há certamente um tom de acusação nestas palavras. Teria que haver. Como lemos no poema “Sermos Nós e Sós”, que me parece um dos melhores de todo o livro, “a minha poesia torna[-se] cada vez mais/ crua” (pag.42). E a única forma da poesia ser crua é precisamente despir-se de todos os artifícios e concentrar-se na procura de determinada verdade, o que implica, muitas vezes, nomear culpas e culpados. Isso acontece muito em “Órgãos Epistolares”. Muitas vezes, o culpado é a própria pessoa, mas também entendemos que, para todos os efeitos, não podemos condenar essa culpa, pois lemos, e com verdade, que o “que na vida de uma pessoa, acontece de mais/ trágico [é] a sua estrutura”. Assumindo esta estrutura como imutável, daí a sua tragédia, percebemos que perante muitas situações, não há nada a fazer, não há salvação.
A questão da escrita está presente ao longo de todo o livro. No entanto, é no terceiro capítulo, “O Que de Morte é Sério e Não Admite Ironia”, que se torna mais relevante: como é explicado na badana, a morte do corpo, corroído pelo cancro é propositadamente metáfora para o término da escrita poética de Eduarda Chiote; no entanto, a questão é directamente abordada com mais frequência neste capítulo.
O primeiro poema, “A Palavra, Tal como a Morte, é Química”, pode muito bem ser uma Arte Poética. Reproduzo o início:
“Preciso de um excelente material para escrever.
Ter ao lado um livro. Deixo correr o
olhar por uma frase. Ao acaso. Pode ser esta: “As indústrias
dos materiais de construção, de cerâmicas e de vidros
utilizam matérias-primas minerais: areia, argila e pedra.”
(…)
Tantas imagens! Será que saberei o significado
de uma só palavra? Argila, por exemplo? O que é argila?
Matéria-prima é igual a obra-prima? –Sou palavras, vejo palavras.
Copo. Secretária. Computador. Telefone.
A palavra é síntese. É química.
(…)
Produzo erros. Brinco com eles.
Ontologicamente.
(…)
Guardo então a palavra
para quando quiser insultar um escritor grunho; dir-lhe-ei és um alóbrogo
mas com afecto: muita ternura.
Vou ver o que significa argila
e ficarei a saber porque a minha natureza é tão frágil
que se conta através do quebrar de pele
de uma unha.”
(pag.72-75)
ler um poema destes escrito no último livro de uma autora que já conta uma dezena de livros publicados é muito refrescante. Aparte isso, penso que, a partir deste poema, podemos entender um pouco o processo de escrita de Eduarda Chiote: a procura de um tema, de uma narrativa, como acima disse, a necessidade de pensar poeticamente todas as coisas, até as mais prosaicas, como os materiais de construção, e a relação umbilical com a palavra que, por ser sintética e química é ainda uma forma de comunicação por excelência, de resto muito semelhante ao pensamento: da mesma maneira que a palavra “fogo” não queima, pensar em “fogo” também não queima –e assim a palavra se funde no pensamento.
Estando, se pensarmos bem, a palavra, dentro e fora da realidade, ela também permite a transfiguração. Também desse processo se serve a poesia de Eduarda Chiote, como podemos atentar neste fragmento:
“Um pescoço é um falo.
Hoje recebi um colar para
o meu. Rodear o pénis
por uma cintura de estrelas é um caso clínico.
Uma forma muito subtil de castrar o crânio
para evitar o confronto com os problemas que este
inventa; mas o problema
é que não há problema algum: mesmo decepado,
restam, na face, os olhos, a boca e o nariz –e na verdade há pessoas
que vêem pelo nariz e respiram pela
boca.”
(pag.82)
este poema é um bom exemplo de como a palavra e o pensamento podem transformar o real de maneira a que a palavra seja o caminho para evidenciar um pensamento. Ou seja: não estamos perante um processo surrealizante de transformar umas coisas noutras, mas sim perante um processo altamente filosófico que se desenvolve (E só se pode desenvolver.) na mais absoluta liberdade.
Um poema como este, “Nenhum Problema: Só Ironia”, serve também de exemplo para comprovar, uma vez mais, o sentido apuradíssimo de ironia na poesia de Eduarda Chiote. Repare-se que o título do capítulo renega precisamente a ironia, e, no entanto, grande parte dos seus poemas, além do cariz sarcástico que já têm, levam inclusivamente a palavra “ironia” nos títulos.
E é portanto num misto de ironia e de tristeza, cambiantes muito bem equilibradas, que Eduarda Chiote se despede. Por isso, tanto lemos em “A Grande Ironia dos órgãos”:
“Nesta poética quarta idade, somos ainda a alma imaginária
de uma pedra especiosa, cujo único fim parece ser
o de não nos conformarmos com a –eternamente –infantil
leveza criativa.”
(pag.87)
como lemos, depois, em “Na Mais Profunda Escuridão”:
“Estás a meu lado vendo-me desnecessariamente
sofrer, tu. Tu que possuis a cápsula de cianeto e me prometeste ajuda
negas-te, neste momento, a testemunhar
a minha agonia.
Ironia maior
na medida em que sabes que não há (para mim) qualquer
recurso: que escrever perdeu todo o sentido.
Duro, muito duro.”
(pag. 89)
e, mais ainda, em “Onde Todas as Identidades se Confundem”:
“Esclareço e de forma amável
que se podem fazer versos sem órgãos, sangue,
sexo: há (sempre houve) perfumes sem flores
e santos sem altares.
No entanto. A partir do momento em que o desejo de vida
a não penetre, a poesia torna-se,
para mim, um embuste
insuportável.”
(pag.91)
o que me parece surpreendente nestes poemas é que eles confundem maravilhosamente inteligência com ironia. Mesmo nos mais tristes, como o segundo e o terceiro, nota-se uma espécie de riso cruel, que não é mais que um exercício cru de lucidez. Um dos propósitos deste livro era ser cru, e penso que poemas destes não deixam dúvidas quanto a isso. E, uma vez mais, se nota a vontade extrema de manter a dignidade, porque, apesar do sofrimento causado pela morte da escrita, a mulher recusa-se a continuá-la sem ter um propósito, sem que “o desejo de vida a penetre”.
Quanto ao terceiro fragmento, parece-me interessante fazer o contraponto entre ele e o último poema deste livro, “O Potenciar do Real”:
“Fica em silêncio. Escuta. Ouve o que te digo.
Não duro sempre. Não duro
sempre. Hoje, vi um morto. Constatei
caber dentro dele: o cancro (observei-o do caixão)
foi o seu melhor amigo: o único que sofreu
a mesma dor.”
(pag.100)
este poema, acima reproduzido na íntegra, parece-me ser de uma brutalidade impressionante. Se o compararmos com o fragmento da página 91 que acima citei, percebemos que esta poesia recusa ser um “perfume sem flores” ou um “santo sem altar”. No entanto, o poema final vem desenganar-nos: o fim da poesia não é necessariamente o silêncio, se esta mulher nos diz “Fica em silêncio. Escuta. Ouve o que te digo”. Poderíamos lançar-nos numa longa lista sobre o que vem depois do fim da escrita poética. Eu penso que a mais evidente sequela é sempre o perpetuar daquilo que se leu, os sentimentos que a poesia foi capaz de acordar em nós, os murros que nos deu e as feridas que nos deixou. Esmurrar e ferir é ainda a melhor maneira da poesia se tornar parte de nós.
Esquecendo a comparação com o outro poema, a ideia final deste vem, na verdade, alvoroçar tudo o que foi dito durante todo o livro. Fomos avisados, é certo, que aqui, os poemas “tal como os órgãos/ em cada estrofe,/ desorganizam-se a si próprios/ acusando uma decomposição (biológica)” (p.86).
Mas aqui, tudo vai mais longe. Somos levados a pensar, talvez por facilitismo, que a poesia seria um segundo corpo, uma espécie de escudo possível entre a mulher que morre e o cancro que a mata. No entanto, como vemos neste poema, a poesia não era o escudo, nem era um segundo corpo: a escrita era o próprio cancro, pois só a poesia “sofreu/ a mesma dôr”.
Poderá parecer que este livro de Eduarda Chiote não deixa esperança. Tenho-o dado a entender, e disse acima, claramente, que este livro incomoda (Ou, pelo menos, incomodou-me a mim.). No entanto, nem toda a esperança fica perdida.
A fechar o livro, Eduarda Chiote cita Sylvia Plath: “ nus parecem dizer:/ viemos até tão longe, chegámos ao fim.”
E, de facto, essa é a maior esperança deixada por este livro, e também a sua lição: a de que é necessário percorrer um caminho, para, chegando ao fim, podermos dizer que chegámos até tão longe.
Depois de um livro como “Órgãos Epistolares”, só tenho a lamentar que Eduarda Chiote não escreva mais poesia.
O Nome Lírico
hoje
é um nome.
Nem mesmo amanheceu
nem o sol
a evoca.
Uma palavra
palavra só
a ergue.
Como um nome
amanhece
clareia.
Não do sol
mas de quem
a nomeia.
Masters of Horror: We All Scream for Ice Cream (2x10)
Poema 1
Corpo Sobre Corpo (1)
Poema Sobre o Ciúme
Masters of Horror: Right to Die de Rob Schmidt (2x09)
Um poema
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
Em que espelho ficou perdida a minha face?
Um poema
Dia Cinzento
Um poema
Canta de novo esse convite, tantos anos passados,
de novo nas ruínas da rua do emprego
onde fiquei de te esperar.
Está deitado aqui o corpo que recorda, está deitado.
Os ornamentos de metal, a música portátil,
o tambor de uma criança na rua,
o risco amarelo da coberta.
O braço que descai debaixo do pescoço
o coração cujo ritmo decresce
os olhos em que dói a luz do candeeiro
os pés à procura da lã do cobertor
o esperma que seca sobre o peito
o sono entrecortado da respiração.
Trocas de luz errante, ervas sem nome
que me dizias serem feno grego, junça, melodia.
há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida
pensava eu... como seriam felizes as mulheres
à beira mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado
por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos... sem ninguém
e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentada à porta... dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua
assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão
(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no coração. mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)
um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade
domingo, 20 de fevereiro de 2011
Arte Poética
ou então com o simples facto
das rosas que daqui se vêem
entrarem no poema.
O que é então o poema?
um tecido de orifícios por onde entra o corpo
sentado à mesa e o modo
como as rosas me espreitam da janela?
Lá fora um jardineiro trabalha,
uma criança corre, uma gota de orvalho
acaba de evaporar-se e a humidade do ar
não entra no poema.
Amanhã estará murcha aquela rosa:
poderá escolher o epitáfio, a mão que a sepulte
e depois entrar num canteiro do poema,
enquanto um botão abre em verso livre
lá fora onde pulsa o rumor do dia.
O que são as rosas dentro e fora
do poema? Onde estou eu no verso em que
a criança se atirou ao chão cansada de correr?
E são horas do almoço do jardineiro!
Como se fosse indiferente a gota de orvalho
ter ou não entrado no poema!
sábado, 19 de fevereiro de 2011
Uma citação (de certa forma, até eu me surpreendi)
what are you gonna do?
Say what you want.
quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011
Epístola Para os Meus Medos
O coração suspende o seu hálito e os lábios tremem
sinto-vos, vindes ao rés da terra, como ventos baixos,
poisais no peitoril. Sois muito antigos e jovens,
da infância em que por vós chorava encostada a um rosto.
Que saudade eu tenho, ó escuridão no poço,
ó rastejar de víboras nos caniços, ó vespa
que, como eu, degustaste o figo úbere.
Depois, mundo maior foi a presença e a ausência,
a alegria e as dores de outros que não eu.
E um dia, no alto da catedral de Gaudí,
chorei de horror da Queda, como os caídos anjos.
terça-feira, 15 de fevereiro de 2011
Uma citação
Um poema
que já esqueceste o nome e os poemas.
Dir-me-ás
que não queres a loucura
dos sentidos, que tens medo
e foges na direcção do pântano
onde o brilho da lama
serve a exclusão.
Entre nós o mundo, outro amor,
a curva da tua nuca e esse olhar
de quem acorda lentamente. De mim
o corpo defendia-se do escuro enquanto
o tempo sepultava na cinza a nossa pele.
Um lençol de sombra sobre as pernas
no tumulto onde ardia o coração.
Molhar as mãos de lágrimas só reacende
a mágoa de viver depois de ter acontecido.
Importa lembrar o sucesso, o esplendor
do instinto que nos levou ao encontro.
Masters of Horror: Valerie on the Stairs de Mick Garris (2x08)
Difícil Poema de Amor
que se percorrem como um fio de prumo sem oscilação.
Ontem antes de ontem antes de amanhã antes de hoje antes deste número-tempo deste número-espaço uma boca feita de lábios alheios beijou.
Precipício aberto: ele nada revela que tu já não saibas.
Porque este contágio de precipícios foste tu que mo comunicaste maléfico como um pássaro sem bico.
Num silêncio breve vestiu-se a cidade. Muito bom-dia querido moribundo. Sozinho declaraste a terceira grande paz mundial quando abrindo os olhos me deste de comer cronometricamente às mil e tantas horas da manhã de hoje.
Deito-me cedo contigo o meu sono é leve para a liberdade acordas-me só de pensares nela. As casas e os bichos apoiam-se em ti. Não fujas não te mexas: vou fixar-te para sempre nessa posição.
Que há? Abrem-se fendas no ar que respiro vejo-lhe o fundo. Tens os olhos vasados. Qual de nós os dois "quero-Te" gritou?
Bebe-me espaçadamente encostada aos muros. Se és poeta que fazes tu? Comes crianças jogas ases sentado és uma estátua de pé a cauda de um cometa.
Mães entretanto vão parindo. Os filhos morrerão ainda? Entregas-te a cálculos. Amas-me demais.
Confesso: não sei se sou amada por ti.
Virás
quando houver uma fala indestrutível devolvida à boca dos mais vivos. Então
virás
vivo também. Sempre esperei ver-te ressuscitado. Desiludiste-me.
E iremos com o plural de nós nos leitos menores onde o riso, onde o leito do rio é um filho entre os dois. Que farei de teus braços de meus cabelos benignos que faremos?
Nasci-te da minha pele com algumas fêmeas te deitei por vezes. Conheces-me. Não me tens amor.
Só por grande angústia me condenas à morte se de mim te veio a cidade e os minúsculos objectos que já amaste ou que irás amar um dia espero.
Ah a cratera o abismo eléctrico!
Por isso o teu novo amor será comigo mais perigoso que este imaculado com mais visco de amor cópula mortal.
Calo-me.
Reparei de repente que não estavas aqui. Pus-me a falar a falar. Coisas de mulher desabitada. Sei que um dia desviarei sem ti os passeios rectos esvaziarei os gordos manequins falantes. A razão é uma chapa de ferro ao rubro: se acredito na tua morte começo o suicídio.
Enquanto penetrantemente te espero a luz coalhou. Os pássaros coalharam enquanto te espero. O leite enquanto te espero coalhou. Haverá outro verbo?
Submersa, muito distante de qualquer inferno de um paraíso qualquer existo eu. Existirão tais palavras?
É a altura de escrever sobre a espera. A espera tem unhas de fome, bico calado, pernas para que as quer. Senta-se de frente e de lado em qualquer assento. Descai com o sono a cabeça de animal exótico enquanto os olhos se fixam sobre a ponta do meu pé e principiam um movimento de rotação em volta de mim em volta de mim de ti.
Nunca te conheci - assim explico o teu desaparecimento. Ou antes: separei-me de ti no solstício de um verão ultrapassado. As mulheres viajavam pela cidade completamente nuas de corpo e espírito. Os homens mordiam-se com cio. Imperturbável pertenceste-me. Assim nos separámos.
Não calhasse morrer um de nós primeiro que o outro porque ambos ao mesmo tempo será impossível enquanto não houver relógios que meçam este tempo e as horas fielmente se adiantarem e atrasarem.
Alguma vez pretendi dizer-te o que quer que fosse? Falava por paixão por tibieza por desgosto por claridade por frio por cansaço
nunca por pretender dizer o que quer que fosse.
Não me desculpo. Se já me cai o cabelo se já não sinto os ombros é porque o amor é difícil ou a minha cabeça uma pedra escura que carrego sobre o corpo a horas e desoras ostentando-a como objecto público sagrado purulento. O odor que as pedras têm quando corpos. O apocalipse de tudo quando amamos. O nosso sangue em pó tornado entornado.
O teu amor espreita o meu corpo de longe. De longe por gestos lhe respondo. Tenho raízes nos vulcões ternuras íntimas medos reclusos beijos nos dentes.
A pobreza surge dentro de nós embora cautelosos deitados de manhã e de tarde ou simplesmente de noite despertos. Ambos meu amigo estamos sentados neste momento perfeitamente incautos já. Contemplamos um país e sentamo-nos e vestimo-nos e comemos e admiramos os monumentos e morremos.
Inventei a nossa morte em toda a impossível extensão das palavras. Aterrorizei-me segundos a fio enquanto em corpo nu ouvindo-me adormecias devagar.
Enterro o meu terror como um alfange na terra. Porque é preciso ter medo bastante para correr bastante toda a casa celebrar bastantes missas negras atravessar bastante todas as ruas com demónios privados nas esquinas.
Só o amor tem uma voz e um gesto mesmo no rosto da ideia que me impus da morte.
És tu tão único como a noite é um astro.
Sobre a poeira que te cobre o peito deixo o meu cartão de visita o meu nome profissão morada telefone.
Disse-te: Eis-me.
E decepei-te a cabeça de um só golpe.
Não queria matar-te. Choro. Eis-me! Eis-me!
Masters of Horror: The Screwfly Solution de Joe Dante (2x07)
Se te queres matar, porque não te queres matar
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo polícromo do nosso dinamismo sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!
Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...
A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros...
Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...
Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...
Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste;
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.
Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?
Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?
És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?
Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?
Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente:
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células nocturnamente conscientes
Pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atómica das coisas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...
segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011
Método vanguardista para ficar sóbrio
Três Fibrilações
O Sistema Interrogativo (IV)
Pequeno Poema Ilógico e Verdadeiro
Sermos Nós e Sós
(de puro masoquismo),
implorares-me
por amor de Deus
não me deixes.
Se tu soubesses o quanto me foi constangedora
a tua humilhação.
Como tive de conter-me para não te esbofetear.
Oferecias-te (Judas!)
quando tudo quanto eu desejava era que te enforcasses
perante o meu silêncio -dignamente.
Mentes quando evocas lealdade -"Esse feliz rigor"
Nunca existiu: clareza. Entre nós. Apenas manipulação.
Entendes agora
por que a minha poesia se torna cada vez mais
crua; por que prescindo, nela, de ternas
efusões? -Cara lavada: rugas à mostra: e o tempo
nosso -a idade dos órgãos.
Sem transplantes
cirúrgicos.
Não digas que falo deste modo por nada termos a perder.
Temos -um amor sem retorno.
Indiferente à esperança e ao desespero.
Não há mais nele, como outrora, palavras endurecidas
como um pedaço de ti
na minha boca: só saliva. Sida -gritos de morte.
Envelhecemos
e nem as pequenas e brancas florescências dos nossos
sexos nos redimem: acredita e de uma vez
por todas: "A eternidade
abandonou-nos".
quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011
Ainda sobre "Adoecer"
Hélia Correia em entrevista ao Ipsílon