Há já algum tempo que leio os livros e todos os dispersos que encontro de Hélia Correia, e, para ser sincero, quanto mais leio, mais chateado fico. Seriamente chateado. Penso na enormíssima quantidade de "poetas" que andam por aí a editar livros e mais livros; e depois comparo com o que tenho encontrado em revistas e antologias de poesia de Hélia Correia, e percebo que, se a autora tivesse seguido esse lado, poderia hoje ser uma excelentíssima poeta. Não foi o caso. Em 1981, com "O Separar das Águas" (ed. Regra do Jogo), Hélia escolhe a prosa, em detrimento de quase dez anos a publicar poesia dispersamente e, salvo duas pequeniníssississimas edições, "A Pequena Morte" (com "Esse Eterno Canto" de Jaime Rocha, 1988, ed. Black Sun) e "Apodera-te de Mim" (2002, ed. Black Sun), tem sido na ficção que Hélia Correia se tem demonstado um dos casos de mais séria originalidade na nossa literatura. Para o provar, cá estão romances como "Lillias Fraser" (2002, ed. Relógio d´Água) ou o mais recente e aclamadíssimo "Adoecer" (2010, ed. Relógio d´Água) ou novelas como "Montedemo" (1983, ed. Ulmeiro) ou "Bastardia" (2004, ed. Relógio d´Água).
"Insânia" (ed. Relógio d´Água), editado em 1996, parece-me ser um caso que não pode ser comentado sem se aludir ao passado de Hélia na poesia. Isto porque, antes sequer de falar da história do romance, há que referir toda uma construção de linguagem, toda ela absolutamente poética, que é a estrutura que sustenta todo o romance, mais, se calhar, do que os restantes. Dessa linguagem, podemos dizer, antes de mais, que é sempre surpreendente, por mais que leiamos Hélia Correia. A força é uma força telúrica. A escrita de Hélia Correia vive duma espécie de misticismo, de encantamento, que a palavra expressa perfeitamente, criando uma espécie de presságio. Poderíamos ligar esta ambiência à tradição oral, o que me parece adequado, mas também aos arqui-textos bíblicos, o que se torna praticamente inegável quando relembramos que os primeiros dois títulos de Hélia para a bíblia nos remetem, "O Separar das Águas" e "O Número dos Vivos" (1982, ed. Relógio d´Água). Assim sendo, a questão de uma linguagem com algo de arcaico e de grotesco não é também alheia à construção dos romances de Hélia Correia.
Precisamente essa espécie de estética do grotesco será muito importante para, na minha opinião, entender "Insânia". Esta história tem algo de grotesco, de "pura negligência" (pag.8). É a história de uma pequena povoação a quem, um dia, do nada, surge uma pequena rapariga, muda e provavelmente atrasada mental a quem dão o nome de Natalina, que fica alojada na casa da família de Francisco Amor.
A desculpa de que se trata de uma neta, filha dos filhos emigrados no Canadá cedo se torna impossível de sustentar, porque essa família emigrada regressa para férias. E assim, toda a aldeia se diverte passando Natalina de casa em casa, para a esconder dos "Amores do Canadá".
À medida que a família emigrada começa a dar sinais de não voltar a partir, a povoção começa a dar sinais de loucura, não só as pessoas, mas o próprio ambiente, a própria natureza, culminando na debandada em massa das mulheres, que começam a vaguear pelas redondezas, atrás de uma luz divina.
São de notar dois aspectos simbólicos que me parecem evidentes:
o primeiro é a da incomunicabilidade. Mais tarde, em "Lillias Fraser" voltaríamos a encontrar esta ideia. Neste caso, Natalina, que não fala, limitando-se a grunhir, o que vai de encontro a todo um comportamento animalesco. A incapacidade de se expressar pelas palavras, bem como a sua natureza quase desumana, contribuem para que se entenda Natalina como um ser que quase não é deste mundo. É verdade que, no fundo, Natalina não chega a ser uma personagem. Ela é meramente um pretexto.
Um pretexto para aquilo que me parece ser o outro aspecto simbólico interessante: Natalina está infiltrada naquela população, principalmente na família Amor (O nome será também ele simbólico.), onde se anunciam os sinais de mudança dos tempos. Se há naquela população uma espécie de amor, esse amor não é propriamente pela criança. É um amor à interacção: apesar de ela-mesma não falar, Natalina está na origem da comunicação entre as várias famílias da aldeia, que há algum tempo se haviam tornado mais fechadas sobre si mesmas e sobre a televisão e as notícias de que o mundo estava a transformar-se. Será Natalina que colocará de novo todas as pessoas a funcionar como um colectivo e não como vários elementos isolados. Assim sendo, esse amor, que o nome da primeira família de acolhimento expressa, não me parece ser pela criança, mas antes pela vida propriamente dita, pelo viver dos afectos e das intrigas.
Um romance que é, todo ele, uma "insânia", é importante a capacidade de escrita da autora, mais do que nunca. Hélia Correia tem, como disse acima, uma grande facilidade em explorar esoterismos e misticismos. E não só a sua linguagem é generosa a sustentar com verosimilhança o ambiente de loucura, como também as análises de Hélia, que à primeira vista poderiam soar até excessivas, revelam-se como a única forma de realmente dar sentido a uma narrativa sobre a perda de sentido das coisas. É, portanto, justo dizer que Hélia Correia se colocou perante uma proposta muitíssimo exigente, mas que conseguiu vencê-la, domá-la. Em nenhuma das suas partes este romance cede a facilitismos. Pelo contrário, arrisca. E não só desafia a escrita a perseguir a loucura humana, como nos desafia a nós, leitores, a acreditar nela, a tentar entendê-la, recusando acreditar que não haja para ela uma explicação.
A resolução do final do livro é também ela surpreendente. Na verdade, muitíssimo analítico, este desenlace -que me impeço de aqui revelar- coloca uma série de questões de psicologia social, e, no fundo desarma-nos: ninguém pode dizer que não acredita que a loucura tenha sentido. As mais das vezes, assumimos que não sabemos que sentido é esse. Mas a nossa necessidade de encontrar um sentido, leva-nos por vezes às situações mais inusitadas, que resultam sempre na escolha de um bode expiatório. É o que acontece depois da insânia de "Insânia".
Constituido por dois "livros", este romance vai caminhando da luz para as trevas, tornando-se cada vez mais intrincado e complexo, mais obscuro. Momento, este, ideal, para reforçar a força poética da palavra de Hélia Correia: onde o que é narrado se revela tão negro e tão inesperado, é a força da palavra, o seu ritmo, a sua luz, que nos deslumbra e nos agarra. Hélia Correia escreve com tudo aquilo que não pode ser dito, com coisas quase abstractas e inomináveis. É essa a verdadeira poesia da sua prosa.
Por todas estas razões, parece-me que "Insânia" é sem dúvida um grande romance. E sem dúvida mais uma razão para eu ficar chateado.
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