quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Recognize


Steps on a curve and mishap that comes around,
I´m still requiring, merging for love's account-
Outside that´s all you´ve got
You've got to stop it when you go for a ride
Outside your touch rewards no more.

Plunge into the dark side,
Having too much to drink
Planning to leave it
Fire on the fingertips.

Outside that´s all you've got
You've got to stop it when you go for a ride
Outisde love ain't nothing till you feel the healing

Won´t you recognize me, hold me,
Fraternize and be there
As the moment comes along, do no wrong
Won't you recognize me?

Wanting to grab you,
Wanting to feel your touch.
Breathing desire,
The search wich you denied
Ambition marked to kill the feeling.

Oustide that´s all you've got
You've got to stop it when you go,
If you go for a ride.
Outside you ain't nothing
Me means you, feel the healing.

Won´t you memorize me, take me,
Emphasize and be there
To avoid spinning 'round
Till you found
Won't you recognize me?

Miguel Guedes
(Blind Zero)
Trigger, 1994
fotografia de Helena Almeida

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Eduarda Chiote: Órgãos Epistolares

THE BITTER END

De Eduarda Chiote não havíamos livro de poesia desde "O Meu Lugar à Mesa", de 2006. Em 2008, a autora publica "Não é Preciso Gritar", um livro de contos, o segundo, mas já muito distante, em todos os aspectos, do primeiro, "A Décima Terceira Ilha" de 1983.
A estreia de Eduarda Chiote deu-se na poesia, em 1975, com o livro "Esquemas", e foi prosseguindo serenamente pela poesia, com "Estilhaços" (1979), "Refúgio em Vez de Câmara Mortuária" (1979), "Travelling" (1983), "Altas Voam Pombas" (1982), "Armando Alves e a Lâmpada de Aladino" (1984) e "A Preços de Ocasião" (1987). Depois deste livro, temos um hiato de sete anos, e parece-me indicado aqui mesmo fazer uma quebra na bibliografia de Eduarda Chiote. Quando regressa à poesia em "Branca Morte" (1994), encontramos uma poesia diferente, maturada, altamente filosófica e pródiga em imagens fortes. Por assim dizer, os primeiros livros formavam um conjunto, mas, a partir de "Branca Morte", um outro conjunto se inaugura. Prolonga-se então para "A Celebração do Pó" (2002), "Não Me Morras" (2003) e "O Meu Lugar à Mesa" (2006).
O que separa estes dois conjuntos é, a meu ver, uma postura, que inicialmente se apresenta mais fragmentária e fugaz, e depois de torna mais reflexiva, mais intensa e, de certa forma, mais emotiva. Mas algo une todos os livros: uma lucidez, um olhar cru e nunca resignado, capaz de questionar todas as coisas continuamente.
Se, numa fase inicial, particularmente em "Esquemas" encontramos frequentemente o poema curto, onde inclusivamente se nota alguma influência da Poesia Concreta, na sua atenção ao vazio e às suas possibilidades, gradualmente a poesia de Eduarda Chiote se torna mais extensa, sem nunca, no entanto, aceitar o puro enchimento de palavras sem importância.



Agora mesmo nos chega este "Órgãos Epistolares". Anunciado como um livro de fim de obra poética -será o último-, em todas as medidas ele se concentra em concluir todas as ideias.
Uma vez mais, como tem acontecido com todos os livros da autora, este livro tem uma ideia, uma espécie de narrativa que o orienta. Não se trata de uma narrativa como a de um romance ou de um conto, mas de uma narrativa que serve precisamente para orientar o discurso, mas nunca para o limitar. Por assim dizer, o poema serve-se da narrativa, e não o contrário. Esta estrutura tem feito parte de todos os livros de Eduarda Chiote, e serve de exemplo a organização de "Esquemas", em que cada capítulo começava com um poema em prosa, sendo que os poemas em verso seriam desenvolvimentos sobre fragmentos desse poema em prosa inicial.
"Órgãos Epistolares" é a história de uma mulher cancerosa, em fase terminal, que sente o corpo, órgão por órgão, desfazer-se, servindo esta deterioração como metáfora para a morte da escrita poética.
Este é, portanto, o ponto de partida para uma análise do mundo. Essa análise passa, evidentemente, pela literatura, mas também, e será essa uma das características mais surpreendentes, pela ciência, pela filosofia, pela psicologia e pela política, parecendo-me esta última uma das mais garridas ao longo de todos os poemas.
A ideia da morte enquanto metáfora aplicável a tudo o que compõe a vida estava já muito presente em livros passados, com particular pungência, na minha opinião, em "Branca Morte" e "O Meu Lugar à Mesa". E, se "Branca Morte" se centrava na questão da escolha, a escolha da morte (Observando os títulos: "Escolho Morte", "Escolho Branca Morte", "Escolho Morrer Criança", etc.), e "O Meu Lugar à Mesa" se centrava na morte das pessoas próximas, "Órgãos Epistolares" centra-se numa morte própria, que se estende ao que está à volta da mulher moribunda, uma morte prevista e lenta, que tem de mais penoso o apodrecimento interior.
O livro inaugura com a seguinte frase:

"Vem, disse a minha Alma
Escrevamos versos para o meu Corpo (porque somos um)"
(pag.7)

Esta é sem dúvida uma boa explicação para a génese de "Órgãos Epistolares". Podemos observar esta frase comparando-a um pouco com o título. Se os "órgãos" funcionam quer como "cadeias de transmissão" quer como elementos biológicos, "epistolares" designa precisamente a questão de um diálogo. Essa é uma componente importante deste livro, a questão do diálogo. Quer o diálogo explicado na epígrafe, entre o Corpo e a Alma, sendo que um morre e a outra se vai agarrando debilmente ao que lhe resta de vida; quer o diálogo entre várias pessoas, cuja escrita não raras vezes parece remeter-nos, deliberadamente, para a escrita de cartas; sendo que no poema "Um Poema Meramente Explicativo" encontramos isto expressamente frisado:

"Escrevemo-nos, eu e os meus órgãos"
(pag.34)

Este é, para mim, um livro desesperante. Incomoda, fere. Isso faz dele, desde logo, um excelente livro. A sua linguagem consegue ser forte sem, no entanto, ceder à facilidade de transformar os poemas em prantos desesperados cheios de sentimentos excessivos. Pelo contrário, este livro constrói-se com o pensamento, com a reflexão, e é através da inteligência extrema e extremamente crua com que se nos dirige que "Órgãos Epistolares" consegue atingir-nos com mais eficácia.
A primeira ideia é precisamente a de uma desistência forçada:

"Vontade de ter perdido a vontade,
(...)
Quero agora esquecer que há poemas com muitas receitas,
contas por pagar,
unhas que se esgotam
nos dedos; páginas separadas dos livros -são as contingências"
(pag.11)

penso que nestes versos, retirados do poema inaugural deste livro, se nota a dualidade que existe perante a desistência: é necessário desistir, ainda que esta mulher não queira desistir, pois não perdeu a vontade: tem vontade de a perder; quer esquecer, mas não esquece. É esta mesma dualidade, esta divisão, que encontraremos mais tarde, em "O Silêncio e o Grito":

"Uma parte de mim
grita
e a outra abusa do silêncio
e a parte que sabe das duas não distingue
uma
da outra."

(pag.17)

de facto, esta tonalidade marcará todos os poemas. Esta divisão, penso, poderá ir de encontro à minha ideia anterior, pois esta poesia está cheia dessa dualidade entre, em última análise, racionalidade e emotividade: uma abusa do silêncio, a outra grita; uma tem vontade de perder a vontade, a outra não consegue perder a vontade.
Parece-me que uma das preocupações deste livro é precisamente a de analisar as várias componentes do ser humano, os vários “eus” que o compõem, numa atitude quase cubista, mas sabendo, à partida, que a soma de todos os pontos de vista não dá o todo.
Assim sendo, não é de estranhar que encontremos aqui expressões como “à minha/ natureza biológica” (p.18), “a minha natureza/ consciente” (p.28), “A sua constante química” (p.32), “Ah! O social!” (p.32), “feroz/ amoralismo” (p.35), entre várias outras.
O diálogo com tudo isto é, efectivamente, um diálogo com a vida e morte, com a passagem. Essa ideia, parece-me, estava já presente no fragmento que acima citei de “Um Poema Meramente Explicativo”.
Se muitos destes “diálogos” acontecem dentro da própria pessoa, que questiona os seus órgãos, a sua doença, o seu lugar no mundo, a sua inteligência, os seus sentimentos ou a sua ética ou a sua moral, evidentemente uma narrativa como a deste livro tem que envolver também um diálogo com o exterior: com o mundo e com outras pessoas. É “o social” que encontramos em “Por Tragicidade e Perfeição Entendo a Mesma Coisa” (pag.32).
Dou alguns exemplos:

“Você negou-se e fez-me entender
que a minha presença lhe faria mais mal
que bem,
e eu entendi que tem de ser segundo o seu código,
o seu programa –que tenho de agir em conformidade
entre o que necessita e não com a textual invenção
da sua necessidade. Pobre de si alucinado de dor pela mulher
cancerosa!”
(pag.20)

“Vi-te rastejante e repulsiva, depois de uma cena
(de puro masoquismo),
implorares-me
por amor de Deus
não me deixes.
Se tu soubesses o quanto me foi constrangedora
a tua humilhação.”
(pag.42)

“A imposição de autenticidade que me exiges
à porta fechada leva-me a perder
toda a verdadeira alegria
que de tristeza te não
mente.”
(pag.44)

Importa referir que “Órgãos Epistolares” está dividido em três capítulos. Dos fragmentos acima citados, o primeiro pertence à primeira parte, sem título; o segundo e o terceiro pertencem à segunda parte, “Lodos e Dolos”. Interessa referir aqui esta divisão porque, afinal, é no segundo capítulo que se nota, penso, uma maior “resposta” dessas outras pessoas que mantêm um diálogo com a mulher cancerosa. Penso que os dois fragmentos do segundo capítulo demonstram bem como a doença e a morte lenta vão secando lentamente as relações; ainda que a mulher cancerosa tenha consciência disso, como vemos no primeiro fragmento. Uma vez mais, regresso à ideia da diferença entre razão e emoção, que apontei acima. Penso que a leitura destes três fragmentos mostra bem as diferenças entre uma e outra. Só a lucidez representa a força, a capacidade de sofrer dignamente. Como vemos, através de uma atitude de razão, a mulher cancerosa percebe a atitude que deve ter perante o homem que está “alucinado da [sua] dôr”; e quando tem uma atitude mais sentimental –“por amor de Deus/ não me deixes”, a reacção do outro é a pior; causa-lhe constrangimento.
No entanto, é preciso não esquecer que Eduarda Chiote tem o gosto da questão, do “colocar em causa”. E, perante a atitude racional, encontramos-lhe, mais à frente, esta pergunta:

“Porque utilizas uma floresta
de enganos
para glorificar a intransigência
perante o que supões serem hipocrisias, corrupções,
explorações: quem te deu o canónico poder do erro e da
verdade?”
(pag.58)

parece-me claro aquilo que une a racionalidade à emotividade: o facto de ambas serem verdades. Assim sendo, preferir uma em detrimento da outra é utilizar “uma floresta de enganos”. E é perante isto que encontramos, continuando o mesmo poema, uma justificação política para tal comportamento:

“-É grave a natureza das acusações
que fazes a uma cultura burguesa
com a qual pareces não compactuar, tenho de reconhecê-lo;
pois dela excluis os órgãos e os seus reflexos
precisos (e físicos).
Recusas benefícios que te podiam
ser concedidos por mérito; e não os aceitas por
desprezo. Na verdade, não te deixas atrair
pela confusão comprometedora
das ideias que apregoas.”
(pag.58)

há certamente um tom de acusação nestas palavras. Teria que haver. Como lemos no poema “Sermos Nós e Sós”, que me parece um dos melhores de todo o livro, “a minha poesia torna[-se] cada vez mais/ crua” (pag.42). E a única forma da poesia ser crua é precisamente despir-se de todos os artifícios e concentrar-se na procura de determinada verdade, o que implica, muitas vezes, nomear culpas e culpados. Isso acontece muito em “Órgãos Epistolares”. Muitas vezes, o culpado é a própria pessoa, mas também entendemos que, para todos os efeitos, não podemos condenar essa culpa, pois lemos, e com verdade, que o “que na vida de uma pessoa, acontece de mais/ trágico [é] a sua estrutura”. Assumindo esta estrutura como imutável, daí a sua tragédia, percebemos que perante muitas situações, não há nada a fazer, não há salvação.


A questão da escrita está presente ao longo de todo o livro. No entanto, é no terceiro capítulo, “O Que de Morte é Sério e Não Admite Ironia”, que se torna mais relevante: como é explicado na badana, a morte do corpo, corroído pelo cancro é propositadamente metáfora para o término da escrita poética de Eduarda Chiote; no entanto, a questão é directamente abordada com mais frequência neste capítulo.
O primeiro poema, “A Palavra, Tal como a Morte, é Química”, pode muito bem ser uma Arte Poética. Reproduzo o início:

“Preciso de um excelente material para escrever.
Ter ao lado um livro. Deixo correr o
olhar por uma frase. Ao acaso. Pode ser esta: “As indústrias
dos materiais de construção, de cerâmicas e de vidros
utilizam matérias-primas minerais: areia, argila e pedra.”
(…)
Tantas imagens! Será que saberei o significado
de uma só palavra? Argila, por exemplo? O que é argila?
Matéria-prima é igual a obra-prima? –Sou palavras, vejo palavras.
Copo. Secretária. Computador. Telefone.
A palavra é síntese. É química.
(…)
Produzo erros. Brinco com eles.
Ontologicamente.
(…)
Guardo então a palavra
para quando quiser insultar um escritor grunho; dir-lhe-ei és um alóbrogo
mas com afecto: muita ternura.
Vou ver o que significa argila
e ficarei a saber porque a minha natureza é tão frágil
que se conta através do quebrar de pele
de uma unha.”
(pag.72-75)

ler um poema destes escrito no último livro de uma autora que já conta uma dezena de livros publicados é muito refrescante. Aparte isso, penso que, a partir deste poema, podemos entender um pouco o processo de escrita de Eduarda Chiote: a procura de um tema, de uma narrativa, como acima disse, a necessidade de pensar poeticamente todas as coisas, até as mais prosaicas, como os materiais de construção, e a relação umbilical com a palavra que, por ser sintética e química é ainda uma forma de comunicação por excelência, de resto muito semelhante ao pensamento: da mesma maneira que a palavra “fogo” não queima, pensar em “fogo” também não queima –e assim a palavra se funde no pensamento.
Estando, se pensarmos bem, a palavra, dentro e fora da realidade, ela também permite a transfiguração. Também desse processo se serve a poesia de Eduarda Chiote, como podemos atentar neste fragmento:

“Um pescoço é um falo.
Hoje recebi um colar para
o meu. Rodear o pénis
por uma cintura de estrelas é um caso clínico.
Uma forma muito subtil de castrar o crânio
para evitar o confronto com os problemas que este
inventa; mas o problema
é que não há problema algum: mesmo decepado,
restam, na face, os olhos, a boca e o nariz –e na verdade há pessoas
que vêem pelo nariz e respiram pela
boca.”
(pag.82)

este poema é um bom exemplo de como a palavra e o pensamento podem transformar o real de maneira a que a palavra seja o caminho para evidenciar um pensamento. Ou seja: não estamos perante um processo surrealizante de transformar umas coisas noutras, mas sim perante um processo altamente filosófico que se desenvolve (E só se pode desenvolver.) na mais absoluta liberdade.
Um poema como este, “Nenhum Problema: Só Ironia”, serve também de exemplo para comprovar, uma vez mais, o sentido apuradíssimo de ironia na poesia de Eduarda Chiote. Repare-se que o título do capítulo renega precisamente a ironia, e, no entanto, grande parte dos seus poemas, além do cariz sarcástico que já têm, levam inclusivamente a palavra “ironia” nos títulos.
E é portanto num misto de ironia e de tristeza, cambiantes muito bem equilibradas, que Eduarda Chiote se despede. Por isso, tanto lemos em “A Grande Ironia dos órgãos”:

“Nesta poética quarta idade, somos ainda a alma imaginária
de uma pedra especiosa, cujo único fim parece ser
o de não nos conformarmos com a –eternamente –infantil
leveza criativa.”
(pag.87)

como lemos, depois, em “Na Mais Profunda Escuridão”:

“Estás a meu lado vendo-me desnecessariamente
sofrer, tu. Tu que possuis a cápsula de cianeto e me prometeste ajuda
negas-te, neste momento, a testemunhar
a minha agonia.
Ironia maior
na medida em que sabes que não há (para mim) qualquer
recurso: que escrever perdeu todo o sentido.
Duro, muito duro.”
(pag. 89)

e, mais ainda, em “Onde Todas as Identidades se Confundem”:

“Esclareço e de forma amável
que se podem fazer versos sem órgãos, sangue,
sexo: há (sempre houve) perfumes sem flores
e santos sem altares.
No entanto. A partir do momento em que o desejo de vida
a não penetre, a poesia torna-se,
para mim, um embuste
insuportável.”
(pag.91)

o que me parece surpreendente nestes poemas é que eles confundem maravilhosamente inteligência com ironia. Mesmo nos mais tristes, como o segundo e o terceiro, nota-se uma espécie de riso cruel, que não é mais que um exercício cru de lucidez. Um dos propósitos deste livro era ser cru, e penso que poemas destes não deixam dúvidas quanto a isso. E, uma vez mais, se nota a vontade extrema de manter a dignidade, porque, apesar do sofrimento causado pela morte da escrita, a mulher recusa-se a continuá-la sem ter um propósito, sem que “o desejo de vida a penetre”.
Quanto ao terceiro fragmento, parece-me interessante fazer o contraponto entre ele e o último poema deste livro, “O Potenciar do Real”:

“Fica em silêncio. Escuta. Ouve o que te digo.
Não duro sempre. Não duro
sempre. Hoje, vi um morto. Constatei
caber dentro dele: o cancro (observei-o do caixão)
foi o seu melhor amigo: o único que sofreu
a mesma dor.”
(pag.100)

este poema, acima reproduzido na íntegra, parece-me ser de uma brutalidade impressionante. Se o compararmos com o fragmento da página 91 que acima citei, percebemos que esta poesia recusa ser um “perfume sem flores” ou um “santo sem altar”. No entanto, o poema final vem desenganar-nos: o fim da poesia não é necessariamente o silêncio, se esta mulher nos diz “Fica em silêncio. Escuta. Ouve o que te digo”. Poderíamos lançar-nos numa longa lista sobre o que vem depois do fim da escrita poética. Eu penso que a mais evidente sequela é sempre o perpetuar daquilo que se leu, os sentimentos que a poesia foi capaz de acordar em nós, os murros que nos deu e as feridas que nos deixou. Esmurrar e ferir é ainda a melhor maneira da poesia se tornar parte de nós.
Esquecendo a comparação com o outro poema, a ideia final deste vem, na verdade, alvoroçar tudo o que foi dito durante todo o livro. Fomos avisados, é certo, que aqui, os poemas “tal como os órgãos/ em cada estrofe,/ desorganizam-se a si próprios/ acusando uma decomposição (biológica)” (p.86).
Mas aqui, tudo vai mais longe. Somos levados a pensar, talvez por facilitismo, que a poesia seria um segundo corpo, uma espécie de escudo possível entre a mulher que morre e o cancro que a mata. No entanto, como vemos neste poema, a poesia não era o escudo, nem era um segundo corpo: a escrita era o próprio cancro, pois só a poesia “sofreu/ a mesma dôr”.
Poderá parecer que este livro de Eduarda Chiote não deixa esperança. Tenho-o dado a entender, e disse acima, claramente, que este livro incomoda (Ou, pelo menos, incomodou-me a mim.). No entanto, nem toda a esperança fica perdida.
A fechar o livro, Eduarda Chiote cita Sylvia Plath: “ nus parecem dizer:/ viemos até tão longe, chegámos ao fim.”
E, de facto, essa é a maior esperança deixada por este livro, e também a sua lição: a de que é necessário percorrer um caminho, para, chegando ao fim, podermos dizer que chegámos até tão longe.
Depois de um livro como “Órgãos Epistolares”, só tenho a lamentar que Eduarda Chiote não escreva mais poesia.

O Nome Lírico


Esta manhã
hoje
é um nome.

Nem mesmo amanheceu
nem o sol
a evoca.

Uma palavra
palavra só
a ergue.

Como um nome
amanhece
clareia.

Não do sol
mas de quem
a nomeia.

Fiama Hasse Pais Brandão
Barcas Novas
1967, ed. Ulisseia

Masters of Horror: We All Scream for Ice Cream (2x10)

PALHAÇADA

Há coisas muito básicas, que qualquer realizador devia aprender e nunca, mas nunca mesmo, esquecer. Fazer um filme de terror que está muito para lá de qualquer limite de credibilidade é uma delas.


"We All Scream for Ice Cream" é um filme que dói tanto a ver, dói no pior sentido da palavra, que quase nem consigo falar dele. Não é que eu esperasse melhor de Tom Holland que tem andado, desde 1985, entre as comédias e as pretensões de terror. Mas a verdade é que de ninguém eu esperaria um filme cuja palavra que melhor encontro para descrever é "rasca".
A história é a seguinte: nos anos 50, um grupo de crianças acorre todos os dias ao autocarro de Buster, um palhaço atrasado mental que vende gelados. Nos dias de hoje, esses rapazes são já crescidos e pais de família e, na localidade onde vivem, inicia-se um estranho fenómeno que passa por as crianças desaparecerem de casa a meio da noite. Ao mesmo tempo, uma série de homens que haviam pertencido ao tal grupo começam a desaparecer.
O que se passa é que, na verdade, esse grupo havia pregado uma partida a Buster que, em princípio, lhe havia custado a vida. Agora, o palhaço voltou dos mortos, e alicia os filhos dos que lhe fizeram mal a virem comer gelados, gelados esses que fazem com que os pais se derretam em gelado.
A história, em si, é pobre. Os actores não ajudam. Os efeitos especiais são ridículos. O desenvolvimento da história e respectivo clímax dão vontade de rir de pena. A resolução dos problemas está do amadorismo para baixo. No fundo, um sentimento de profunda piedade é o que de melhor consegui sentir por este filme.
Se quisesse encontrar referências para este filme, a que me parece mais indicada é a série de televisão "Goosebumps" que passava nos anos 90 na televisão, e que eu via, quando era puto, porque eram baseados na série de livros do mesmo título, de R.L. Stine. E, para ser sincero, alguns desses episódios que uma altura revi no YouTube têm de longe muito mais qualidade que este "We All Scream for Ice Cream".


De facto, o filme parte de um conceito que é já de si fraco, e isso condiciona tudo. É até difícil não acreditar que, no fundo, o maior desejo de Tom Holland com este filme foi gozar com a cara do espectador. E, mesmo se o objectivo era esse, havia maneiras de o fazer com mais classe.
É penoso ver um filme assim. Eu, que já atravessei filmes escritos e/ou realizados por Mick Garris, que já atravessei "Dreams in the Witch House" de Stuart Gordon, estive muito muito muito perto de pura e simplesmente suspender "We All Scream for Ice Cream".
Acho que é muito difícil encontrar um filme pior do que este; uma tão grande e tão mal feita palhaçada. O que faz este filme em "Masters of Horror" é algo que nunca, por mais que viva, conseguirei entender.


Poema 1


Pássaros mutilados. Em todas as paragens
do horizonte um homem cai para trás

Punhos maduros rebentados de sol
sobre os telhados verdes sangue ainda

Punhos riscados de solidão vasta
favos húmidos de não sei quê no mundo

Sombras caídas por terra
como frutos indóceis
sombras abertas todas
mortas manhã cedo
Luiza Neto Jorge
A Noite Vertebrada
1960, col. A Palavra
pintura de Francis Bacon

Corpo Sobre Corpo (1)


Dá-me a província do corpo
noite cratera sem fumo
dá-me o rumor do teu corpo
para conquistar o mundo

Dá-me a província do mundo
o fim convulso da noite
dá-me a saudade do mundo
para conquistar-te o corpo


Gastão Cruz
A Doença
1963, ed. Portugália
fotografia de Robert Mapplethorpe

Poema Sobre o Ciúme


Que dizer do ciúme
se não faca

se não fome ou fogo
ou ferro aceso

Que dizer do ciúme
que eu não faça
ou afunde no corpo em que me enterro

Que dizer do ciúme
se não lava

se não fenda ou febre
do teu ventre

Que dizer do ciúme
que eu não abra
ou procure em ti raivosamente

Maria Teresa Horta
Minha Senhora de Mim
1971, ed. Dom Quixote
fotografia de Slava Mogutin

Masters of Horror: Right to Die de Rob Schmidt (2x09)

SESSENTA BOCEJOS POR MINUTO






Na verdade, o cinema de terror tem-se tornado, na última década, uma espécie de entertenimento que se esgota a si mesmo, mais do que um tipo de cinema. O que acontece com o cinema de terror não é diferente do que acontece com a comédia. Na comédia, temos alguns realizadores que levam o género a sério, como é o caso de Woody Allen, e depois temos a maioria dos outros realizadores, que realiza comédias especificamente românticas, que servem para encher salas de cinema com pessoas que não estão minimamente sensibilizadas para a arte e se limitam a ver o filme, que não os faz pensar e nem os faz sentir. Tenho pena que tal tenha acontecido com um género que já nos deu grandes filmes, como é o caso do cinema de terror.



Este "Right to Die", de Rob Schmidt é, afinal, um belíssimo exemplo não só do vazio em que o cinema de terror tem caído, como é também um belíssimo exemplo do que acontece quando os realizadores não são criativos, que é a adopção de uma receita que se repete vezes e vezes sem conta.

Como é que um filme destes chega a "Masters of Horror", não sei. É verdade que nesta série já vimos filmes que vão do ridículo ao inaceitável, mas, nesses, pelo menos nota-se que o realizador tentou. Em "Right to Die" nem isso.

Rob Schmidt é o realizador de "Wrong Turn" (2003) que, colocando uma sensual Eliza Dushku a ser atacada por um bando de canibais, fez as delícias de milhões de adolescentes superficiais que gostam de terror, mas não percebem patavina de cinema.

"Right to Die" é a história de Cliff Addison (Martin Donovan), um dentista que, enquanto conversa com a mulher (Julia Anderson) durante uma viagem de carro, tem um acidente. Ele sai ileso, mas as mulher começa a arder, sendo levada para um hospital onde se conclui que a mulher passará o resto da vida em coma e que a totalidade do seu corpo foi consumida pelas chamas.

Indeciso sobre se desliga as máquinas, Cliff começa a ser visitado pelo fantasma da mulher, que o vai torturando e aumentando as suas dúvidas sobre se deve terminar a vida dela, quanto mais não seja porque, nos momentos entre o falecimento dela e a reanimação bem-sucedida que os médicos operam, ela se transforma num fantasma que chega até a matar o advogado e a amante de Cliff.

Se começássemos a fazer uma lista de todos os filmes que influenciam este, ela nunca terminaria. Passaríamos por "Ringu" (1998) de ideo Nakkata, por "13 Ghosts" (1960) de Rob Castle, entre muitíssimos outros. "Right to Die" limita-se a ser uma assemblage de tudo, com o condão particular de, por mais que a história desenvolva, parecer sempre nunca ter assunto.

De facto, estes são 52 minutos muito aborrecidos, cheios de abras-kadabras que já vimos em todos os realizadores sem qualidades que querem fazer filmes de terror. A história parece mudar de tonalidade sem motivo aparente, os factos desenrolam-se com uma certa inércia, a qualidade dos actores deixa muito a desejar e, como não há aqui nada que desperte o mínimo interesse no filme, temos então os dois recursos mais frequentes para resolver esta situação: cenas de sexo e de nudez, e cenas pretensamente gore. Estes são os dois refúgios de qualquer realizador sem talento especial que quer prender um mínimo da atenção do espectador.



Possivelmente, este texto é um tanto desagradável. Sou espectador de cinema de terror desde os 11 anos, e, ao longo da minha vida, tem sido dos géneros que mais tenho procurado, e tem sido também aquele que mais me parece ter caído numa vulgaridade causada pela pouca selecção e pela ideia de que é fácil suscitar medo no espectador. Discordo de tudo. Penso que muitos dos filmes mais originais já feitos foram filmes de terror, e penso que todo esse legado está a ser cada vez mais destruído, e não só por realizadores jovens.

Filmes como este "Right to Die" são o principal motivo por que muita gente já nem leva o cinema de terror a sério. E incluí-lo numa série de mestres não é errado. É pura e simplesmente criminoso.


Um poema


Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
Em que espelho ficou perdida a minha face?

Cecília Meireles
Viagem
1939
fotografia de Nuno Félix da Costa

Um poema


Como figos secos neste verão,
nesta praia, o céu está bonito
e cinzento, uma ligeira névoa
encobre-nos do lado de dentro,
brinco com pedrinhas e conchas
de caramujos, ameijoas
e o pensamento entretanto
dá as voltas que dá.

hoje foi um dia bom, mau, ruim,
hoje, como os outros, são
os dias todos assim.

Helga Moreira
Os Dias Todos Assim
1996, ed. &etc
pintura de Edvard Munch

Dia Cinzento


O dia cinzento, o apito do comboio, o funeral que ainda há pouco se arrastava em frente da minha janela... Foi isto, talvez, que me fez pensar em ti.
Foi num dia assim que te encontrei. As hordas bárbaras, então poderosas, estrondeavam pela rua. Estendeiam-se milhares de braços; era a nova saudação.
Impassível, tu assistias. E os meus olhos encontraram os teus, escuros e tristes.
Rompemos a multidão, espámo-nos por essa rua estreita que levava ao rio, e quando chegámos acima da ponte já tudo era tranquilidade.
Mas o dia era cinzento.
Espesso nevoeiro cobria o rio. Saudosa e lenta vinha até nós uma canção. Cantava-a alguém alheio ao mundo de violência.
E as nossas mãos uniram-se.
Sim, esse foi o dia em que te encontrei.
Mas não tardou o outro em que tiveste de fugir às garras dos bárbaros. Estivémos em frente do comboio. Não falávamos, e tanto havia a dizer. Porém a dor cerrava as nossas bocas e abafava as palavras nos corações.
Mais uma vez abrançaram-me os teus olhos, escuros e tristes.
E então o apito do comboio...
Veio depois a carta de tarja negra: as tuas últimas palavras que uma boa alma me transmitiu.
E hoje, num dia cinzento em que o funeral se arrastou em frente da minha janela, tenho de pensar em ti.

Ilse Losa
Grades Brancas
1951, ed. Centro Bibliográfico de Lisboa
pintura de Henri Toulouse-Lautrec

Um poema


“Deita-te comigo nesta cama de pedra.”
Canta de novo esse convite, tantos anos passados,
de novo nas ruínas da rua do emprego
onde fiquei de te esperar.

Está deitado aqui o corpo que recorda, está deitado.
Os ornamentos de metal, a música portátil,
o tambor de uma criança na rua,
o risco amarelo da coberta.

O braço que descai debaixo do pescoço
o coração cujo ritmo decresce
os olhos em que dói a luz do candeeiro
os pés à procura da lã do cobertor
o esperma que seca sobre o peito
o sono entrecortado da respiração.

Trocas de luz errante, ervas sem nome
que me dizias serem feno grego, junça, melodia.

Joaquim Manuel Magalhães
Uma Luz com um Toldo Vermelho
1990, ed. Presença
fotografia de Nan Goldin

Helena Almeida: Sem Título (2010)


há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida


há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida
pensava eu... como seriam felizes as mulheres
à beira mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado

por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos... sem ninguém

e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentada à porta... dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua
assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão

(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no coração. mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)

um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade


Al Berto
Salsugem
1984, ed. Contexto
imagem de Helena Almeida

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Arte Poética


Gostaria de começar com uma pergunta
ou então com o simples facto
das rosas que daqui se vêem
entrarem no poema.

O que é então o poema?
um tecido de orifícios por onde entra o corpo
sentado à mesa e o modo
como as rosas me espreitam da janela?

Lá fora um jardineiro trabalha,
uma criança corre, uma gota de orvalho
acaba de evaporar-se e a humidade do ar
não entra no poema.

Amanhã estará murcha aquela rosa:
poderá escolher o epitáfio, a mão que a sepulte
e depois entrar num canteiro do poema,
enquanto um botão abre em verso livre
lá fora onde pulsa o rumor do dia.

O que são as rosas dentro e fora
do poema? Onde estou eu no verso em que
a criança se atirou ao chão cansada de correr?
E são horas do almoço do jardineiro!
Como se fosse indiferente a gota de orvalho
ter ou não entrado no poema!


Rosa Alice Branco
Soletrar o Dia, poesia reunida
2002, ed. Quasi
desenho de Júlio Resende

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Uma citação (de certa forma, até eu me surpreendi)

when you feel so powerless,
what are you gonna do?
Say what you want.

Nelly Furtado
"Folklore", 2003

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Epístola Para os Meus Medos


Sois: os sons roucos, a espera vã, uma perdida imagem.
O coração suspende o seu hálito e os lábios tremem
sinto-vos, vindes ao rés da terra, como ventos baixos,
poisais no peitoril. Sois muito antigos e jovens,
da infância em que por vós chorava encostada a um rosto.
Que saudade eu tenho, ó escuridão no poço,
ó rastejar de víboras nos caniços, ó vespa
que, como eu, degustaste o figo úbere.
Depois, mundo maior foi a presença e a ausência,
a alegria e as dores de outros que não eu.
E um dia, no alto da catedral de Gaudí,
chorei de horror da Queda, como os caídos anjos.


Fiama Hasse Pais Brandão
Epístolas e Memorandos
1996, ed. Relógio d'Água
fotografia de Ralph Eugene Meatyard

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Uma citação

Há três coisas que metem medo: a primeira, a segunda e a terceira.
Maria Gabriela Llansol

Um poema


Dir-me-ás que a paixão se desfez,
que já esqueceste o nome e os poemas.

Dir-me-ás
que não queres a loucura
dos sentidos, que tens medo
e foges na direcção do pântano
onde o brilho da lama
serve a exclusão.

Entre nós o mundo, outro amor,
a curva da tua nuca e esse olhar
de quem acorda lentamente. De mim
o corpo defendia-se do escuro enquanto
o tempo sepultava na cinza a nossa pele.

Um lençol de sombra sobre as pernas
no tumulto onde ardia o coração.

Molhar as mãos de lágrimas só reacende
a mágoa de viver depois de ter acontecido.
Importa lembrar o sucesso, o esplendor
do instinto que nos levou ao encontro.

Isabel de Sá
O Brilho da Lama
1999, ed. &etc
pintura de Graça Martins

Masters of Horror: Valerie on the Stairs de Mick Garris (2x08)

HISTÓRIA DA CAROCHINHA


Uma vez mais, e tentando manter uma mente aberta enquanto espectador, me dediquei a ver um filme de Mick Garris, a sua participação na segunda época de "Masters of Horror".


Depois de ver "Valerie on The Stairs", venho aqui reafirmar aquilo que afirmei a propósito de "The V Word", que Garris também escreveu. De facto, "Haeckel's Tale" foi a única boa aposta do cineasta. Se "Chocolate" era um falhanço e "The V Word" outro maior, "Valerie on the Stairs" consegue ser um falhanço maior do que os outros dois juntos.
A história é a seguinte: Rob Hanisey (Tyron Leitso) é um jovem escritor, autor de cinco livros rejeitados por todos os editores, que se muda para a Highberger House, uma espécie de retiro que acolhe apenas autores nunca editados, e até serem editados. Entre estes escritores, encontramos apenas o esteriótipo do escritor rejeitado pela sociedade, mal encarado, desligado de tudo, e muito perto de uma vida doentia.
Hanisey começa a ter alucinações com uma jovem mulher, que lhe aprece nua, e acaba sempre por ser raptada por uma figura de trevas e desaparecer para dentro das paredes.
Ao investigar esta história, Hanisey descobre não só que a mulher, Valerie (Clare Grant), e o monstro que a possui, são na verdade figuras presentes em romances de três dos escritores que ali viveram, e que todos acabam por morrer, um antes de Hanisey se mudar, e os outros dois ao longo do filme.
Cedo tudo se envolve num ambiente de loucura e de sobrenatural, que resulta numa impressionante e impressionantemente mal feita misturada entre "A Bela e o Monstro" e algum arquétipos do cinema de terror.
Deles, teria eu que salientar "In The Mouth Of Madness" (1995) de John Carpenter, em que acontece algo muito semelhante: um escritor de romances de horror descobre que o que narra nos seus livros está, na realidade, a acontecer numa localidade distante da dele. Ainda que neste filme de Garris não seja claro se os escritores seguem personagens pré-existentes ou se as criaram mesmo, acho que a referência ao filme de Carpenter é tão evidente que se diria que há aqui uma espécie de osmose.
E, ainda dentro das osmoses, encontro aqui uma que me parece ultrajante. É que este filme é em tudo semelhante a "Dreams In The Witch House", que Stuart Gordon realizou para a primeira época desta mesma série. Digo "ultrajante" porque até entendo que um realizador vá buscar influências a um realizador como Carpenter, que não é um realizador, é um mestre, com muitos momentos de genialidade. Mas quase plagiar um filme tão mau como "Dreams In The Witch House" não é, pura e simplesmente, boa ideia, porque, se o original era mau, a cópia quase obrigatoriamente é pior.
Os efeitos especiais e visuais são de um amadorismo surpreendente, não chegando a parecer verídicos nem com muito boa-vontade; o desenrolar da história está cheio de solavancos e de paragens em puros clichés comerciais como cenas de sexo fantasiadas e um beijo lésbico absolutamente inconsequente.


O final do filme prima também pela estupidez, ao ponto de me fazer pensar para mim mesmo que não me recordo quando foi a última vez que vi um realizador profissionar ser tão ingénuo, ingénuo no mau sentido. Eu percebo que a ideia do escritor se desfazer em páginas do seu próprio livro tem todo o sentido, e até levanta algumas questões muito interessantes. O problema é que a forma como está filmado é um cruzamento inesperado e que não resulta de um Mimo com o vídeo de "All Is Full Of Love" de Björk.
Salva um pouco o filme a interpretação de Tyron Leitso, que, estranhamente, é o único dos actores principais a ter uma representação credível. Porque a maioria dos outros pareces ofuscados por uma luz que, sinceramente, num argumento destes, não tem muita razão de ser.
Mick Garris é o criador de "Masters of Horror", e por isso o aplaudo. Mas no que toca a realizar filmes, estamos mal. Porque entre o conto infantil para ameaçar as crianças com o mundo e o cinema de terror vai um passo que não raras vezes é muito, muito grande. E eu acho que Garris ainda não percebeu isso.


Difícil Poema de Amor


Separo-me de ti nos solstícios de verão, diante da mesa do juiz supremo dos amantes. Para que os juízes me possam julgar, conhecerão primeiro o amor desonesto infinito feito de marés ambulantes de espinhos nas pálpebras onde as ruas são os pontos únicos do furor erótico e onde todos os pontos únicos do amor são ruas estreitíssimas velocíssimas
que se percorrem como um fio de prumo sem oscilação.

Ontem antes de ontem antes de amanhã antes de hoje antes deste número-tempo deste número-espaço uma boca feita de lábios alheios beijou.
Precipício aberto: ele nada revela que tu já não saibas.
Porque este contágio de precipícios foste tu que mo comunicaste maléfico como um pássaro sem bico.

Num silêncio breve vestiu-se a cidade. Muito bom-dia querido moribundo. Sozinho declaraste a terceira grande paz mundial quando abrindo os olhos me deste de comer cronometricamente às mil e tantas horas da manhã de hoje.

Deito-me cedo contigo o meu sono é leve para a liberdade acordas-me só de pensares nela. As casas e os bichos apoiam-se em ti. Não fujas não te mexas: vou fixar-te para sempre nessa posição.

Que há? Abrem-se fendas no ar que respiro vejo-lhe o fundo. Tens os olhos vasados. Qual de nós os dois "quero-Te" gritou?

Bebe-me espaçadamente encostada aos muros. Se és poeta que fazes tu? Comes crianças jogas ases sentado és uma estátua de pé a cauda de um cometa.

Mães entretanto vão parindo. Os filhos morrerão ainda? Entregas-te a cálculos. Amas-me demais.
Confesso: não sei se sou amada por ti.

Virás
quando houver uma fala indestrutível devolvida à boca dos mais vivos. Então
virás
vivo também. Sempre esperei ver-te ressuscitado. Desiludiste-me.

E iremos com o plural de nós nos leitos menores onde o riso, onde o leito do rio é um filho entre os dois. Que farei de teus braços de meus cabelos benignos que faremos?

Nasci-te da minha pele com algumas fêmeas te deitei por vezes. Conheces-me. Não me tens amor.

Grave esta corda cortada agudo seixo me ataste aos olhos para me afundar.

Só por grande angústia me condenas à morte se de mim te veio a cidade e os minúsculos objectos que já amaste ou que irás amar um dia espero.
Ah a cratera o abismo eléctrico!

Por isso o teu novo amor será comigo mais perigoso que este imaculado com mais visco de amor cópula mortal.

Calo-me.
Reparei de repente que não estavas aqui. Pus-me a falar a falar. Coisas de mulher desabitada. Sei que um dia desviarei sem ti os passeios rectos esvaziarei os gordos manequins falantes. A razão é uma chapa de ferro ao rubro: se acredito na tua morte começo o suicídio.

Enquanto penetrantemente te espero a luz coalhou. Os pássaros coalharam enquanto te espero. O leite enquanto te espero coalhou. Haverá outro verbo?
Submersa, muito distante de qualquer inferno de um paraíso qualquer existo eu. Existirão tais palavras?

É a altura de escrever sobre a espera. A espera tem unhas de fome, bico calado, pernas para que as quer. Senta-se de frente e de lado em qualquer assento. Descai com o sono a cabeça de animal exótico enquanto os olhos se fixam sobre a ponta do meu pé e principiam um movimento de rotação em volta de mim em volta de mim de ti.

Nunca te conheci - assim explico o teu desaparecimento. Ou antes: separei-me de ti no solstício de um verão ultrapassado. As mulheres viajavam pela cidade completamente nuas de corpo e espírito. Os homens mordiam-se com cio. Imperturbável pertenceste-me. Assim nos separámos.

Não calhasse morrer um de nós primeiro que o outro porque ambos ao mesmo tempo será impossível enquanto não houver relógios que meçam este tempo e as horas fielmente se adiantarem e atrasarem.

Alguma vez pretendi dizer-te o que quer que fosse? Falava por paixão por tibieza por desgosto por claridade por frio por cansaço

nunca por pretender dizer o que quer que fosse.

Não me desculpo. Se já me cai o cabelo se já não sinto os ombros é porque o amor é difícil ou a minha cabeça uma pedra escura que carrego sobre o corpo a horas e desoras ostentando-a como objecto público sagrado purulento. O odor que as pedras têm quando corpos. O apocalipse de tudo quando amamos. O nosso sangue em pó tornado entornado.

O teu amor espreita o meu corpo de longe. De longe por gestos lhe respondo. Tenho raízes nos vulcões ternuras íntimas medos reclusos beijos nos dentes.

A pobreza surge dentro de nós embora cautelosos deitados de manhã e de tarde ou simplesmente de noite despertos. Ambos meu amigo estamos sentados neste momento perfeitamente incautos já. Contemplamos um país e sentamo-nos e vestimo-nos e comemos e admiramos os monumentos e morremos.

Inventei a nossa morte em toda a impossível extensão das palavras. Aterrorizei-me segundos a fio enquanto em corpo nu ouvindo-me adormecias devagar.

Com a precaução de quem tem flores fechadas no peito passeei de noite pela casa. Um fantasma forçou uma porta atrás de mim. Gemendo como um animal estrangulado acordei-te.

Enterro o meu terror como um alfange na terra. Porque é preciso ter medo bastante para correr bastante toda a casa celebrar bastantes missas negras atravessar bastante todas as ruas com demónios privados nas esquinas.
Só o amor tem uma voz e um gesto mesmo no rosto da ideia que me impus da morte.
És tu tão único como a noite é um astro.


Sobre a poeira que te cobre o peito deixo o meu cartão de visita o meu nome profissão morada telefone.

Disse-te: Eis-me.
E decepei-te a cabeça de um só golpe.

Não queria matar-te. Choro. Eis-me! Eis-me!

Luiza Neto Jorge
Os Sítios Sitiados
1973, ed. Plátano
fotografia de Ralph Eugene Meatyard

Masters of Horror: The Screwfly Solution de Joe Dante (2x07)

EVA SOLITÁRIA

Joe Dante está convicto de que o ser humano é mau. Eu concordo com ele.
No que toca, depois, aos filmes, há que aplicar essa ideia. Na primeira época de "Masters of Horror", ele apresentava-nos "Homecoming", aquele filme sobre zombies bons.


Na segunda época, apresenta-nos "The Screwfly Solution", adaptado de um conto de Alice Sheldon, e, como ouvimos no filme, uma vez mais vemos que, realmente "a humanidade é uma praga".
No que este filme tem de nefasto e mortífero, ele é um filme de terror. No resto, na maioria, é um filme de ficção científica. Já desisti um pouco de dar ênfase a esta questão, uma vez que a maioria dos filmes desta série não são propriamente de terror...
O filme inicia com um segmento documental acerca da screwfly, uma espécie de insecto particularmente mortífera, que elimina com grande rapidez e eficácia tanto gado como pessoas.
Depois, avança para a história de uma proliferação em massa de homicídios contra mulheres. Numa pequena comunidade no Texas, chega-se ao ponto de 1100 mulheres terem sido assassinadas. Bela (Linda Darlow), uma cientista e feminista, corre ao local para entrevistar os assassinos e recolher amostras de água e ar, convicta de que os homicídios terão uma origem biológica, ou seja, uma epidemia de loucura.
Também envolvidos nesta questão estão Alan (Jason Priestley) e Barney (Elliott Gould), dois cientistas que recentemente haviam desenvolvido uma enzima capaz de impedir a reprodução de um outro insecto mortífero.
Ainda que as localizações das áreas afectadas possam sugerir uma movimentação em enxame, tanto Alan como Barney ficam convictos de que o vírus que causava a loucura tinha origem laboratorial. Mais ainda, chegam à conclusão de que, tal como acontece com os insectos, este vírus actua sobre a sexualidade masculina, levando-a ao ponto da violência que se insurge contra o objecto de desejo.
E assim, rapidamente, a população feminina no mundo vai sendo assassinada, ao ponto de, a certa altura, sobrar apenas uma mulher, Anna (Kerry Norton), a esposa de Alan.


Este é um filme que poderia ser muito bom, apesar de nos apresentar algumas falhas. Por exemplo, não é muito clara a relação da sequência inicial sobre a screwfly com o enredo principal da história, e torna-se menos clara ainda, dada a convicção dos dois cientistas de que se trata de um vírus produzido em laboratório.
Mas, àparte estas questões, o filme vai correndo bem, até que se aproxima do fim, em particular, nos últimos dez minutos.
Confesso que, logo no princípio do filme, senti uma grande influência de "Twin Peaks" de David Lynch, em vários aspectos: uma série de corpos de mulheres deitados e enrolados em plástico, por exemplo, ou a imagem que aparece frequentemente da poeira na televisão, como acontece no genérico do filme, "Firewalk With Me". Mas, no final, se isto não é uma recriação de "Twin Peaks" então não sei o que seja. Uma série de aparições angelicais, que não primam pela qualidade dos efeitos especiais, que, de certa forma, vêm salvar a alma condenada da nossa Eva solitária, são o remate final à-la-David-Lynch.
Kerry Norton tem aqui uma prestação brutal, muito à vontade no papel de protagonista e muito capaz de se movimentar de uns ambientes para os outros, o que é particularmente importante quando estamos num filme em que a angústia e o peso da fatalidade são graduais.
Continuo sem entender muito bem o que faz Joe Dante entre os Mestres do Horror, confesso. Entendo-lhe uma certa tendência para a criação de cenários apocalípticos que têm sido assunto central de muitos filmes do género; mas não sei até que ponto a abordagem tem realmente a ver com ele. E, no fundo, um filme como este até podia ser assustador. Mas parece acima de tudo realmente ficção científica. Nada contra, até porque o filme, em muitos dos seus momentos, é bom. Mas não deixa de parecer, também ele, um tanto solitário no meio dos outros, tal como Anne termina.


Se te queres matar, porque não te queres matar

Se te queres matar, porque não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo polícromo do nosso dinamismo sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros...

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...

Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste;
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente:
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células nocturnamente conscientes
Pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atómica das coisas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...


Fernando Pessoa
(Álvaro de Campos)

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Método vanguardista para ficar sóbrio

Roger, o extraterreste acima, da série American Dad, cura a bebedeira ouvindo "a infinita sabedoria" de Dolly Parton, a cantar "Jolene". Um dia destes, há que experimentar.

Três Fibrilações


O espelho partiu
a moldura ficou
Agora vemo-nos
furiosamente

Meu coração e eu
vivemos juntos
mas não lado a lado
e nunca nos vemos
O sangue é um acordo vivo
que nos ata.

Agudas fibrilações
alteram a vermelha torrente
A pergunta é:
desaparecer porquê?


Ana Hatherly
Fibrilações
2005, ed. Quimera
poema visual de Ana Hatherly

O Sistema Interrogativo (IV)


Às vezes
no coração da noite
debruço-me sobre ti e interrogo
a sombra da tua pele.

Pergunto com o olhar, depois
os lábios movem-se,
toco-te, todo um ciclo
recomeça.

Que gesso aprisiona o sangue
que nos morde? Que navio espero
no final dos meus gestos?

O importante é saber
onde dói.

Egito Gonçalves
O Fósforo na Palha seguido de O Sistema Interrogativo
1971, ed. Dom Quixote
fotografia de Henri Cartier-Bresson

Pequeno Poema Ilógico e Verdadeiro


que os fantasmas atravessem as paredes
e as vozes também sim
que haja quem se esgueire entre gotas
e viva gota a gota também não

eu de que lado estou dentro de mim
se o coração me ensurdece
como palavra
a retardador?

e os braços
que a mim trago agarrados
são os meus
ainda

desembainhá-los
para que sejam espadas
tuas?

Regina Guimarães
Caderno do Regresso
2010, ed. Hélastre
desenho de Rogério Ribeiro

Sermos Nós e Sós


Vi-te rastejante e repulsiva, depois de uma cena
(de puro masoquismo),
implorares-me
por amor de Deus
não me deixes.
Se tu soubesses o quanto me foi constangedora
a tua humilhação.
Como tive de conter-me para não te esbofetear.
Oferecias-te (Judas!)
quando tudo quanto eu desejava era que te enforcasses
perante o meu silêncio -dignamente.
Mentes quando evocas lealdade -"Esse feliz rigor"
Nunca existiu: clareza. Entre nós. Apenas manipulação.
Entendes agora
por que a minha poesia se torna cada vez mais
crua; por que prescindo, nela, de ternas
efusões? -Cara lavada: rugas à mostra: e o tempo
nosso -a idade dos órgãos.
Sem transplantes
cirúrgicos.
Não digas que falo deste modo por nada termos a perder.
Temos -um amor sem retorno.
Indiferente à esperança e ao desespero.
Não há mais nele, como outrora, palavras endurecidas
como um pedaço de ti
na minha boca: só saliva. Sida -gritos de morte.
Envelhecemos
e nem as pequenas e brancas florescências dos nossos
sexos nos redimem: acredita e de uma vez
por todas: "A eternidade
abandonou-nos".


Eduarda Chiote
Órgãos Epistolares
2011, ed. Afrontamento
fotografia de Ralph Eugene Meatyard

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Ainda sobre "Adoecer"

"A doença dela [Elizabeth Siddal] é tipicamente a doença romântica: a mulher magra, que desmaia, e que se opõe como ideal à parideira, a mulher capaz de casar e assegurar o funcionamento de uma família. Nunca se percebeu bem que doença é: hoje facilmente se diria que é psicológica. É realmente a doença do mal-estar. A somatização desse mal-estar. A pessoa está num corpo e está mal, dilacerada, por uma sociedade onde não devia ter nascido. Nasceu no sítio errado, e provavelmente nunca teria encontrado um sítio certo para nascer. Está dilacerada por dois grupos de cavalos: a sociedade, por um lado, muito maligna para uma pessoa que faz o percurso que ela faz. E é a relação amorosa, por outro, que os dilacera aos dois. Porque é uma relação que não tem a ver com o tempo, não tem a ver com a convenção, que não tem a ver com os outros, e que tem um tal peso de destino que provoca depois em Gabriel a vontade tal de ser um homem livre daquela sombra que não o abandona. Sem a qual ele não consegue viver. Não é um acto de vontade, é uma pressão, é um reencontro, é qualquer coisa que ultrapassa as opções dos seres vivos. Essas duas coisas chegam bem para adoecer uma pessoa naquelas circunstâncias."

Hélia Correia em entrevista ao Ipsílon


quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Três livros de Ana Hatherly

Parece-me importante falar destes livros de Ana Hatherly, ou melhor, chamar a atenção para eles.



"Um Calculador de Improbabilidades" (2002) não é efectivamente a poesia reúnida de que continuamos à espera. Trata-se de uma antologia, bastante exaustiva, do trabalho da poeta no campo da poesia experimental, excluindo as Tisanas e a Poesia Visual. Este livro deve ser visto, penso, em conjunto com outros dois da autora, de lançamento recente, ambos na Quimera editores, que editou também "Um Calculador de Improbabilidades": "A Mão Inteligente" (2004), o álbum que reune a obra completa da autora em Poesia Visual; e "Obrigatório Não Ver" (2009), uma reunião de crónicas e intervenções na comunicação social da autora sobre a Poesia Experimental.
Agrupo estes três livros, no sentido não de olharmos para eles como súmula da obra de Ana Hatherly, para o que são insuficientes; mas no de olharmos para eles como documentos acerca de uma fase específica da poesia portuguesa, na qual Ana Hatherly teve lugar importante, senão central.
Poderia acrescentar a este conjunto uma série de outros livros, mas, infelizmente, encontram-se esgotados e sem reedição; o que aliás denota a falta de cuidado dos editores em fornecer aos leitores a informação essencial sobre a cultura poética.




Centrando-me agora em "Um Calculador de Improbabilidades", ele funciona como realmente um olhar sobre a produção da autora em domínios que, ainda hoje, carecem de algum entendimento por parte do público. Este livro pode muito bem ser uma reparação, pelo menos parcial, desta falha. Aqui temos um percurso que vai desde 1959, data em que se publica o primeiro poema experimental da lavra de um autor português, a própria Ana Hatherly; e termina em 1989.
Da selecção de livros aqui apresentados, há alguns que nos surgem apenas fragmentados, caso de "Sigma" (1965) ou "Eros Frenético" (1968); e outros que nos aparecem na íntegra, até fac-similados, caso de "Estruturas Poéticas- Operação 2" (1967), "Anagramático" (1970) ou "O Cisne Intacto" (1983). Pelo meio, existe a importante recolha de poemas publicados dispersamente, bem como textos que estiveram na basa de happenings, performances, e, claro, alguns poemas-ensaio e poemas em prosa que, em última análise, estão na base das Tisanas.
Assim sendo, como acima disse, neste livro pressente-se uma intenção documental. Esta ideia é reforçada pela inclusão do "Roteiro" inicial, escrito pela própria Ana Hatherly, em que nos explica as ideias que estiveram na base dos livros que ora nos mostra. Assim se definem muitas das estratégias e bases teóricas da Poesia Experimental, o que é particularmente notório em "Estruturas Poéticas- Operação 2" e em "Anagramático".
Questões como a resposta do poema perante um "programa" e uma "base teórica" ficam aqui bem explícitos, e podemos entendê-los não só como génese de uma criação poética, mas também como uma reivindicação social e, acima de tudo, cultural. O problema essencial da Poesia Experimental parece-me ser essencialmente o seu cariz conceptual; já que este obriga a um largo conhecimento das normas que geram a criação. Assim sendo, os poemas ficam ameaçados pela falta de informação que o meio literário criou em torno deste movimento, que precisava dessa informação talvez mais do que qualquer outro movimento.
Mas, além de nos mostrar as ideias atrás da Poesia Experimental portuguesa, este livro também é capaz de nos mostrar que, para todos os efeitos, toda a poesia no fundo responde perante determinadas "estruturas". Assim sendo, entender estas estruturas é muitas vezes entender como funciona a criação poética, independentemente do seu cariz, conceptual ou não.




Quando colocamos este livro perante "A Mão Inteligente", entendemos por que, realmente, a Poesia Visual não deixa de ser poesia. Para este efeito, parece-me particularmente importante comparar "A Mão Inteligente" com o capítulo "Leonorana" de "Anagramático". Esta ideia vem contrariar muitos teóricos, que defendem que a Poesia Visual não é poesia pois não é linguagem. Ao ver-mos o trabalho pictórico de Ana Hatherly, e ao entendermos o "programa" que o define, percebemos que efectivamente o pictórico não é menos linguagem e, bem pelo contrário, será uma linguagem mais independente de códigos linguísticos, capaz, portanto, de comunicar sem necessidade de tradução; o que fica, aliás, bem explícito no ensaio que precede "A Reinvenção da Leitura" (1975), segundo livro de Poesia Visual da autora. Porque fica claro nestes livros que o propósito maior da poesia deve ser a capacidade de comunicar, de expressar alguma coisa; e assumir que apenas a junção de palavras num texto é capaz disso, é uma ideia redutora. E, aliás, essa capacidade de comunicação fica provada pelas "reescritas" que Ana Hatherly opera sobre o famoso poema de Camões em "Leonorana", pois a "resposta" é ainda uma forma privilegiada de comunicar com uma obra, de com ela manter um diálogo.
A questão da percepção não passa ao lado destas colectâneas, também. Aqui entendemos como a organização de um texto numa página é também uma forma de o definir; principalmente quando sabemos que a Poesia Experimental tantas vezes se assumiu dependente da leitura em voz alta. É o caso de "O Cisne Intacto", recolhido em "Um Calculador de Improbabilidades", onde os textos são impressos com espaços em branco, com palavras fragmentadas: estas técnicas vêm, na verdade, definir um ritmo (Não esqueçamos que o primeiro livro de Ana Hatherly, de 1959, não incluído em nenhuma das recolhas, se chamava "Um Ritmo Perdido".).




Por fim, "Obrigatório Não Ver", recolhe pela primeira vez uma quantidade de documentos que Ana Hatherly conseguiu manter no seu espólio, documentos esses relativos a programas de televisão, de rádio, crónicas e textos sobre música. Este está longe de ser um dos primeiros ou um dos mais completos trabalhos ensaísticos de Ana Hatherly, que, ao longo da sua carreira, tem dedicado muitas publicações a estudos sérios sobre Poesia Experimental, mas também sobre a Poesia Barroca. Mas, como acima disse, a maioria desses trabalhos encontra-se esgotada e não reeditada. Mesmo assim, para quem conseguir em alfarrabistas adquirir esses livros, verá que "Obrigatório Não Ver" tem uma vantagem sobre eles: é que sendo textos dirigidos a um público em princípio não especializado na matéria, eles apresentam uma simplicidade que os torna muito facilmente compreensíveis. O caso de Ana Hatherly será um pouco uma excepção, pois os seus ensaios propriamente ditos não incluem linguagem hermética entendível apenas por quem estuda Letras, bem pelo contrário. Mas, mesmo assim, "Obrigatório Não Ver" destaca-se. De facto, é uma recolha fragmentada e que não inclui a totalidade da informação necessária para perceber a génese da Poesia Experimental. No entanto, contém sintetizada a informação essencial sobre a mesma, os aspectos realmente comuns a todo o movimento, que inclui nomes como E.M. de Melo e Castro, Salette Tavares, António Aragão, Herberto Helder, entre muitos outros. Assim sendo, não temos aqui as chaves para entender cada caso concreto, mas entendemos o que os une; e, mais do que isso, aqui reunimos uma espécie de bibliografia essencial para entender o movimento, especificando dentro da obra de cada autor, algumas obras mais significativas. Isto é particularmente importante em casos de pessoas que apenas brevemente se relacionaram com a Poesia Experimental, como é o caso de Herberto Helder, de quem podemos isolar a "Comunicação Académica" (1963) e "Electronicolírica" (1963, título alterado para "A Máquina Lírica".)
Penso que, mais do que serem uma oportunidade de entender melhor o movimento da Poesia Experimental, estes três livros de Ana Hatherly são também uma oportunidade para entender melhor determinada parte da cultura, não só poética, que em último caso é representativa também de uma grande contestação social e política, como acontece com, no fundo, toda a cultura.
E, claro, está de parabéns a editora Quimera, que afinal aceitou lançar estes projectos, com a importância que me parecem realmente ter.