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quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Tene me (fragmento)


Aconteceu-me ver matéria aflita,
Águas de um rio levando os afogados
Compadecidamente.
Com as mãos nos seus fundos, oscilando,
Passando os corpos umas para as outras,
Desfolhando-os aos poucos,
De maneira
Que aquilo que atinge finalmente o mar
Nada recorda já. Águas que
Despem a dor aos mortos,
Que passeiam
A sua lividez como uma flor.
Vi, com meus olhos, os desfiladeiros
onde despenham os executados,
abrirem gentilmente a sua cova
de areia e de erva,
para que nele repousem
a estoirada cabeça. O chão ondula,
e a sua piedade
tão desumana
acolhe-os como um berço.
Vi, que sei eu? a lâmina afastar-se
do pequeno cabrito.
Crias houve
que mamaram das pedras, separadas
que se acharam das mães por caçadores.

Hélia Correia
Apodera-te de mim
2002, ed. Black Sun
fotografia de Polly Borland

sábado, 2 de março de 2013

A Terceira Miséria


32.
                                      Estão as praças,
Como ágoras de outrora, estonteadas
Pela concentração dos organismos,
Pelo uso da palavra, a fervilhante
Palavra própria da democracia,
Essa que dá a volta e ilumina
O que, por um instante, a empunhou.
Oh, os amigos, os abandonados,
Esses, os desatinados ao extermínio,
Esses os belos despojados, nus,
Os que, mesmo nascendo no Inverno,
Pouco sabem do frio, gente que dorme
Na sombra do meio-dia, ouvindo o canto
Das cigarras, o canto sobre o qual
Hesíodo escreveu. Gente do Sul
Gente que um dia se desnorteou.


33.
De que armas disporemos, senão destas
Que estão dentro do corpo: o pensamento,
A ideia de polis, resgatada
De um grande abuso, uma noção de casa
E de hospitalidade e de barulho
Atrás do qual vem o poema, atrás
Do qual virá a colecção dos feitos
E defeitos humanos, um início.

Hélia Correia
A Terceira Miséria
2012, ed. Relógio d'Água
pintura de Paula Rego

domingo, 13 de janeiro de 2013

A Pequena Morte (9)


Pode a serenidade destas rosas
atravessar a noite
sem que a esfolhem
os comovidos ares?

Sem que este perigo
_este sabor a perigo_
empalideça as mais
sombrias pétalas?

Ou esperarão, acaso,
com seus olhos
impotentes de flor,
com seu disforme e pútrido
alimento,
esperarão, inclinados,
exalando perfumes tumulares?

Vigiarão teu cerco, salivando,
escorrendo ânsias carnais;
seguirão o teu corpo,
palpitando
inchadas como um sexo
ouvindo as garras?

Assistindo ao amor,
aos instrumentos
e paixões do amor,
à crueldade,

mordem, pedindo sangue,
essas obscenas,
ferozes bocas:

com sua antiga vocação
de rosas
_a de vestir
cadáveres,
a de ornar
os vencidos despojos,
virão, sorrindo,
sobre a minha morte.

Hélia Correia
A Pequena Morte
(publicado com 'Esse Eterno Canto' de Jaime Rocha)
1986, ed. Black Sun
pintura de Constant Montald

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Indignação


 
O horror calou tudo, declararam.
Depois de Auschwitz
Continuámos a falar, porém – sem ambição.
Reconhecendo o inalcançável,
Baixando o olhar.
Pois o que pode a fala? Por que dizem
Que, cantada, faz de arma?
Se com ela não nos municiamos.
Se, com a morte de uma Grécia antiga,
Perdemos o condão de nomear
Deuses e sentimentos e até
As pequenas moléculas, enfim, nomear o real
Que, naquele caso, incluía o tremendo e a maravilha?

 
Esses, os que levavam para a praça  
Quezílias, sim, projectos e também,
E, sobretudo, uma noção de polis
E de uma paridade vigiada,
Severamente vigiada.
Os Gregos, esses
Que narravam o medo para que o medo
Se tornasse visível, prisioneiro
Na teia do poema,
Se não compreensível, pelo menos
Transformado em espectáculo – essa Grécia,
Essa Atenas perfeita, mais perfeita
Que qualquer utopia, a rapariga
Inesperadamente transformada
Numa ruína,
Esses – que não existem

 
E nos deixaram assustados, sós,
Sob o sem-rosto, sós,
Sem as ferramentas adequadas,
Sem pensamento,
Sem esses deuses temperamentais
Que tomavam partido nos combates,
Nós, os abandonados, os que não
Sabem sequer como aplacar
E a quem,
Nós, os emudecidos,
Irmanados com os sem-terra, nós,
Os futuramente esfomeados,
Bárbaros com os pés no alcatrão,
Bebedores de petróleo, como pode

 
De novo a praça,
A Ágora, juntar-nos?
 
Transformados em porcos, por feitiço,
Pela malevolência,
Exactamente
Como na Odisseia,
Não sabemos
- e os Gregos esqueceram –
Como é que tal feitiço
Se desfaz?

Hélia Correia
poema editado no 'Público' aquando da Manifestação de 22 de Janeiro de 2012, que me parece importante relembrar hoje, dia de reunião de Conselho de Estado; juntamente com este desenho do pintor flamengo James Ensor, que, para nós, terá muito sentido

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Tene Me (fragmento)


Mesmo o ouro, o terrível, o que faz
correr baba dos dentes,
o que cai
sobre os impérios como uma mordaça
e entra nas traqueias, de maneira
que o próprio respirar sufoca os homens,
mesmo o ouro, essa febre,
se comove.
Deita-se às vezes junto aos enterrados,
cobrindo-lhes o rosto.
Há um sorriso
que constitui toda a felicidade
do morto,
amado pela sua máscara.

Hélia Correia
Apodera-te de Mim
2002, ed. Black Sun
pintura de Francesco Goya y Lucientes

quarta-feira, 14 de março de 2012

Hélia Correia: A Terceira Miséria

UMA POETA EM TEMPOS DE INDIGÊNCIA

Durante cerca de dez anos, Hélia Correia publicou poemas dispersamente por vários jornais e revistas, e ainda que, em 1981, a publicação de 'O Separar das Águas' tenha funcionado como uma escolha da autora pela prosa, talvez seja justo dizer que mesmo na sua escrita de ficcionista, Hélia não abandonou a poesia -se na poesia, mais do que na prosa, parecem inserir-se os seus livros. Poesia publicada também houve, ainda que rara: 'A Pequena Morte' (1986) publicado juntamente com 'Esse Eterno Canto' de Jaime Rocha, e 'Apodera-te de Mim' (2002).


As raízes da formação helenística de Hélia Correia eram nítidas em 'Apodera-te de Mim', e o seu livro mais recente, 'A Terceira Miséria', acabado de lançar, retoma a sombra da Grécia. No entanto, tanto à partida como depois da leitura, 'A Terceira Miséria' parece ocupar um lugar muito específico na poesia que conhecemos de Hélia. Reparemos que os dois livros prévios são edições discretas e de tiragem reduzida (Ainda que de um apurado cuidado gráfico, típico das edições da Black Sun.) ao passo que agora, pela primeira vez, Hélia publica poesia numa edição de maior visibilidade, da Relógio d'Água, que talvez permita a este livro uma difusão maior do que a dos outros.
Para entender uma possível razão para isto, só mesmo lendo o livro. 
Vista de determinado ponto de vista, toda a obra de arte tem uma dimensão política. 'A Terceira Miséria' é um poema só, dividido em 33 fragmentos, que se debruça sobre a Grécia -e não só- de forma a dar-nos uma dimensão de que mundo é este em que actualmente vivemos. Se se torna quase chavão dizer que o desconhecimento do passado é uma condenação a repeti-lo, este poema tem a eficácia de mostrar-nos que esse chavão não deixa de traduzir uma realidade. No centro do poema fulgura a plenitude clássica da Grécia no seu apogeu cultural. Esse centro fornece-nos as linhas mestras para um desenho da actualidade não necessariamente grega, mas europeia

Sofremos, sim, de idêntica indigência
Da ruína da Grécia.
(p.13)

e quem sofre somos

Nós, os ateus, nós, os monoteístas,
Nós, os que reduzimos a beleza
A pequenas tarefas, nós, os pobres
Adornados, os pobres confortáveis,
Os que a si mesmos se vigarizam
(p.13)

o que é ainda uma admirável e natural descrição de nós- nós os europeus em crise, sujeitos ao monopólio económico, à corrupção e à perda da independência, nós, sobretudo, que nos perdemos do passado enquanto herança cultural e, daí, política.
A ideia de que é, no fundo, a esta questão que 'A Terceira Miséria' se refere fica clara logo no primeiro fragmento, onde o eco de Hölderlin origina uma espécie de constatação a um tempo angustiada e irónica

Para quê, perguntou ele, para que servem
Os poetas em tempo de indigência?
(p.7)

precisamente esta será a interrogação que origina o poema, uma vez que todo ele é, mais directamente por vezes, outras menos, uma resposta a estes primeiros dois versos

                                Às suas mãos
Atenas viu os quartos, as cozinhas,
A roupa de seus filhos devassados,
As passadas de gelo atravessando,
Cortando os corredores e os corações.
Outra vez conquistada, olhando ainda,
No pequeno intervalo da servidão,
Pela janela, para o fim da rua,
Onde nada se avista. Pois, tal como
Os sentidos do corpo se compensam,
Tomando, como tomam os guerreiros,
O lugar do caído, assim também
Os sentidos da alma se engrandecem
E alcançam o que tanto querem ver:
(p.27)

lemos no fragmento 21. Momentos como este não faltam ao longo de todo o poema, e são bastante importantes, no sentido em que nos mostram que este poema não intenta contrapor um tempo de indigência com um tempo de prosperidade. Antes 'A Terceira Miséria' contrapõe dois tempos de indigência em que a oposição existe na forma como essa indigência de resolve. Essa resolução é aquela que encontramos na explicação das três misérias:

                                           Sim, foi essa
A primeira miséria, a deserção
Dos deuses. A segunda, a sua morte,
Já na morte de Pã anunciada
Pelo lamento dos bosques, o clamor
Lutuoso das ilhas do Egeu.
(p.24)

A terceira miséria é esta, a de hoje.
A de quem já não ouve nem pergunta.
A de quem não recorda. E, ao contrário
Do orgulhoso Péricles, se torna
Num entre os mais, num entre os que se entregam,
Nos que vão misturar-se como um líquido
Num líquido maior, perdida a forma,
Desfeita em pó a estátua.
  
(p.29)

Contrapor estes dois fragmentos é encontrar uma das mais interessantes características do poema. Se repararmos bem, à superfície, este contraponto cruza, além de vários tempos, vários universos, sendo que as primeiras misérias se desenrolam no plano da mitologia, ao passo que a terceira miséria pertence a um plano bem concreto e realista. No entanto, um outro entendimento desta separação de universos pode dar-nos outra possível pista para a leitura de 'A Terceira Miséria': a mitologia era uma parte crucial da cultura grega, e ela representa uma forma de viver, uma forma de olhar o real, forma essa que, no tempo desta terceira miséria, já se perdeu. Se para os gregos os deuses eram uma forma de olhar e resolver a realidade, este tempo com que estamos a lidar, é um tempo em que os deuses, naquele sentido, se perderam, o que pode ser uma maneira de reduzir[mos] a beleza a pequenas tarefas, como se lia no fragmento 7.
No final do livro, encontramos uma Dívida confessada, onde Hélia assume os ecos que neste poema se fazem sentir, de Maria Gabriela Llansol, Hölderlin, Nietzsche, Ésquilo, Glenway Wescott, Plutarco, Tucídides e de Lord Byron. Este último, Byron, é citado pelo seu último poema, On This Day I Complete My Thirty-Sixth Year e onde o chamamento da Grécia que lhe marcou a vida e a escrita se faz sentir. A sua presença em 'A Terceira Miséria' é, de certa forma, das mais significativas. Este poema é escrito no século XIX, já longe da Antiguidade Clássica, quando a Grécia era já um país entre vários da Europa. No entanto, é Byron, poeta, quem diz que a Grécia está desperta. Esse mesmo sentimento de que, sob a Grécia de hoje, que se encontra numa situação semelhante ou pior que a de Portugal e, já agora, do resto da Europa, existe ainda uma possibilidade de recuperar a intensa cultura

«Que o meu corpo não seja», escreveu ele,
«Levado, entregue a túmulo inglês.»
Mas foi. Que pode um voto, que podia
Um último poema, dito a custo,
Por quem se ergueu do leito nessa casa
Que o fogo em breve ia destruir,
O que pode o desejo contra a ordem?
Que segurou nos braços essa Grécia
A quem ele deu tudo, quando as urnas,
A do corpo e a das vísceras embarcaram?
(p.35)

lemos ainda no encalço de Byron. A importância da presença deste poeta no poema de Hélia Correia é, como acima disse, bastante, a meu ver, e por isto: primeiro, porque Byron, como se disse, escreve o seu último poema já depois da Antiguidade Clássica e segundo, e bastante mais importante, porque a referência a Byron, que surge a partir do fragmento 27 (Sendo que o poema são 33 fragmentos.), quase no final,. como que encaminhando-nos discretamente para a resposta à pergunta principal deste 'A Terceira Miséria', da necessidade de poetas em tempos de indigência

Para onde olharemos? Para quem?
Certo é que Atenas se mantém oculta
E de algum modo intacta, por debaixo
Do alcatrão, do ferro retorcido.
(p.36)

E esta permanência, que Byron viu no seu último poema, e que Hélia explora neste seu, é talvez a única e grande utilidade dos poetas em tempo de indigência: a de ver e ressuscitar essa Atenas simbólica que existe sobre a actual, é a de recuperar toda uma carga cultural que está perto de se perder completamente, de não deixar esquecer aquele que foi noutros tempos o grande caminho para vencer a adversidade e o caos. A terceira miséria, onde culminam a primeira e a segunda, é, no fundo, uma miséria a que só os poetas conseguem apontar uma saída, como se a sua função fosse não deixar o tempo perder-se do tempo.
Mas mais do que esta mensagem que fica patente em 'A Terceira Miséria', interessa ler o poema com atenção e apreciá-lo em toda a sua intensidade, que excede a própria mensagem, e nos deixa um testemunho potente e fulgurante que, mesmo que se situe no tempo actual, é um testemunho sobre toda uma cronologia que começa na Antiguidade Clássica e termina hoje, escrito com uma força tão acutilante que nos chega a dar a impressão que Hélia Correia pudesse ter atravessado efectivamente todo este tempo.
É difícil falar deste livro no contexto da poesia de Hélia Correia, uma vez que dimensão publicada desta é reduzida, mas 'A Terceira Miséria' parece de alguma forma retormar 'Apodera-te de Mim' que, como acima se disse, procurava já a herança grega. A linguagem de Hélia é aqui mais lapidar e directa, sem por isso perder a sua subtileza, a sua tensão e a sua incandescência que oscila entre a beleza extrema e um realismo quase grotesco, que no prazer exacerbado dos sentidos faz fulgurar o miserabilismo que também passa por este poema. Além disso, talvez mais do que os outros livros, este livro marca um diálogo aberto e rico com várias figuras do pensamento e da literatura. Esse diálogo acaba por intensificar a relação que este poema cria com o tempo, no sentido em que, recuperando o pensamento dessas figuras, Hélia recupera também aquilo que, no tempo delas, era comum a este tempo, mostrando-nos que, no fundo, não se trata dessas figuras estarem à frente do seu tempo, mas sim do facto desse tempo ser, em muito, igual ao nosso, senão o mesmo que o nosso.

No resto, este poema vai de encontro àquilo a que Hélia Correia nos habituou nos poemas que dela conhecemos, mas também na sua prosa que, agora fica provado por completo, é profundamente poética: uma imagética fortíssima, ligada muitas vezes a situações de violência extrema, numa certa tendência para o caos, imagética essa associada a um outro lado analítico e mais ligado à dimensão psicológica e a um certo contexto cultural das imagens já dadas e que, no caso deste poema, são essenciais para ele, senão a própria motivação dele.
Se este livro servir, como para mim se justifica pensar, como uma forma de marcar uma posição e uma opinião, então ele é certamente uma das opiniões mais informadas, sensíveis e inteligentes sobre este tempo assustador em que vivemos, e não deixa de ser uma irónica resposta para a grande pergunta deste poema, que uma opinião desta natureza venha de uma poeta. Mas talvez uma opinião assim só uma ou um poeta a pudesse dar. E por isso, valeu a pena que deste poema se fizesse uma tiragem mais generosa e mais difundida, por mais que graficamente menos interessante. E claro, vale sempre a pena que se dêem a conhecer poemas de uma poeta, ela sim, verdadeiramente obscura -no sentido em que quase não temos acesso aos seus poemas- poemas esses que só podem deslumbrar-nos, tanto pela sua violência como pela força da sua beleza. O pretexto pode ser o pior, mas 'A Terceira Miséria' é um grande poema e eu só tenho a lamentar que o estrondo que este poema é não cause um estrondo em quem mais precisava dele.

sexta-feira, 2 de março de 2012

A Terceira Miséria, 23



A terceira miséria é esta, a de hoje.
A de quem já não ouve nem pergunta.
A de quem não recorda. E, ao contrário
Do orgulhoso Péricles, se torna
Num entre os mais, num entre os que se entregam,
Nos que vão misturar-se como um líquido
Num líquido maior, perdida a forma,
Desfeita em pó a estátua.



Hélia Correia
A Terceira Miséria
2012, ed. Relógio d'Água
pintura de Frans Snijders

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Hélia Correia: A Compaixão

AS FORÇAS INVISÍVEIS


No livro de "Contos" de Hélia Correia, editado em 2008, encontramos um texto que, percebemos, se aproxima mais da novela do que do conto. "A Compaixão", assim se chama esse texto, merece, de alguma forma, ser isolado dos restantes contos do livro, não só por uma questão de extensão -mais de 50 páginas -como também porque é um texto realmente muito forte e muito específico -mesmo num conjunto de apenas 6 textos, em que todos são auto-suficientes e obedecem a especificidades, ao mesmo tempo que são unidos, tal como "A Compaixão", por determinadas características, que são linhas-mestras da escrita de Hélia Correia.
"A Compaixão" que, ao que entendo, terá sido escrita mais ou menos na mesma altura que "Lillias Fraser" (2001), um dos melhores romances da literatura portuguesa contemporânea e, como lemos na nota final do livro de contos, andou perdia durante algum tempo. Conta-nos a história de Regina, uma rapariga que, numa crise do seu casamento se vai refugiar a uma estalagem em Espanha. Nessa noite, a electricidade falha e Regina acaba por se cortar numa mão. Para estancar a hemorragia, ela pega num lenço de pano-cru. Regressando a Lisboa, Regina começa a adoecer, sofrendo hemorragias internas, delírios e dando sinais de neurastenia e de uma inércia doentia. Enquanto é rodeada pela tia e a mãe e pelo ex-marido, Filipe, Regina percebe que a origem dos seus inexplicáveis sintomas está no momento em que limpara a ferida da mão com o pano encontrado na estalagem. Na segunda parte da novela, Regina e Filipe regressam a Espanha, à estalagem, a fim de descobrirem a possível história daquele pano e também de o restituir ao armário onde ele estava originalmente guardado. E assim se cruzam com a história da casa da estalagem e das duas mulheres -uma a viver ali, outra a viver em Portugal- que a haviam habitado.
Esta novela, apesar da decisão da autora de não a publicar autonomamente, pode muito bem estar no mesmo patamar que outras, como "O Número dos Vivos" (1982), "Montedemo" (1984) ou "Bastardia" (2005), que são alguns dos textos que afirmaram e confirmaram Hélia Correia como uma das mais originais e mais poéticas prosadoras da nossa literatura. Neste texto, como na maioria dos de Hélia, encontramos, para começar uma linguagem densa, cuja construção minuciosa conjuga o poder das imagens com o das palavras e da sua musicalidade, criando um jogo entre a escrita e o conteúdo em que um é indestrinçável do outro.
Em "A Compaixão", voltamos também a sentir algumas das obsessões da escrita de Hélia Correia, obsessões que passam pelo sangue, pela visceralidade, por uma treva que tenta não ser desvendada: há nesta escrita uma certa fascinação pelo grotesco e pela violência, que pautam a relação das pessoas (Que são pessoas mais do que personagens.) com o mundo.

Mas a chave dos livros de Hélia Correia está frequentemente, e isso volta a acontecer em "A Compaixão", nalgo de invisível e de quase-indizível. Notamos aqui uma espécie de força espiritual, que passa da casa da estalagem para o pano e do pano para Regina, através do sangue. É essa força, que tem a leveza e o poder de uma premonição, ou de um pressentimento, que realmente move Regina ao longo do texto, e também aqueles que a rodeiam. Aquilo que é sentido é aquilo que é perseguido, contra todas as racionalizações e todas as lógicas mais imediatas.
E essa força existe não só nas pessoas, como no próprio espaço -um pouco o que acontecia na novela "Villa Celeste" (1983) ou no romance "A Casa Eterna" (1991). E no reconhecimento da existência dessa força, bem como na atenção que lhe é dada em consequência, está uma boa parte da estranheza da escrita de Hélia Correia, e, claro da novela de que aqui falo. Porque estes textos, magistralmente escritos, conduzem-nos através de algo que nunca podemos verdadeiramente compreender, algo que será explicado, mas não totalmente explicado, mesmo depois do livro ter terminado. E é por isso que estes textos continuam, depois de terminados, precisamente.

sábado, 9 de julho de 2011

Boas notícias

Apesar de ter dito que "Ruas", de 2009, seria o seu último álbum, Mísia confirmou já a edição de mais um disco para o outono deste ano. "Senhora da Noite" será o título, seguindo um espectáculo que Mísia tem vindo a interpretar por vários palcos europeus.
São boas notícias, já que Mísia não deixa de ser a mais complexa fadista, com um projecto que, desde sempre, tem sabido cruzar da melhor maneira o fado quer com outras sonoridades, quer com a poesia e com densos imaginários de que nos dão conta as fotografias que acompanham os álbuns e os videoclips.
Abaixo fica um teaser do que será o sucessor de "Ruas". Com imagens de Francisco Aragão, colaboração nada recente, Mísia mostra-nos duas canções: a primeira, "Senhora da Noite", que dá título ao álbum conta com um interessante poema de Hélia Correia; a segunda, "Simplesmente", tem letra de Amélia Muge.
Pelas previsões, não ficaremos desiludidos.



"Lillias Fraser": O Perigo de Revelar o Nome

Recentemente, reabri "Lillias Fraser", um dos melhores (Senão o melhor mesmo.) romance de Hélia Correia. Na altura em que o li pela primeira vez, aqui escrevi um texto (Este.) com algumas notas de leitura sobre o livro, editado em 2001. No entanto, quer-me parecer que houve uma questão que descurei (O que não será tão estranho assim.) ou a que, pelo menos, não dei a devida importância. Creio que acontece assim com os grandes livros: e
xigem-nos que voltemos a eles para se revelarem totalmente a nossos olhos. E, sendo que, para mim, é inquestionável que "Lillias Fraser" é um grande livro, quer-me parecer que, de cada vez que o ler, e certamente o lerei mais vezes ainda, encontrarei algo de novo.
Neste caso, já um pouco descentrado da ideia da terceira visão que, numa primeira leitura, me pareceu um dos aspectos cruciais para entender tanto o romance como a personagem de Lillias; o que me chamou a atenção foi a questão da identidade. O problema da identidade é assunto de muitos livros, senão de todos mesmo, e não tenho dúvidas de que "Lillias Fraser" será um dos exemplos mais complexos e mais bem-sucedidos desse problema.
Hélia Correia já antes havia abordado, e de várias perspectivas, o problema da identidade: em "O Número dos Vivos" (1982), acompanhamos o percurso de uma rapariga do campo que se infiltra numa família rica e assim se vai metamorfoseando; em "Soma" (1986) encontramos um indivíduo que, no limiar da velhice se confronta com os seus valores de juventude; em "A Casa Eterna" (1991) uma mulher vai visitar a casa onde um amigo poeta havia nascido e onde havia voltado para morrer, na tentativa de reconstruir a sua vida. E, mesmo depois de "Lillias Fraser", Hélia voltou à questão identitária em livros como "Bastardia" (2005) e, de certa forma, mesmo em "Adoecer" (2010).

******

Em "Lillias Fraser", a questão da identidade é de longe muito mais directa do que em qualquer outro livro, já que ela se assume, através, por um lado, do silêncio de Lillias, poucas vezes quebrado ao longo da sua história, e, por outro lado, pela impossibilidade da menina revelar o nome verdadeiro.
Filha e irmã de rebeldes de guerra, na Escócia, ao tempo da Batalha de Culloden, Lillias é salva pela sua capacidade de antever a morte das pessoas quando esta se aproxima. Escondida por várias pessoas, é-lhe dito a certa altura que não fale. Mas aquilo que era uma maneira de ninguém reparar que Lillias ali estava é interpretado pela própria como uma ordem permanente e, na grande maioria das páginas encontramos Lillias num mutismo estóico que, quando é quebrado, mais não revela do que trivialidades, sem que a rapariga alguma vez manifeste algo de verdadeiramente importante.
O fim da batalha amaldiçoa o nome Fraser em território escocês, e os acolhedores de Lillias acabam por lhe atribuir outros apelidos, sendo McLean o mais duradouro, que se perpetua até depois da sua vinda para Portugal, onde fica, inicialmente, a viver no Convento das Inglesinhas, em Lisboa. A sua estadia no convento termina com o Grande Terramoto. Lillias acaba por juntar-se a um grupo que tenta escapar à destruição causada pelo terramoto. Entre essas pessoas, encontra-se Cílicia Peres, que acabará por adoptar Lillias, dando-lhe um novo nome: Lília Peres.
A personalidade fortíssima da rapariga é evidente, mas manifesta-se sempre por outros modos que não a fala. Ela mantém o seu silêncio, nunca sequer protestando acerca dos novos nomes que lhe atribuem. Parte do seu medo em revelar a sua verdade parte também de alguns dissabores que tivera por causa do seu dom, sendo que este dom, por mais nefasto que fosse ou que pudesse parecer, será inevitavelmente uma parte dessa verdade íntima.
A questão do nome assume, aqui, como é claro, uma dimensão simbólica. Sabemos que na vida real, o nosso nome pouco diz de nós ou da nossa verdade. No entanto, no romance, somos levados a olhar para o nome como uma identidade e Lillias, tendo vários nomes, acaba por não ter nenhum, ou seja: quando lhe atribuem outros nomes, outras personalidades, estão, na realidade, a anular a verdade, a verdadeira identidade e esta passa a existir apenas dentro da própria Lillias Fraser, sem que mais ninguém tenha acesso a ela.
Pressente-se ao longo do livro que, tanto o mutismo quase contínuo como a não resistência aos novos nomes não resultado do medo que Lillias sente. Não é forçado que assim pensemos pois o momento em que Lillias recebe a "ordem" de não falar é um momento de grande medo, pois, ainda criança, percebera que estava a ser perseguida. E se essa primeira perseguição era justificada por uma questão familiar, a verdade é que outras perseguições se dão posteriormente, essas justificadas pelo dom que Lillias tem, de antever a morte. Se o medo, ou mesmo uma certa apreensão, não passam, é natural que a menina perpetue o silêncio e que não se oponha a ter o verdadeiro nome anulado.
A entrada em cena de Jayme, o filho desaparecido de Cilícia vem trazer, no fundo, uma alteração a um tempo ligeira e astronómica. Movida por um certo sentimento passional, Lillias muda de comportamentos, parecendo tornar-se mais "leve", menos introspectiva ou menos amedrontada, acompanha Jayme, ouve-o, reage a ele, sem, no entanto, quebrar significativamente o seu mutismo. E sem lhe revelar o nome, ainda que disso pudesse parecer muito próxima.
Se o seu medo por um lado se atenua, por outro não se dissipa.

Confirmaremos que este medo tem razão de ser mais à frente, quando Lillias, acompanhada de Cilícia, se encontra entre tropas escocesas em Portugal.
Na cena em que Lillias é levada junto do general escocês, ela ouve, pela primeira vez em muitos anos, a sua língua de nascença, com a mesma pronúncia. Aqui, a língua assume a mesma importância que o nome: por mais que não tenha uma importância tão extrema no quotidiano, ela apresenta-se-nos como mais um detentor de identidade, um elemento ligado ao íntimo e ao verdadeiro. Ou pelo menos é assim que Lillias reage: quando lhe perguntam o nome, responde "Lillias Fraser".
É a primeira vez, desde que fugira da Escócia, revela o seu nome a alguém. Mas vemos que a sensação de conforto e de intimidade que lhe fora sugerida pela língua se revela falsa: o nome Fraser ainda está ligado aos rebeldes e Lillias tem, de novo, que fugir, para evitar ser assassinada:

"No estado de alegria em que se achava, Lillias disse o seu nome verdadeiro. (...) Um tal esforço de grandeza de alma deixara Lord Loudon tão exausto que o seu humor sofreu um duro golpe. (...) Ela chegou e respondeu-lhe: «Lillias Fraser». O general suportaria tudo menos o nome Fraser outra vez"


E assim Lillias confirma o perigo de revelar o seu nome verdadeiro. Outras interpretações poderiam haver, nomeadamente a de que o apelido Fraser estava associado à guerra, portanto, a uma forma de violência, mas também a uma forma de resistência pois, seja como for, ambas são difíceis de aceitar pelo comum dos mortais. E, assim sendo, o nome que tem um passado de violência, dela não pode fugir nem no presente nem no futuro, pois é inegável que o impedimento de revelar o nome verdadeiro é de uma violência extrema, ainda que de outro tipo.
E, associada com esta problemática, surge-nos uma outra, que é a do reconhecimento: no final do livro, Lillias cruza-se com Blimunda Sete Luas, a personagem do "Memorial do Convento" de José Saramago, que tem um dom semelhante ao de Lillias, ainda que "mais feliz". E aí vemos que só verdadeiramente aquela que tem dentro de si algo de semelhante, algo que por vezes tem que ser silenciado, pode, sem perigo, ouvir o nome de Lillias, representando um quase-espelho, que esse, afinal, terá o direito de saber a verdade.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

necrópole


ateada e vivente alguém me enterra
nestas vilas sem flor entre os cadáveres
que ninguém reconhece apodrecidos
na dissimulação.

de entre as parreiras, indistinto é o sangue.
rumores nos cercam: vivos? perfilados
de encontro às amarelas mãos da giesta
-da gesta- expiram; pulmão branco, o vento
carrega os vapores ásperos da cal.

também os animais não surgem.
fêmeas mastigam na poeira o lento
minguar dos corredores, velozes membros,
e, endurecido o leite, as crias velam,
que estrebuçam formais e transparentes.

é verão acaso?
esta secura, os fósseis sobre a lama,
o cio inexistente, os mutilados
buscando os seus pedaços nas encostas,
-é do tempo que faz, ou de uma história
de onde as estações fogem, repugnadas?

matilhas passam: alcateias lúcidas
pelo pescoço trazem indefesos
ao centro das ruínas- resto e fama
de uma caçada medieva e imensa.

nem dos céus descaiu esta catástrofe,
nem dos elementos térreos, mas dos príncipes
que roubaram da morte os negros ritos
da tradição.
aqui fogueiras roxas carbonizam,
lascivamente, os últimos vassalos.
«lugar de todos é a pátria.» eis pois
este lugar comum: a vala.
término.

esquecem-se, porém, senhores, dos filhos
que agora deambulam nas coutadas
alimentados pelo mel e as seivas
e abrigados nas tocas dos arbustos,
crescendo a sós, com arranhões e luta,
tempo por tempo -e as vossas vestes de oiro
em seus pequenos pensamentos pálidos
na memória da infância: permanente.

é de prazo a questão -vossa a vitória

(esquecem-se, porém, dos nossos filhos)

NÃO VOS ESPANTEM, POIS, RESSURREIÇÕES.



Hélia Correia

in "&etc", nº 10

1974

fotografia de Slava Mogutin

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Algumas notas sobre Christina Rossetti

Quando Christina começava a amá-lo e a delicada intimidade criativa diminuía a ansiedade sexual, Collinson retirou-se bruscamente. O seu catolicismo renascia, como que levantando do abismo em que o lançava a estética do grupo. De algum modo, ele roçara as paredes do inferno e recuava à pressa, apavorado, calcando aos pés a roupa enegrecida. Enviou a Christina um soneto em que dava como inconciliáveis o impulso amoroso e a devoção. Ela rasgou-o de imediato, prevendo o golpe que, de facto, não tardou. Muitos anos mais tarde, refê-lo, verso a verso. Ficara-lhe gravado na memória.

William conta como a saúda de irmã, já tão deteriorada, se agravou. Talvez o sentimento dominante fosse a humilhação, mais dolorosa do que um puro desgosto de abandono. Dir-se-á que os poemas recolheram parte da agonia. Eles aspiravam, como ventosas, os seus poros infectados. E, quando ela escrevia sobre a perda, sobre aquilo que morrera e aquilo que jazia no seu também já morto coração, a beleza da febre triunfava.


Hélia Correia

in "Adoecer"
2010, ed. Relógio d´Água

segunda-feira, 25 de abril de 2011

A propósito do dia de hoje: "Só Assim Será Poema"

Que o poema tenha carne
ossos vísceras destino
que seja pedra e alarme
ou mãos sujas de menino.

Que venha corpo e amante
e de amante seja irmão
que seja urgente e instante
como um instante de pão.

Só assim será poema
só assim terá razão
só assim te vale a pena
passá-lo de mão em mão.

Que seja rua ou ternura
tempestade ou manhã clara
seja arado e aventura
fábrica terra e seara.

Que traga rugas e vinho
berços máquinas luar
que faça um barco de pinho
e deite as armas ao mar.

Só assim será poema
só assim terá razão
só assim te vale a pena
passá-lo de mão em mão.



Hélia Correia

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Ainda sobre "Adoecer"

"A doença dela [Elizabeth Siddal] é tipicamente a doença romântica: a mulher magra, que desmaia, e que se opõe como ideal à parideira, a mulher capaz de casar e assegurar o funcionamento de uma família. Nunca se percebeu bem que doença é: hoje facilmente se diria que é psicológica. É realmente a doença do mal-estar. A somatização desse mal-estar. A pessoa está num corpo e está mal, dilacerada, por uma sociedade onde não devia ter nascido. Nasceu no sítio errado, e provavelmente nunca teria encontrado um sítio certo para nascer. Está dilacerada por dois grupos de cavalos: a sociedade, por um lado, muito maligna para uma pessoa que faz o percurso que ela faz. E é a relação amorosa, por outro, que os dilacera aos dois. Porque é uma relação que não tem a ver com o tempo, não tem a ver com a convenção, que não tem a ver com os outros, e que tem um tal peso de destino que provoca depois em Gabriel a vontade tal de ser um homem livre daquela sombra que não o abandona. Sem a qual ele não consegue viver. Não é um acto de vontade, é uma pressão, é um reencontro, é qualquer coisa que ultrapassa as opções dos seres vivos. Essas duas coisas chegam bem para adoecer uma pessoa naquelas circunstâncias."

Hélia Correia em entrevista ao Ipsílon


quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Hélia Correia: Adoecer

ENFERMIDADE NOS SENTIMENTOS

É para mim particularmente difícil falar do mais recente romance de Hélia Correia. Sinceramente, desde que li, no ano passado “Lillias Fraser” (2001), tinha sérias dúvidas de que fosse possível Hélia Correia escrever um romance que tão completamente me conquistasse. Mesmo apesar dos críticos, que aclamavam “Adoecer”, e garantiam ser o melhor romance da autora.

Olhando para trás, seria difícil prever que a autora de “O Separar das Águas” (1981) chegasse a um romance como este “Adoecer”. Não porque o primeiro fosse um mau romance, mas porque ele inaugura um percurso que não faria prever sequer a temática do mais recente.
Hélia Correia começa a publicar na mesma década que alguns dos nomes mais importantes da nossa prosa, como sejam Lídia Jorge ou António Lobo Antunes. Por alguma razão, no entanto, o nome de Hélia parece sempre surgir aparte. Eu diria que isso se deve, primeiro, ao facto de Hélia publicar pouco, pelo menos comparativamente, e também ao facto de, durante muitos anos, ter publicado acima de tudo novelas, sendo que podemos considerar “A Casa Eterna” (1991) como o primeiro realmente romance. Não que seja menos importante por escrever novelas, mas já desde Irene Lisboa que percebemos que o público em geral só aceita os romancistas.
Faz sentido olhar para estas questões. É justo dizer que, por ter começado justamente no domínio das novelas –textos mais curtos, por definição –Hélia tem a mão treinada para dizer o essencial, para não perder tempo nem palavras. E a publicação menos frequente também parece ser natural pois, olhando para os seus livros, percebemos que, ainda que haja um fio condutor de determinadas características que os unem, cada livro é, por si só, um universo auto-suficiente e específico; completo, o que requer determinados cuidados de construção, que levam tempo.
“Adoecer” é o primeiro romance desde “Lillias Fraser”. Pelo caminho, encontramos um pequeno livro de poemas, “Apodera-te de Mim” (2002) e a novela “Bastardia” (2004).
Anos e anos de investigação detalhada precedem a publicação do romance. No entanto, é de notar que “Adoecer” não é de forma alguma uma biografia e, bem pelo contrário, demarca-se assumidamente desse estilo. Como explica na nota final, Hélia permitiu-se em certas alturas modificar aquilo que está documentado. E, além disso, não há aqui uma vontade de apenas narrar, objectivamente, a história de Elizabeth Eleanor Siddal e Dante Gabriel Rossetti. Hélia coloca-se como quem está presente, e entrega-se a análises, interpretações; enfim: a uma grande liberdade ao olhar. Porque é de um olhar que se trata “Adoecer”, de um olhar humano, ainda que consiga ver tanto para “fora” como para “dentro” dos seus personagens.
Além da atenção dada à investigação sobre a vida de Elizabeth e Dante Gabriel, é de notar neste livro também uma análise muito séria à história e à estética dos Pré-Rafaelitas; e um pouco também de todos os que os rodeavam, em particular Christina Rossetti, poeta e irmã de Dante Gabriel Rossetti e que, percebemos, terá sido uma das pessoas que, não tendo entendido a relação entre o irmão e Elizabeth, se terá aproximado mais.
A verdade é que, em muitas das suas páginas, este romance nos revela as fontes a que foi beber: cartas, livros de memórias, poemas. Mas o interessante, e o que prova a mestria de escrita, é como nunca ficamos com a impressão de estarmos perante um relato: esses fragmentos aparecem-nos antes como formas de “precisar” as palavras daquelas pessoas, ao invés da mera especulação; o que seria um caminho muito óbvio para falar desta personagem, Elizabeth, que, podemos dizer, citando Agustina que "tinha uma enfermidade nos sentimentos."
Acerca disto, ocorre-me falar de uma questão que me parece crucial em “Adoecer”, que é o respeito pelo silêncio. De facto, dada a distância a que nos encontramos da vida destas personagens, seria de esperar um romance cheio de especulação, com recriações de diálogos frequentes e com a invenção de detalhes improváveis. Nada disso. Pelo contrário, há nestas páginas um respeito pelo silêncio a que a distância nos obriga. Ainda que esse silêncio não torne a história lacónica. Pelo contrário, esta história é detalhada; mas os detalhes nunca nos parecem inusitados.
No fundo, há toda uma construção aqui que não se fica por Elizabeth Eleanor e Dante Gabriel. Ela estende-se a todo o tempo, a todos os intervenientes e às circunstâncias sociais e políticas da época. É importante que assim seja pois, só conhecendo bem o contexto em que a história dos dois aconteceu poderemos perceber as verdadeiras razões por que a sua relação não era exactamente bem aceite, ou, em última análise, por que era tão “fora” de tudo. Porque percebemos, efectivamente, como já por temperamento, tanto Elizabeth como Dante Gabriel se situavam ao lado das convenções; mas ao entender as circunstâncias, a questão torna-se mais concreta.
Dado que tanto Dante Gabriel como Elizabeth eram artistas, e que Elizabeth começou exactamente por ser modelo de alguns pintores, é também essencial entender-se tudo o que diga respeito à arte, naquele tempo. E também aí Hélia consegue dar-nos todos os dados importantes, e entendemos muito bem a relação que existe entre a Elizabeth desenhada e a Elizabeth viva, e onde ambas coincidiam. Porque a relação que existia entre os dois dependia muito da sua relação com a arte, ou, talvez até fosse definida por ela. E não deixa de ser um olhar refrescante sobre a pintura Pré-Rafaelita, situada muito além da mera categorização académica.


Já noutros textos sobre Hélia Correia aqui publicados, eu manifestei o meu profundo desagrado pela decisão que a autora tomou acerca da poesia, que praticamente abandonou. Volta a ser importante falar da poesia sobre “Adoecer”. Porque há uma construção livre neste livro que é mais típica da poesia do que propriamente da prosa. E, além disso, a questão da linguagem nunca realmente se separa da poesia. Não há aqui a “frieza” objectiva do romancista puro. Bem pelo contrário.
Voltando ao início deste texto, pessoalmente não acreditava que fosse possível Hélia Correia ultrapassar um romance brutal como é “Lillias Fraser”. Mas a verdade é que “Adoecer” consegue. Poderá ser porque, como Hélia já explicou em várias entrevistas, este é um livro que há muito desejava escrever. Esse será um motivo plausível. Mas, acima de tudo, “Adoecer” é uma obra de absoluta maturidade, que seria impossível, mas impossível mesmo, a um romancista novo que não tivesse na bagagem todos os ensinamentos de uma obra firme, e de uma identidade perfeitamente definida. Venham mais como este!

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Poema 2


Contigo partilhei os vários leitos
dos amigos dispersos. Mesas, sumos,
os degraus mal ardidos do terror.
Contigo um pouco em cada aldeia, enquanto
nada de nós podia ultrapassar
as paredes dos outros que jaziam
no repouso e no largo e tu compravas
permanecendo os nomes tumulares.

Já então começávamos a longa
inelutável morte dos estios
e eu colhia os agoiros nas fornalhas
de inratigável pão. E cada noite
um maior julgamento nos calava.

Já então nos vestíamos nos cantos
de antigamente sós. Contigo, aos poucos,
recomeçava o frio e as grandes vagens.

De terra em terra, humilde, e raramente
antecedendo a desamor final. Sem transição. Sem dor.
E hoje penso que sobreviverei sem ti
ainda quando a névoa sobreposta nos deixar
tão nús como se de hábitos nascêssemos.


Hélia Correia
na antologia "Poesia 71",
selecção de Fiama Hasse Pais Brandão e Egito Gonçalves
1971, ed. Inova
pintura de Edward Hopper

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

A beleza de Elizabeth Eleanor Siddall, pintada por Dante Gabriel Rossetti

Estou, de momento, a meio da leitura do mais recente romance de Hélia Correia. "Adoecer" é uma belíssima história de amor, entre dois seres excepcionais, o pintor Pré-Rafaelita Dante Gabriel Rossetti e Elizabeth Siddal, sua companheira e modelo para as mais variadas pinturas.
Se já o poeta Jaime Rocha, companheiro de longa data de Hélia, dedicara vários livros aos Pré-Rafaelitas, entre os quais "Lacrimatória" e "Necrophilya", "Adoecer" é mais uma oportunidade de atravessarmos algumas visões apaixonantes quer dos Pré-Rafaelitas, quer da relação entre Siddall e Rossetti.



sábado, 25 de dezembro de 2010

Hélia Correia: Insânia

UMA ESPIA NA CASA DO AMOR

Há já algum tempo que leio os livros e todos os dispersos que encontro de Hélia Correia, e, para ser sincero, quanto mais leio, mais chateado fico. Seriamente chateado. Penso na enormíssima quantidade de "poetas" que andam por aí a editar livros e mais livros; e depois comparo com o que tenho encontrado em revistas e antologias de poesia de Hélia Correia, e percebo que, se a autora tivesse seguido esse lado, poderia hoje ser uma excelentíssima poeta. Não foi o caso. Em 1981, com "O Separar das Águas" (ed. Regra do Jogo), Hélia escolhe a prosa, em detrimento de quase dez anos a publicar poesia dispersamente e, salvo duas pequeniníssississimas edições, "A Pequena Morte" (com "Esse Eterno Canto" de Jaime Rocha, 1988, ed. Black Sun) e "Apodera-te de Mim" (2002, ed. Black Sun), tem sido na ficção que Hélia Correia se tem demonstado um dos casos de mais séria originalidade na nossa literatura. Para o provar, cá estão romances como "Lillias Fraser" (2002, ed. Relógio d´Água) ou o mais recente e aclamadíssimo "Adoecer" (2010, ed. Relógio d´Água) ou novelas como "Montedemo" (1983, ed. Ulmeiro) ou "Bastardia" (2004, ed. Relógio d´Água).


"Insânia" (ed. Relógio d´Água), editado em 1996, parece-me ser um caso que não pode ser comentado sem se aludir ao passado de Hélia na poesia. Isto porque, antes sequer de falar da história do romance, há que referir toda uma construção de linguagem, toda ela absolutamente poética, que é a estrutura que sustenta todo o romance, mais, se calhar, do que os restantes. Dessa linguagem, podemos dizer, antes de mais, que é sempre surpreendente, por mais que leiamos Hélia Correia. A força é uma força telúrica. A escrita de Hélia Correia vive duma espécie de misticismo, de encantamento, que a palavra expressa perfeitamente, criando uma espécie de presságio. Poderíamos ligar esta ambiência à tradição oral, o que me parece adequado, mas também aos arqui-textos bíblicos, o que se torna praticamente inegável quando relembramos que os primeiros dois títulos de Hélia para a bíblia nos remetem, "O Separar das Águas" e "O Número dos Vivos" (1982, ed. Relógio d´Água). Assim sendo, a questão de uma linguagem com algo de arcaico e de grotesco não é também alheia à construção dos romances de Hélia Correia.
Precisamente essa espécie de estética do grotesco será muito importante para, na minha opinião, entender "Insânia". Esta história tem algo de grotesco, de "pura negligência" (pag.8). É a história de uma pequena povoação a quem, um dia, do nada, surge uma pequena rapariga, muda e provavelmente atrasada mental a quem dão o nome de Natalina, que fica alojada na casa da família de Francisco Amor.
A desculpa de que se trata de uma neta, filha dos filhos emigrados no Canadá cedo se torna impossível de sustentar, porque essa família emigrada regressa para férias. E assim, toda a aldeia se diverte passando Natalina de casa em casa, para a esconder dos "Amores do Canadá".
À medida que a família emigrada começa a dar sinais de não voltar a partir, a povoção começa a dar sinais de loucura, não só as pessoas, mas o próprio ambiente, a própria natureza, culminando na debandada em massa das mulheres, que começam a vaguear pelas redondezas, atrás de uma luz divina.
São de notar dois aspectos simbólicos que me parecem evidentes:
o primeiro é a da incomunicabilidade. Mais tarde, em "Lillias Fraser" voltaríamos a encontrar esta ideia. Neste caso, Natalina, que não fala, limitando-se a grunhir, o que vai de encontro a todo um comportamento animalesco. A incapacidade de se expressar pelas palavras, bem como a sua natureza quase desumana, contribuem para que se entenda Natalina como um ser que quase não é deste mundo. É verdade que, no fundo, Natalina não chega a ser uma personagem. Ela é meramente um pretexto.
Um pretexto para aquilo que me parece ser o outro aspecto simbólico interessante: Natalina está infiltrada naquela população, principalmente na família Amor (O nome será também ele simbólico.), onde se anunciam os sinais de mudança dos tempos. Se há naquela população uma espécie de amor, esse amor não é propriamente pela criança. É um amor à interacção: apesar de ela-mesma não falar, Natalina está na origem da comunicação entre as várias famílias da aldeia, que há algum tempo se haviam tornado mais fechadas sobre si mesmas e sobre a televisão e as notícias de que o mundo estava a transformar-se. Será Natalina que colocará de novo todas as pessoas a funcionar como um colectivo e não como vários elementos isolados. Assim sendo, esse amor, que o nome da primeira família de acolhimento expressa, não me parece ser pela criança, mas antes pela vida propriamente dita, pelo viver dos afectos e das intrigas.

Um romance que é, todo ele, uma "insânia", é importante a capacidade de escrita da autora, mais do que nunca. Hélia Correia tem, como disse acima, uma grande facilidade em explorar esoterismos e misticismos. E não só a sua linguagem é generosa a sustentar com verosimilhança o ambiente de loucura, como também as análises de Hélia, que à primeira vista poderiam soar até excessivas, revelam-se como a única forma de realmente dar sentido a uma narrativa sobre a perda de sentido das coisas. É, portanto, justo dizer que Hélia Correia se colocou perante uma proposta muitíssimo exigente, mas que conseguiu vencê-la, domá-la. Em nenhuma das suas partes este romance cede a facilitismos. Pelo contrário, arrisca. E não só desafia a escrita a perseguir a loucura humana, como nos desafia a nós, leitores, a acreditar nela, a tentar entendê-la, recusando acreditar que não haja para ela uma explicação.
A resolução do final do livro é também ela surpreendente. Na verdade, muitíssimo analítico, este desenlace -que me impeço de aqui revelar- coloca uma série de questões de psicologia social, e, no fundo desarma-nos: ninguém pode dizer que não acredita que a loucura tenha sentido. As mais das vezes, assumimos que não sabemos que sentido é esse. Mas a nossa necessidade de encontrar um sentido, leva-nos por vezes às situações mais inusitadas, que resultam sempre na escolha de um bode expiatório. É o que acontece depois da insânia de "Insânia".
Constituido por dois "livros", este romance vai caminhando da luz para as trevas, tornando-se cada vez mais intrincado e complexo, mais obscuro. Momento, este, ideal, para reforçar a força poética da palavra de Hélia Correia: onde o que é narrado se revela tão negro e tão inesperado, é a força da palavra, o seu ritmo, a sua luz, que nos deslumbra e nos agarra. Hélia Correia escreve com tudo aquilo que não pode ser dito, com coisas quase abstractas e inomináveis. É essa a verdadeira poesia da sua prosa.
Por todas estas razões, parece-me que "Insânia" é sem dúvida um grande romance. E sem dúvida mais uma razão para eu ficar chateado.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Guevara I


Levaremos ainda as nossas roupas
vossos idílios sobre os sulcos
vossos pães vossas sujas refeições
pelas clareiras vossas tatuagens.

Levaremos as vossas agonias.
Coisas. Vestígios ácidos da dor.
Estilhaços. Matéria.
Vossas fontes sugadas e musgosas.
Vossas hostes elementares.
O encolher dos dedos sob as mantas
nas ciladas. Vigílias. Levaremos
vosso cheiro a folhagens e a verão.

Levaremos na pele vossas cidades
em sua inexistência.
Vosso rijo manobrar dos fusis.
Recondução da história. O novo, o limpo
acumular dos corpos para o cio.

Levaremos os climas. Mais cerrados,
no lugar da memória, avançaremos
com vossos restos de calcinação.
Avançaremos todos com os ombros
quase amorosamente protegidos
por ombros paralelos.
Seguiremos e de ecos indignados
seguiremos por onde nos chamastes.

E ainda traremos certas águas
tranquilamente sobre as tardes vilas
onde o ciclo dos sangues se fundia
das raparigas nunca virgens, e outro,
o fértil, sobretudo, em vossas chagas.

Hélia Correia
da antologia "10 Poemas Para Che Guevara",
org. Egito Gonçalves, 2a ed. Campo das Letras, 1997

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Guevara III


Olho por onde tudo se habitua
aos vossos corpos infundados, secos
de esperma e devastadamente
insepultos no lastro das florestas.

Nos matagais, nos frutos maturados
sobre o nascente.
Neste repouso agora acostumado
aos pormenores do solo, aos bichos mornos
que noticiam a putrefacção.

Vou por onde morrestes. Vou por onde
vossos pés instigaram aos caminhos.
Vou pelos meses em que abandonastes
por sol muito ardido e muito denso
os vossos sítios de nascer e amar.
Tempo em que a este exílio vos voltastes.

Desunidos os mares, adormentadas as monções,
ouvidos os prenúncios das velhas sobre a ordem,
eis as colinas, o que demandáveis.
Sítios de barro. Fécula. Resíduos.
Fermentação. Torpor.

Aqui chegaram vossas palavras únicas, as vossas
alcantiladas noites de instrução.
Aqui, sobre os rochedos, sobre o casco
de árvores principais,
a vossa pele segregou a marca
quente e dulcificada do suor.

Reconheço o lugar. Vossos perfis
magramente envolvidos para o estrume
das plantas invernais.

....................................Vossas severas,
vossas meigas mãos.


Hélia Correia
in "Poemas a Guevara"
selecção de Egito Gonçalves
2a ed, Limiar, 1975
imagem: Che Guevara, depois de executado