sábado, 29 de maio de 2010

Showcase dos Blind Zero na Fnac do Chiado

O caso dos Blind Zero parece-me um muito raro no panorama da música portuguesa. Estamos cheios de bandas que não conseguem ter uma identidade própria, e que muitas vezes se ancoram em sonoridades vindas do exterior e essas origens, mesmo que boas, perdem a qualidade ao serem imitadas. Pode isto não se aplicar a algumas bandas como os Mesa ou os Wray Gunn, e não se aplica certamente a outras como os The Gift ou os Clã e, para retomar o início do texto aos Blind Zero.
E se os primeiros dois álbuns desta banda portuense poderiam oferecer algumas dúvidas, elas dissipavam-se justamente na última faixa do segundo disco “Redcoast”: “Subtitle” foi o primeiro acto de rebelião dos Blind Zero, rebelião no sentido da conquista de um som próprio e nítido.
Vários anos volvidos, passaram discos em que esta rebelião se consumou, uma espécie de best-of ao vivo que, nalguns aspectos, vinha “limpar” as fragilidades dos primeiros álbuns e anuncia-se agora o lançamento de mais um álbum de originais: “Luna Park”.
O showcase na Fnac, hoje à tarde, foi uma espécie de ante-estreia do disco. Curta, sete canções apenas, mas suficiente para se ter a certeza absoluta de que os Blind Zero compuseram mais uma “pedra” firme para a construção do seu “edifício” musical.
Um showcase nestas condições, em que o álbum ainda não foi lançado, oferece, à partida, sempre uma certa estranheza ao ser ouvido, o próprio Miguel Guedes para isso adverteu. Neste caso, essa estranheza existiu mas, contrariamente ao que possa parecer, o facto de existir essa estranheza é um excelente sinal: só se estranha aquilo que é novo.
E em nenhuma destas sete canções me pareceu que os Blind Zero estivessem a repetir alguma canção anterior, sequer a repetir qualquer fórmula. São, no sentido mais pleno da palavra, canções novas.
Abriram com “Two Days”, canção de um pendor algo romântico, seguiu-se “Snow Girl”, segundo single já lançado de “Luna Park”. A terceira canção pareceu-me, em tempo-real, a mais forte das sete apresentadas, “Back To The Fire”, que recupera, em termos de som, uma violência que soava noutros álbuns, e em termos de letra, reflecte muito bem a excelente capacidade de escrita de Miguel Guedes, altamente metafórica. “Loose Ends” terá sido eventualmente a canção mais melancólica das apresentadas, mas mesmo essa melancolia soa diferente de outras canções anteriores, exemplifico de memória “Super 8” ou “Lately”.
“How The Wind Blows” e “Fun House” criaram uma espécie de ponto-de-rebuçado entre a tal violência de “Back To The Fire” e a melancolia de “Losse Ends”, e, por fim, “Slow Time Love”, primeiro single já há muito lançado, fechou o espectáculo com uma espécie de “alegria”: é, parece-me, das sete canções apresentadas, aquela que mais reflecte uma espécie de “esperança”, é uma das canções mais luminosas dos Blind Zero até agora, e esse é um lado que, para todos os efeitos, faz falta também.
“Luna Park” é editado na segunda feira, em edição de autor, o que me parece mais uma prova da total conquista de liberdade por parte dos Blind Zero que, agora, compõe e produzem o próprio material. Quanto a concertos, eis um pequeno calendário:
2 de Junho à meia-noite no Music Box em Lisboa, 3 de Junho da Fnac do Colombo às 17 horas, no mesmo dia às 21 e 30 na Fnac de Leiria, dia 9 às 22 horas na Fnac de Coimbra, dia 10 na Fnac de Braga às 22 horas, dia 13 no Fnac do GaiaShopping às 17 horas e, por fim, dia 23 na Casa da Música do Porto à meia-noite. Vale a pena ir.


à falta de imagens do showcase, fica aqui o vídeo de "Snow Girl"

High Windows



When I see a couple of kids
And guess he's fucking her and she's
Taking pills or wearing a diaphragm,
I know this is paradise

Everyone old has dreamed of all their lives-
-Bonds and gestures pushed to one side
Like an outdated combine harvester,
And everyone young going down the long slide

To happiness, endlessly. I wonder if
Anyone looked at me, forty years back,
And thought, That'll be the life;
No God any more, or sweating in the dark

About hell and that, or having to hide
What you think of the priest. He
And his lot will all go down the long slide
Like free bloody birds. And immediately

Rather than words comes the thought of high windows:
The sun-comprehending glass,
And beyond it, the deep blue air, that shows
Nothing, and is nowhere, and is endless.


Philip Larkin
High Windows, 1974


Quando vejo um par de miúdos
E calculo que ele anda a fodê-la e ela
A tomar pilúlas ou a usar um diafragma,
Sei que é este o paraíso

Com que todos os velhos sonharam a vida inteira-
Preconceitos e cadeias postos de lado
Como uma ceifeira mecânica antiquada,
E os jovens deslizam sem mais parar

Pelo longo escorrega da felicidade. Pergunto
Se alguém, olhando para mim há quarenta anos,
Terá pensado,
Aquilo é que é vida;
Nem Deus, nem suores no escuro

Com medo do inferno, sem ter que disfarçar
O que pensa do padre. Com os outros irá
Sem parar pelo escorrega até ao fim,
De asas ao vento tal qual as aves.
E logo surgem

Não palavras, mas imagens de janelas altas:
O vidro abrangendo o sol
E para lá dele, o fundo ar azul, que mostra
Nada, está em lado nenhum e não tem fim.



Trad. Maria Teresa Guerreiro
In “Uma Antologia”
Ed. Fora de Texto, 1989
imagem de Edward Hopper

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Muse no Rock In Rio

Evidentemente, não fui a todos os dias do Rock In Rio, não me interesso particularmente pela Leona Lewis nem pelo Elton John, eles que me desculpem.
Fui, isso sim, ao dia dos Muse. Diga-se de passagem que o dia em si foi uma seca: o concerto dos Fonzie a roçar uma fragilidade quase penosa, o concerto dos Xutos a decadência que sempre me parece. Irritante também é aquela mentalidade de negócio no recinto: da comida às bebidas, tudo caríssimo e cheio de filas, booms de publicidade por todo o lado, enfim, mais do que um festival de música, o Rock in Rio é um negócio que nem se esforça muito por se disfarçar de evento musical.
Antes de passar à parte boa do dia, ou melhor, da noite, o concerto dos Muse, uma pequena nota para os Snow Patrol de quem esperava um concerto vulgaríssimo e que, afinal, até nem foi mau de todo, pelo menos na parte que eu ouvi enquanto furava pela multidão.

Agora sim, o concerto dos Muse. Foi do outro mundo. Matt Bellamy, ao entrar no palco, fez essa expressão ser literal: completamente vestido de brilhantes prateados e com um óculos engraçadíssimos.
Além do visual de Bellamy, referência ao palco, onde os ecrãs em forma de favos transmitiam imagens que facilmente se podem tomar por video-art, e a iluminação, também profusa e delirante.
Delirante será talvez a palavra de ordem para falar do espectáculo dos Muse. Um espectáculo que excede largamente o conceito de “concerto” e se transforma em algo mais, que tem algo de teatro, de performance, de manifesto, enfim, algo que revela uma personalidade profundamente artística.
A abertura foi feita com “MK Ultra”, que, não sendo definitivamente um dos momentos mais fortes do concerto, teve um enormíssimo impacto por ser a entrada em palco. Mas mais assinaláveis foram os momentos seguintes: “Map Of The Problematique”, resgatado do álbum anterior, e “Uprising” que lançou este “The Resistance”.
Aliás, o impacto brutal que “Uprising” teve no público lembrou-me uma outra canção de uma outra banda. Refiro-me ao “Zombie” dos The Cranberries, uma música que marcou em definitivo uma geração, e que foi um hino a um tempo musical e político que falou por essa geração. “Uprising” pode muito bem ser um sucessor de “Zombie”, porque fala também musical e politicamente pelo seu tempo, pela sua geração. Porque se muitas vezes Matt Bellamy é subtil ao escrever sobre política, em “Uprising” é inquestionável a tónica política e mesmo revolucionária. Mas sobre isto, já falei quando o disco foi lançado (“
Política Lírica”.) e não me parece oportuno repetir tudo o que já disse.
Um aspecto interessante neste concerto, e que não é de todo mau, foi o carácter antológico do alinhamento. Não se tratava de um concerto da digressão de “The Resistance”, mas uma espécie de “best of”, que é sempre o mais conveniente para os festivais, dado que costuma haver tanto de fãs como de apenas-festivaleiros; se bem que no caso deste concerto dos Muse não parecia ser o caso, pois as letras eram acompanhadas pelo público em geral, e não só os singles.
Outros momentos de referência foram sem dúvida “Supermassive Black-Hole”, completamente alucinado, “Time Is Running Out”, “Starlight” (De longe o tema mais radio-friendly dos Muse.) ou “Citizen Erased”. Em relação a canções do disco mais recente, além de “Uprising”, tocaram “Undisclosed Desires” e “Resistance”, os singles, "United States of Eurasia" e "MK Ultra".
O encore marcou-se com “Plug-In Baby” e a fechar uma versão re-arranjada de “Knights Of Cydonia”, outra letra inquestionavelmente política.
Não se pode dizer que tenham sido muito comunicativos, Matt Bellamy e Chris Wolstenholme dirigiram-se ao público raramente, mas, verdade se diga, não foi necessário haver muitas falas para o público porque a força da música criou toda a adesão necessária, e interacção não faltou, mesmo em momentos mais “calmos” como foi o caso de “United States of Eurasia”. E, se há alguma coisa a questionar em relação às opções dos Muse para este concerto, é até que ponto o “tronco” do alinhamento não era constituido por canções desse álbum. É verdade que foi marcante, e que fixou definitivamente o nome dos Muse como uma banda incontornável, mas é também verdade que ainda que só com ele tenha vindo a aceitação crítica, em termos de público, os álbuns anteriores criaram a “fama” dos Muse. Refiro-me a canções que poderiam ter sido tocadas de “Origin of Symmetry” ou “Absolution” principalmente.
O concerto terminou ao fim de quase duas horas com muito muito fumo, mas certamente não se “esfumará” tão facilmente da memória de quem assistiu.





Uprising





Resistance

[o jardim cortado]



quando eu tinha muitos sonhos vivos que me faziam ter uma idade superior à que a palavra idade me daria, fugia muitas vezes para o quintal de minha casa, doente de toda a gente, e abraçava as árvores mortas. elas encostavam a seiva ao meu coração, e eu aspirava uma vida omnipotente de ventre e de força. ouvia-as naufragar dentro do meu coração com a sua voz de rio morto. aí nasciam as metáforas, os longos jardins cortados, a minha forma afásica de dizer ao mundo que me desejava apenas a mim o próprio fim, cortado por todas as espécies de perversão amorosa; aí eu aprendia que tinha que correr uma distância por dentro até chegar aos vários degraus que implicavam a minha morte.
a árvore que dava nêsperas na minha infância morreu quando eu tinha doze anos. havia uma cobra encostada á raíz. disse-me que era em tudo igual ao instrumento mais potente do meu corpo, o mais elástico de vontade, o mais atento ao cérebro, à memória, ao inesperado. deu-me depois um livro. eu comi o livro, como o apocalipse mandava.
perguntei-lhe o nome. disse-me apenas que se chamava crevel. eu disse-lhe que já tinha lido um livro de apelido parecido, mas ela fugiu para dentro do livro e nunca mais a vi a ela, nem à árvore. mas um destes dias, fazendo amor violentamente, uma cabeça da cobra deitou dentro de ti uma seiva de livro, e os meus galhos de asas cortadas abriram os teus ombros.


Pedro Sena-Lino
As Flores do Sono: Prelúdios e Fugas
2002, ed. Litera Pura

imagem de Magritte

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Salvados

Um chapéu de coral atado a uma medalha de cobre
Uma cómoda estilo primas Lagarto
Um piano de cauda com uma cabeleira de índio
Um garfo sem sombra
Uma imitação do olho esquerdo de Napoleão III tirada no momento em que Ele assinava a lei dos meios das primas Lagarto
Um carneiro de purpurina
O ferro forjado que serviu para Lord Nelson
Uma fotografia a sépia que as primas Lagarto no campo tamanho natural
Um grilo em papel manteiga
O triciclo que pertenceu a Kropotkine
A gravata hidrométrica Inhásse Paderevsky
Um exemplar original de "Vida e Obras de Gânglia Vermouth" com lindas águas-fortes de mestre Inácia Coreto assinadas Pépita Lamartine
Uma perna de carneiro assado
Um lençol com sinais de vómito italiano
Uma cadeira de rodas ainda com o corpo
Uma lágrima de Staline

e de diversos de: primas Lagarto Lao-Tsé Goethe, Hedy Lamarr Nicolau II etc. etc. etc.

cadavre-esquis de Mário Cesariny de Vasconcelos e
Alexandre O´Neill
"Antologia Surrealista do Cadáver Esquisito"
selecção de Mário Cesariny de Vasconcelos
Guimarães editores 1961

The Legendary Tigerman em showcase na Fnac do Chiado



Uma pequena, mas muito positiva nota ao showcase de hoje, na Fnac do Chiado, do Legendary Tigerman.
Trata-se da apresentação de Femina, que faz agora nova edição e é editado simultaneamente em vinil.
Paulo Furtado apresentou-se em palco sozinho, mas com muita muita genica, e, apesar do pergido que á partida poderá representar levar para o palco um disco como "Femina" onde cada faixa tem uma vocalista convidada, mostrou-se bastante competente para fazer a "transacção", usando por vezes as vozes em playback, caso de Asia Argento em "Life Ain´t Enough For You" ou de Lisa Kekaula em "The Saddest Thing To Say", outras vezes assumindo a voz, como em "These Boots Are Made For Walking", originalmente interpretado por Maria de Medeiros ou em "& Then Came The Pain" onde substitui Phoebe Killdeer e "Light Me Up Twice" onde substitui Claudia Effe.
Destaque ainda para as curtas metragens que acompanham algumas das canções, que reforçam o lado cénico que é evidente em "Femina".
A repetir, se possível.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Duas Novelas de Hélia Correia

O atraso com que, de certa forma, começo a ler Hélia Correia nada tem a ver com a promessa de qualidade ou com os seus conteúdos. Já uma vez a citei neste bog, em tempos idos, num seu momento que me pareceu pouco feliz. Sinceramente que um autor diga que deixou de escrever poesia porque acha que não tem nada de novo a dizer acho normal, saudável até; que um autor diga que deixou de escrever poesia porque leu Herberto Helder acho, além de uma diminuição para quem o diz, uma ideia seriamente mortificante. Como sou extremamente sensível a cultos e semi-deuses, fiquei apreensivo quando, descontextualizadamente, me falaram de uma entrevista em que Hélia falava de Maria Gabriela Llansol como "inatingível": entretanto fui ler a entrevista, e, afinal, não há motivo para alarme.
Mas à medida que o tempo passa e a memória destas questões extra-literárias de entrevistas e outras intervenções começa a desfocar-se, decido finalmente procurar os livros da autora.
Não começo exactamente pelo princípio (Que seria a novela de 1981, “O Separar das Águas”), mas quase.
E devo dizer, porque não sou casmurro e sou livre de me contradizer, que é revigorante ver como a escrita de Hélia Correia é mutíssimo superior a essas intervenções públicas. Do pouco que li, ainda, parece-me já tratar-se de um caso de séria originalidade na nossa prosa, uma originalidade bem sustentada, segura.






A terceira novela de Hélia Correia abre com uma citação do “Hamlet” de William Shakespeare”: “Há mais coisas no céu e na terra,/ Horácio, do que a tua filosofia/ pode conceber”.
Esta ideia ocorrer-nos-á, certamente, numa leitura de “Montedemo” (1ª edição, 1983, ed. Ulmeiro). “Montedemo” é, por assim dizer, uma novela estranha, etérea, diria mesmo, em que todos os acontecimentos nos são narrados de uma forma que exalta, definitivamente, essa estranheza. Hélia Correia não recorre nem a processos surrealistas, sequer a contaminações llansolianas (Creio que não será necessário explicar porque refiro este, e não outro, nome.). Nada disso. Esta é uma história, bizarra logo desde o início, e cuja bizarria é acentuada pela forma como, na terceira pessoa, ela nos é narrada. Logo por aqui, esta novela poderia descarrilar e deitar por terra as potencialidades que a história denota logo nas primeiras páginas. No entanto, Hélia Correia demonstra-se extremamente competente para se esquivar dessa armadilha que ela própria coloca. Pelo contrário, escreve perfeitamente consciente da trama complexa que escreve, e acompanha-a de todas as formas possíveis, desde a linguagem utilizada, até à nitidez com que cada personagem assume o seu papel.
A história parte das celebrações da Festa de S. Jorge, uma festa de excessos de álcool e divertimento, que roçam também a orgia. No entanto, este ano, a festa e os excessos foram absolutamente mais longe do que o esperado, e do que o aceitável para uma sociedade fechada. Alguns fenómenos quase sobrenaturais parecem, até, acontecer no céu, que subitamente fica roxo, mas a origem desse fenómeno, ou da sua percepção, fica sempre um tanto por averiguar.
O que é certo é que, nesta festa de S. Jorge em particular, foi definitivamente um excesso, algo que mudaria a vida das pessoas nela envolvidas para sempre, apesar de, ao mesmo tempo, se ter tornado assunto tabu, de que absolutamente ninguém falava, com excepção de Irene, a louca. Neste aspecto, Hélia Correia lança imediatamente a premissa essencial do assunto deste livrinho: que não é uma festa que correu mal, mas sim as reacções de quem esteve presente. É, por assim dizer, um ponto de vista social, como é que esta massa social reagirá face à vergonha em que estiveram envolvidos.
Neste aspecto, ganham particular relevância as figuras de Ercília e da sua sobrinha Milena. Elas representam, como muitas vezes encontramos nos livros desta temática, dois polos de um tempo: de um lado a velhice, os valores da velha guarda, e do outro a juventude que se rege pela renegação desses valores, por uma leveza de espírito que em muito potencia as reações negativas por parte dos “mais velhos”. Ercília ultrapassou largamente aquilo que são os seus valores, as suas condutas habituais, tendo beijado o cauteleiro; tanto que decide fechar-se em casa até que ele morra. “O que até hoje não aconteceu” (pag.22). Milena, a sobrinha, no entanto, voltou grávida da festa de S. Jorge. Quando Ercília descobre, planeia expulsá-la de casa, mas a sobrinha antecipa-se e, quando Ercília vai ao seu quarto para lhe comunicar que a quer expulsar de casa, já esta saíra.
É precisamente esta uma das melhores formas de tornar nítido o contraponto que acima referi, e de desfazer sobre ele alguns equívocos mais fáceis. É que a liberdade dos mais jovens não os faz levianos nem desligados da sua realidade social. Pelo contrário, eles sabem o lugar que ocupam e quando devem mudar esse lugar, por força das circunstâncias. E assim desfaz Hélia Correia o lugar comum da leviana escurraçada e, consequentemente, “coitadinha”. Pelo contrário, Milena sai de casa quando sente que disso é tempo, e sabe exactamente onde ir e como se comportar. Por outro lado, quem se vê completamente sem saber o que fazer face às suas próprias “vergonhas” é precisamente a personagem aparentemente correcta, respeitadora dos seus valores e dos valores sociais, infuenciados obviamente pelo catolicismo, em que está inserida.
Por um beijo, Ercíia enclausura-se em casa, o que não representa solução de género algum. Grávida, Milena sai de casa, mostra-se à luz, assume-se, como assume a sua gravidez e arca com as consequências sociais de um mundo que está de acordo com os valores de Ercília.
Irene, a louca, a única que se atrevia a falar da festa de S. Jorge, mesmo velha, é precisamente quem dá abrigo a Milena, na sua pequena casa junto ao mar.
E aqui entra outra das linhas de força de “Montedemo”: o facto dessa sociedade que está mais de acordo com as ideias retrógradas de Ercília, não se limita a estar de acordo com ela, faz questão de perseguir qualquer um que tenha escolhas diferentes. E assim, Milena, passa de marginal a perseguida, e com ela, Irene, que a isso estava já há muito habituada. Nestes capítulos, Hélia Correia demonstra um conhecimento muito profundo e pragmático da dita “psicologia das massas”: o outsider não é apenas um renegado da sociedade: ele é também um elemento continuamente sob um microscópio, fonte de toda a variedade de rumores, análises distorcidas, teorias mirabolantes, até ao ponto de criar na “massa” que o rejeita uma espécie de mitomania.
Entre todas as complicações que Milena e Irene atravessam para levar avante a gravidez da jovem, têm ainda ajuda de uma mulher solteira e de um farmacêutico que tomam como missão pessoal garantir de Milena tem uma gravidez saudável, e lhe preparam todo o tipo de detalhes para depois de Milena parir a criança. Mais uma vez, podemos daqui traçar uma espécie de perfil psicológico: o dos que estão inseridos na sociedade formatada, mas que face a um valor mais alto, a humanidade, são capazes de mover os seus princípios, evidentemente os formatados, e, efectivamente mudar.
É a partir destas duas premissas essenciais, a diferença de ética, e a não aceitação dessa diferença, que “Montedemo” encontra a sua linha de acção: a perseguição a Milena por parte da massa social em que, anteriormente ela estava incluída. É essa massa, que participou também nos excessos desta Festa de S. Jorge, que vai perseguir Milena, perseguição que culmina num final aparentemente triste mas que é, de certa forma, um final aberto. Outro, útimo, perfil psicológico podemos traçar aqui: a expressão “pecado comum” acaba por perder a sua primeira palavra, o “pecado”. Passa a ser apenas “comum”: por mais que todos tenham participado dos excessos da Festa de S. Jorge, há uma benevolência entre todos, porque, afinal, todos cometeram os mesmos pecados e, a haver castigo, todos haveriam de ser castigados. No entanto, procura-se aquela que trouxe vestígios desse pecado, aquela que há-de fazer persistir a memória dos pecados de cada um, do pecado colectivo.
Hélia Correia tem, em “Montedemo” uma novela original e contada com mestria. Publicado em 1983, não deixa, nos dias de hoje, de fazer todo o sentido.





Villa Celeste” (1ª ed, Ulmeiro, 1985) leva o subtítulo de “novela ingénua”, e foi publicado após “Montedemo”. O subtítulo poderá ou não ser apropriado.
A leitura dos dois romances é uma prova evidente do estilo, bem demarcado, de Hélia Correia, que parece algo dividido. Por um lado, as descrições, feitas de forma absolutamente secas, sem perdas de tempo, mas, ao mesmo tempo, num contínuo trabalho de linguagem, uma construção de vocabulário que é, definitivamente, uma excelentíssima forma de situar o romance no seu contexto temporal. Neste caso, vemos que se trata dos últimos tempos da ditadura e do rebentar da revolução dos cravos. E, apesar da novela “Villa Celeste” só ter vindo a público em 1985, onze anos depois da Revolução, lemos nesta novela uma reconstituição muito precisa quer das situações narradas, quer na construção da linguagem, um trabalho notório.

É a história de uma empregada de família, Teresinha Rosa, uma daquelas empregadas que já são “parte da mobília”. Com a morte de cada um dos membros da famíia, quando resta já o único filho, um pós-adolescente mimado e órfão, que tem aversão a sentir-se dominado nem que seja pelos cuidados de uma criada quando está doente, alivia a sua obcessão por não depender de ninguém para nada, enviando Teresinha Rosa, o elemento na realidade mais parecido com uma mãe que conheceu, para uma casa, longe do lugar rural onde viviam, para tomar conta dela. A “Villa Celeste”, assim se chamava a casa, às portas de Lisboa, estava abandonada mas, sendo de uma absoluta mestria no que toca a assuntos práticos, Teresinha não se demora não só a reconstruir a casa, como a dar-lhe vida.
Inicialmente, essa “vida” começa com a reconstrução e restauro da casa, há muito abandonada, desde nova pintura nas paredes a estofos renovados nas cadeiras e um jardim beíssimo: tudo pelas próprias mãos da velha Teresinha Rosa. Depois, essa “vida” da casa evolui para deixar pernoitar na ‘Celeste’ vagabundos, prostitutas a tentar sair “da vida”, doentes, etc. Sem que isso nos seja dito, a casa funciona como uma espécie de hotel para os desavidos, cujo único pagamento é precisamente insuflar a ‘Celeste’ com vida.E não demora até que a antiga e decadente casa ganhe uma imprevisível vida. Com o tempo, os próprios vizinhos, pessoas “de estatuto”, casais de reformados, antigos juízes, etc, passam a frequentar a ‘Celeste’ que, cada vez mais viva, era uma espécie de imprescindível lugar de passagem para quaquer um que andasse nas redondezas, fosse de que classe fosse. No entanto, o afecto de Teresinha Rosa pela ‘Villa Celeste” é extremo, e, sob aquele tecto, ninguém se atreveria a desobedecer à organização firmemente imposta pela dona da casa.
Mas a dado momento, muitos dos vizinhos começam a mudar-se e, nos lugares das casas deles começam a crescer grandes prédios de vinte apartamentos. A ‘Celeste’ vai perdendo, lentamente, a sua vida. Na altura das obras ao lado, ainda voltou a haver alguma vida na ‘Celeste”, porque os trolhas muitas vezes a visitavam e a Teresinha Rosa. Porque ela e a casa eram já só uma, “a ‘Celeste” e a Teresinha eram a mesma coisa, duas faces de uma vida, como um filho ainda dentro da mãe” (pag.36). Daí o escândalo, quando recebeu Teresinha uma proposta de compra da ‘Celeste’ que recusou, evidentemente, apesar das já várias querelas com os novos vizinhos.
Apesar de todas estas confusões, a ‘Celeste’ prossegue, como um organismo vivo que condiciona a vida de quem quer que lá esteja.
Este poderia ser um conto vulgar de antagonismo entre tradição e progresso, criando-se, assim, uma espécie de batalha, “para ver quem ganha” e depois, se fosse um conto de fadas, a tradição falaria mais alto, se fosse um conto didáctico para jovens prontos a entrar no mercado de trabalho, o progresso acabaria por convencer Teresinha Rosa. Hélia Correia nem passa sequer por um rumor destes clichés. “Villa Celeste” coloca o antagonismo, mas evade-se de lhe dar uma resposta, nem progressista nem moralista, optando por um final inesperado que, evidentemente, não irei aqui revelar.
Com a idade, Teresinha Rosa encontra-se cada vez mais solitária sem que, no entanto, ceda nem que um pouco, às tentações monetárias e luxuosas que lhe propõe pela venda da ‘Villa Celeste’.
O 25 de Abril passa por esta novela, brevemente: no primeiro capítulo a este respeito, encontramos as celebrações, a fraternidade proliferada, a euforia, a quase-histeria (Que encontramos também noutros romances, e em documentos históricos, de que escolho, de memória, “Não Percas a Rosa (Diário e Algo Mais) de Natália Correia, 1ª. Ed, 1978, Dom Quixote.). No segundo capítulo após a Revolução, é Teresinha Rosa quem pensa “Descera sobre a terra a bem-aventurança” (pag.39). Dois capítulos depois é pela voz da narradora que lemos agumas considerações: “Tudo o que é bom se acaba, ora aí está. Era coisa tão viva, tão parecida aos trigais- como flores e alimento- esta revolução que, vejam lá, murchou, fez o seu tempo.” (pag.43). Mas sendo esta uma novela, que, por definição é um texto curto e, portanto, sem dispersões, o impacto do 25 de Abril que verdadeiramente se sente é o impacto que ele tem na ‘Celeste’, que acaba por ser uma espécie de tertúlia, não necessariamente cultural, mas no sentido em que nela acabam por se reunir vários tipos de indivíduos, cada um deles numa situação transitória mas que, invariavelmente, ao sair dela, mais do que prometem, sabem que nunca esquecerão a ‘Celeste’. E isto é possível, precisamente porque a ‘Celeste’, mesmo sendo tratada como uma casa, é um ser vivo, uma irmã de Teresinha Rosa. Até porque, repare-se, raramente ao longo do texto de Hélia Correia a casa é referida como ‘Villa Celeste’, sendo na maioria das vezes chamada ‘Celeste’, numa espécie de personificação.
Por fim, quando Teresinha sente que a ‘Celeste’ está ameaçada, foca todas as suas atenções em encontrar uma forma para garantir que a ‘Celeste’ viva para sempre, um processo afinal masterminded por uma camponesa.
Retomando a segunda frase deste segundo texto, resta tentar entender se o subtítulo de “novela ingénua” é ou não apropriado, e como. De certa forma, penso, é, de facto, uma novela ingénua, no sentido em que muitas das situações descritas por Hélia Correia seriam dificilmente transponíveis para o real. Será, talvez, ingénuo, assumir tanta bondade por parte de uma pessoa. No entanto, há que ter em conta a relação visceral que Teresinha Rosa criara com a casa. Uma relação de afecto, porque ela sente quando a casa tem frio, quando a casa está amuada, quando a casa teve saudades dela. E, nesse aspecto, talvez não seja tão ingénua esta novela, uma vez que Teresinha Rosa apenas tentou preservar aquele ser vivo, garantir que nada lhe aconteceria após a morte da própria Teresinha Rosa. E talvez não haja nada de ingénuo nisso.
“Villa Celeste” é, por isso, um romance a ler. E, para os mais coleccionistas, sempre se pode ler na graficamente maravilhosa edição do Contraponto, que Luiz Pacheco editou muitos anos mais tarde, em 1998.

Agustina Bessa-Luis: Um Cão Que Sonha

A NAUSICA DE MONTE-FARO


Nas badanas de “Um Cão Que Sonha” (3ª edição, 1998, Guimarães editores) fala-se da influência que a escrita de John Cowper Powys poderá ter neste romance de Agustina Bessa-Luís. No entanto, ao terminar a sua leitura, ocorreram-me mais imediatamente alguns textos de “Un Certain Plume” de Henri Michaux (vd. “Antologia” trad. Margarida Vale de Gato, Relógio d’Água, 1998). Nestes textos de Michaux encontramos uma espécie de anti-herói, Plume, que se vê apanhado nas mais complicadas situações sem que, no entanto, tenha feito alguma coisa por isso. É então um herói acidental, é um protagonista mas não é um carácter especial, como requer o cânone do herói. Nas palavras da tradutora de Michaux, “Plume [é] o “homem pacífico” que “não esteve a par do assunto”; um herói passivo, sim, mas que por isso mesmo resiste(…)”.
Passa-se o mesmo com Léon Geta Fernandes, que apesar de protagonista, parece ser absolutamente exterior a (mais) esta história que Agustina nos traz. “Um Cão Que Sonha” vive, isso sim, da figura de Maria Pascoal, que está morta na maioria dos capítulos. É a reconstituição da vida dela que realmente faz a trama deste romance. Léon Geta, o viúvo, tem apenas a “ingenuidade de um cão que sonha”, atravessa o seu tempo sem nada de interessante, não tem particulares afectos por ninguém, não tem profissão, não tem ocupação, não tem amantes (Parece ser, de certa forma, assexual.). O seu casamento com Maria Pascoal foi, na verdade, uma decisão da avó, a La Roque, mais do que dele, e mesmo assim, “o que houve entre ambos foi uma boa inteligência e não amor” (pag.175). Depois da morte de Maria Pascoal, Léon nem sente propriamente a falta dela, muda-se para Lisboa completamente indiferente à fortuna que lhe caberia como herdeiro do longínquo Comendador Faustino, relegando esta responsabilidade para José Stuart.



A sua vida, verdadeiramente, só dá alguma volta quando, anos depois da morte de Maria Pascoal, é descoberto o manuscrito de um romance que esta teria escrito na sua casa de férias em Monte-Faro, para onde se evadia constantemente, tendo até morrido num acidente de viação quando viajava de regresso dela. O documento de Monte-Faro, do qual não temos praticamente excerto nenhum, e nem sequer um título preciso, é-nos descrito como um romance extraordinário. Amálio Correia de Sá, um escritor falhado que está próximo de Léon (Ainda que este não o considere propriamente um amigo.), acaba por publicar o documento, com o nome de Léon Geta como autor. No entanto, dado que Léon não passa de “um cão que sonha”, expressão aliás citada do documento de Monte-Faro, naturalmente não publica mais nenhum livro e, quer nas suas relações pessoais quer nas raras intervenções públicas que faz acerca do livro, mostra-se definitivamente muito pouco à altura da grandiosidade do livro que, suposto, terá escrito. Daí que, citando, “O documento de Monte-Faro, que seguramente não podia ser atribuído a um homem ou a uma mulher, teria, com o tempo, de ser alvo de toda a sorte de dúvidas e complicadas análises.” (pag. 232).
A presença das “três mulheres más” é particularmente importante neste ponto. Elas são mulheres que odeiam profundamente Léon, ainda que estejam perdidamente apaixonadas por eles, pois lemos inclusivamente que “não se pode odiar muito sem amar um bocadinho” (pag. 193). E, portanto, ao mesmo tempo que tentam encontrar todas as possíveis maneiras de seduzir o “inseduzível”, congeminam também a melhor forma de o destruir, ou, no mínimo, de destruir a fama que ele granjeou com a publicação do romance. Com o humor do costume, Agustina descreve assim as três mulheres más: “As mulheres más não são propriamente más. Uma fazia versos, outra fazia figura e a terceira consagrava-se a um marido fanático dos romances que escrevia(…)” (pag. 200). É precisamente esta terceira quem, mais afincadamente, tentará retirar Léon do pedestal em que o colocaram, precisamente porque teme que ele possa fazer frente ao marido. É também ela quem percebe que Léon não tem o mínimo interesse pelo estrelato, e, mais tarde, mais convicta fica de que Léon não é, na verdade, o autor do romance de Monte-Faro. Léon nem sequer leu o livro, apenas colheu dele algumas ideias mais vagas.
Entre as “dúvidas e complicadas análises” feitas ao livro, conta-se inicialmente a ideia de ele ter sido escrito pela defunta mulher de Léon, mas esta teoria “foi arrefecendo, enquanto que ganhava terreno a ideia seguinte: ele pertencia antes a um jovem seminarista adiantado no curso ou jovem noviço que, na casa de férias da Companhia, conhecendo a família dos Arcos, privasse com Maria durante alguns dias, tendo deixado á sua guarda o manuscrito que ela provavelmente copiara. Não estava assinado e a letra era regular e bem desenhada, como a de um copista.” (pag. 232). Entre as alucinadas análises ao livro, Agustina traça um interessante paralelismo com a teoria de que também a “Odisseia” não será na realidade obra de Homero, mas sim de uma mulher, a “princesa siciliana”, como Amálio, o único que sabe inequivocamente a verdade sobre o livro de Monte-Faro começa a referir Maria Pascoal. No meio de tudo isto, Léon permanece invariavelmente indiferente.
O seu interesse, no entanto, prende-se com um grande mistério da vida de Maria Pascoal: antes de casaram, no tempo em que a vida de Léon era entre os amigos do Bando, um bando de cães que sonham afinal, certa noite em que ele pernoitara na casa semi-abandonada do avô Osvaldo, tocaram-lhe à porta a meio da noite. Era uma rapariga, fugida da sede do MUD que havia sido descoberta pela PIDE e que ali vinha procurar esconderijo. Desapareceu na manhã seguinte e só depois da morte de Maria Pascoal, Léon fica com a impressão de que se tratava, na verdade, da sua futura mulher. Facto impossível de averiguar ao certo, dado que a mulher está morta e dela, pouco mais resta do que o referido documento de Monte-Faro.
E é esta, essencialmente, a grande particularidade de “Um Cão Que Sonha” face à restante obra de Agustina: a impossibilidade de averiguar a verdade dos factos. É certo que o romance acaba, como não podia deixar de ser, exactamente como termina. Com o seu herói acidental que pouco mais faz do que comer e dormir a toda a hora, e a verdade sobre a estudante do MUD e a autoria do documento de Monte-Faro por saber.
É também neste romance que Agustina afirma “Nasci adulta, morrerei criança”, através da personagem de Maria Pascoal. E nada mais apropriado, se estamos perante uma personagem que escreve um romance avassalador mas que morre, deixando atrás de si um acumular de mistérios, como uma criança que deles vive rodeada.

sábado, 15 de maio de 2010

a poesia visual de Henri Michaux















Pastelaria


Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura

Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola

Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita genteque come

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir de tudo

No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra



Mário Cesariny de Vasconcelos
Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano
1952, ed. Contraponto

para curar a depressão pós-papa

os Lamb ao vivo em Lowlands com "Till The Clouds Clear"

sexta-feira, 14 de maio de 2010

engraçado... muitas vezes dou por mim a pensar isto

PJ Harvey: This Is Love (2000)

A Fecundação e a Fraude



eram outras as partes da traição e do engano.
a cervejaria abandona a sua opulência vítrea para espelhar os corpos mata-borrões da noite.
o universo repousa a carne flácida nos chapéus brancos enfeitados com tangerinas- NÃO MATARÁS- as catadupas de palavras com a fluência de copos, olhos cegos acesos de espuma.
o interior esmalta-se no exterior com a indolência do outono.
quatro gomos
quatro gumes
quatro anjos atrás de nós.
o peito ressoa madrugadas- NÃO MATARÁS- a divindade num frasco.
nada está latente.
tudo se precipita.
a insolência do papel, meu amor, crio raízes, a água limosa, teu corpo imensa nave, o encontro do outro lado da margem.
estamos condenados ao júbilo.
os cossacos devassam as nuvens montanhas de algodão em rama, sob o piar dos mochos e o agasalho das mães no fundo dos poços.
rutilante a água chora pelas muralhas da cidade.
enquanto os peixes entram em elucubrações e adejam primaverilmente.
a cidade é o sepulcro lapidado com flores nas orelhas, o violento orgasmo do sol na vidraça, a cloaca do mar rasteiro nojento.
a parte franca.





Regina Guimarães
A Repetição
ed. Hélastre, Setembro de 1979
pintura de Francis Bacon

um poema



Almocei hoje com uma deusa e subi a rua devagarinho encantada de nostalgia e sonho. Tive uma deslumbrante sensação de morte em seus braços e pelos braços
das esquinas segui
procurando severamente e com minúcia idênticos aromas.


Entretive o acto da procura com uma lenta masturbação no olhar e um sorriso de mel sobre o corpo.





Helga Moreira
Aromas
ed. &etc, Março de 1985
pintura de Graça Martins

Estes Happenings de Maio

Grande alarido este que em poucos dias assolou o país em que pastamos. O papa é recebido como se fosse a J.Lo e o povo corre a assistir. Nada que me choque, de resto, porque se a religião é o ópio do povo, está visto que Portugal é um país mais de opiómanos do que de poetas. Como ateu que sou não consigo esconder a comichão que tudo isto me causa.
Ainda assim, o que mais me surpreende é a quantidade de obras e movimentações que a visita do homem originou. Em Lisboa reconstruíram o Terreiro do Paço, no Porto condicionaram o trânsito na Avenida dos Aliados...
A única conclusão que posso tirar destes happenings é que a única forma de intervir no espaço público no sentido de o melhorar é agendar uma visita de um oráculo católico. O que é triste.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Dia a Dia



Estamos sempre a perder coisas,
as mais frágeis, ou as que caem pelo caminho
quando abrimos os braços para receber.
A nossa vida nunca tem as mesmas palavras
para o que transportamos,
mas tudo o que achamos nos deslumbra
a casa, cheia de coisas que temos
ou não temos cada dia.






Rosa Alice Branco
Da Alma e dos Espíritos Animais
ed. Campo das Letras, 2001
imagem de Júlio Resende

Fiama Hasse Pais Brandão: Âmago 1, Nova Arte

SER UM COM O MUNDO


Logo no primeiro poemas de “Âmago 1: Nova Arte”, publicado na Limiar em 1985, Fiama Hasse Pais Brandão fala n’ “um espelho para reproduzir/ as mutações da vida.” E, no poema seguinte, “Gota de Água”, o sujeito poético experiencia uma gota de água a cair numa corola. Mas experiencia esta queda não como observadora:

A gota de água cai na corola. Essa
queda também me movimenta. Assisto a
um condão estranho. Ser gota e ser
figura. (…)


A palavra “figura” vai ser essencial para atravessar este livro e tirar dele o seu “âmago” primeiro, a “nova arte” que o título anuncia. É de figuras, efectivamente, que este universo parece construir-se. No poema “O Gamão” encontramos uma possível definição da “figura”:

(…) O meio corpo na meia realida
de. Anda compassadamente pelo seu li
toral. Mesmo quando é comparsa das
figuras do gamão, a minha silhueta
diferencia-se.
(…)
Sou eu que ainda
estou presa à minha figura.


Daqui, retiramos já algumas conclusões: a de que a figura compreende meio corpo na meia realidade. É portanto um corpo dividido ou, de outra forma, incompleto. Nos últimos dois versos citados, o sujeito poético assume-se preso à sua figura. Uma figura, portanto, de corpo dividido e cuja silheta se diferencia de outras figuras. Regressando ao poema já citado “Gota de Água”, já vimos que o sujeito poético é também movimentado pela queda da gota de água. E fala-nos de um “condão estranho. Ser gota e ser/ figura”. Assume-se, portanto, desde o início como figura. E, retomando ainda o momento que esse poema, um dos melhores do livro de 1985, descreve, podemos assumir que, de certa forma, a corola em que a gota cai faz parte da figura do sujeito poético, porque essa queda também o movimenta. Se retomarmos a ideia da figura com meio corpo na meia realidade, talvez não só o corpo de uma figura esteja dividido, mas também o real: um real dividido entre os elementos e a percepção sensitiva, psíquica, que o sujeito poético tem deles.

Neste livro, tudo se transforma em figura, tudo tem o seu lado visível, como em “Morte no Plano”: O siêncio em fios.
Esta anulação das distinções “ser humano”, “ser vivo”, “ser não vivo”, que todos passam à categoria de “figura” tem evidentemente o seu peso. Peso que é explicado ainda no poema “Gota de Água”:

(…) An

do afastada das coisas. Mas sou visí
vel para elas. Aquela pápebra vê
-me. Tem os signos incrustados no arb
usto e mais simples é a brancu
ra. Ainda sou arguta. Incito a escri

ta a porvir das palavras. Como é
pungente manter-me no ardor
das figuras. (…)


Aqui, como vemos, as “coisas”, classificação vulgarmente atribuido ao que não tem vida, ou então “aquela pálpebra” vêm o sujeito poético, que vulgarmente seria “ser humano”. A redução de tudo a “figuras” é, por isso, um nivelamento entre o Homem e os restantes elementos da natureza, as plantas, os animais (Em cima a silhueta da figura do sujeito poético é comparada à de um gamão.), etc.
Não deixa, depois deste ponto da “figura”, de ser importante destacar um verso do poema “Flamingos” onde Fiama escreve “Nenhuma metáfora me assassine.” Tem este verso particular interesse porque, se podíamos ter, por exemplo, a queda da gota na corola sentida pelo ser humano como metáfora, fica aqui esclarecido que disso não se trata. Pelo contrário. Quanto mais entramos no universo deste livro, mais percebemos que não é de metáforas que se fala, mas de uma postura perante a natureza, a de ser um com ela. Será essa a “Nova Arte” anunciada pelo título, experienciar a natureza sendo parte intrínseca dela, tornando-nos mais uma das suas figuras. Mais à frente, no poema “Arte” esta recusa da metáfora é levada ainda mais longe: “Mas nada/ por efeito da metáfora me/ arrebata para dentro.”
No poema “Lince” encontramos ainda uma interessante abordagem da morte, outro dos assuntos essenciais de “Âmago 1: Nova Arte”.

Aprendendo a mímica do lince podes
amar a morte. Uma aprendizagem exa
cta. Seguir o contorno parado, ponteagudo,
das pequenas orelhas.
(…)
Não
temas o fim como os outros seres
vivos que amam a própria morte.
A sua silhueta articula-se como um o
bjecto artificial.
(…)
Aprender um desenho
mais profundo do que o prateado
do vulto. O que nos fulmina é
belo como a última queda depois
de um salto livre entre as montanhas.


Repare-se que o desenho não é necessariamente um desenho no sentido em que é um aglomerado de linhas e manchas sobre o papel. Pelo contrário, o desenho parece ser feito como que para incorporar a própria figura, numa espécie de fagia: fagia no sentido em que a “figura” que tomamos por uma figura humana deve assimilar o “desenho” do tigre para aprender a amar a morte. É preciso não esquecer que esta poesia, a de Fiama, desde sempre teve como maior objecto a natureza, livro após livro, a obra de Fiama parte e chega à natureza. Mais ainda, na bibliografia da autora, aquando da publicação de “Âmago 1: Nova Arte”, é anunciado um próximo livro “Âmago 2: Nova Natureza”, que acabaria por ser publicado no volume que reunia três livros de Fiama, “Três Rostos”, publicado pela Assírio e Alvim em 1989.
Voltando ao assunto da morte, é também de referir o poema “Morte no Plano” de que transcrevo a primeira estrofe:

Chuva tão firme como a mor
te num plano. Árvores turvas.
O silêncio dividido em fios.
Corte na cadeia dos desejos. A ca
sa acidulada. O açúcar sem
boca. Nada ou zero. Morrer atrás
das sombras. Ir e vir. Miserável
morte.


O funcionamento entre a morte e a natureza é aqui bastante mais subtil do que no outro exemplo, porque o poema incia com uma comparação entre a chuva e a morte. E, as imagens que de seguida fornece, abrem possibilidades tanto a uma como a outra. O siêncio interrompido ou dividido, as árvores que parecem desfocadas, o corte no desejo, a casa acidulada, o açúcar que ninguém come, etc. Neste poema parece-me, portanto, estar mais do que provada a ideia da figura humana, que pode ser o sujeito poético, se funde completamente no elemento natural. O mesmo se poderia dizer, acerca desta fusão, a respeito do poema “Erez”, onde lemos nos primeiros versos que “A praia sobe até aos dedos/ mínimos.”
Parece-me relevante referir o poema “O Começo da Obra”, que encontramos mais à frente:

Na manhã tão densa como a noite
encontrei o amanhecer perdido. Dedo
a dedo encho-o com música. Som
sobre som vejo-a.
(…)
Reencontro o mundo que pulsa. E o
meu passo conduz-se pelo compasso.
A sombra dos sons que há na musicali
dade da sombra. A noite para construir
a manhã.
(…)
Esta obra está em ruína. Um silêncio
entre-dentes. Calaram-se. As ferramen
tas não gemem. Dormi e não estou.
Morro mas vivo. Os materiais
transcendem-me e o tempo bebe
-me.

Ao longo do poema é descrita uma fusão na natureza, como uma forma de vida, o indivíduo existe nela e em função dela. O título do poema, bem como a última estrofe citada dão o indício de se tratar de um elemento iniciático da escrita. Pode ser, efectivamente, uma arte poética, e, em última análise é esta a “nova arte” proposta no título, uma arte poética mas também uma espécie de “arte de vida”, uma vez que, recusada a metáfora, a obra obrigatóriamente coincide com a vida.
Outro aspecto que importa sempre referir é a presença da poesia. Uma vez mais porque, a poesia de Fiama Brandão teve sempre como uma das suas principais linhas de força a análise e por vezes a completa subversão do acto de escrever, e procurando, aliás, formas insólitas de construir a poesia, em projectos algo conceptuais ou experimentais, mas bem explicados.
Nesse aspecto, a presença da poesia ao longo do livro é particularmente explorada em “As Cartas”:

Esperas os sinais da minha existência.
Eu transcrevo-te mas não vivo no poema.
Morro na mancha do papel. Uma carta cai
no matagal como um pássaro.
(…)


O poema enquanto forma de comunicação seria a ideia mais rápida que à primeira vista se poderia retirar daqui, no entanto, parece-me claro que essa ideia é algo ténue. Ainda que no primeiro verso haja um “eu” que se dirige a um “tu” dizendo-lhe que esse “tu” aguarda sinais da sua existência, note-se que no segundo verso, o verbo utilizado é “transcrevo-te”, e não “escrevo-te”. Poderemos olhar este “desvio” da seguinte maneira: é o próprio poema ou a própria poesia esse “tu”, e o sujeito poético, o “eu” admite transcrever o poema, mas não vive nele, mais ainda, acrescenta que morre “na mancha do papel”, e por mancha podemos interpretar um borrão, uma escrita mal sucedida, e, quando o papel cai, nele não vai um poema mas “uma carta” que “cai/ no matagal como um pássaro.”
No entanto, não é de desprezar a ideia de que a autora se estivesse a escrever a si mesma, ou a outra pessoa. Mais ainda porque a transformação em “figura” não elimina elementos biográficos e até muito concrectos da biografia. Exemplo directo disso é o poema “Estuário de um Tejo”, cujo título será suficiente para que se entenda que a “natureza” com a qual estes poemas se fundem, ou com a qual estes poemas fundem o seu sujeito poético, não é uma natureza, como poderia pensar-se, em estado selvagem: muitas vezes nem o é campestre, é pontualmente urbano com reminiscências à cidade de Lisboa, por exemplo. E, ainda sobre os elementos biográficos, não faltam referências literárias (Junqueiro e Eugénio de Castro são citados em “Oaristos IV”.), inclusivamente aos livros anteriores da autora (“Era” é evocado em “A Criança Antiga”.)
Outra questão interessante no que toca a falar sobre poesia, é sempre a diferenciação entre “sujeito poético” e “sujeito biográfico”. E, um pouco instintivamente, diríamos da poesia de Fiama Hasse Pais Brandão que ela compreende um sujeito poético mas não um sujeito biográfico. No entanto, um olhar mais incisivo sobre “Âmago 1: Nova Arte” (E até sobre outros livros, mas esta nota de leitura é sobre este livro específico.) seria suficiente para se perceber que nesta poesia existe um, e bem demarcado, sujeito biográfico. O que se não pode dizer é que se lhe notem momentos confessionais ou de revelações íntimas. No entanto, é sabido que a biografia compreende bem mais do que confissões e intimidade. No caso de Fiama, o indicador de biografismo nos seus livros acabam por ser outros livros, referências, citações, glosas (Não esqueçamos que estamos perante uma poesia que nunca recusou a intertextualidade e que foi, talvez a mais original na forma de o fazer entre a nossa poesia.). Assim sendo, não é ao acaso que em “Graficolíquido” Fiama escreva “Tudo na minha biografia/ a todo o momento se repete.” e no poema segunte, “Oaristos IV” diga “Eu disse-o já/ quando escrevi sobre o prestígio/ estético em oitocentos.”, mais à frente, em “A Criança Antiga” fará referência ao poema “Pomba”, pertencente ao livro “Era” (in “O Texto de João Zorro”, Inova, 1974) e “Vem Noite” não pode deixar de nos relembrar que a autora viria a traduzir os “Hinos à Noite”, podendo este título ser uma espécie de alusão com a obra de Novalis.
Penso que é importante referir todos estes aspectos para que se entenda que a comunhão com a natureza não representa, na poesia de Fiama Hasse Pais Brandão, um exílio forçado nem nada semelhante. Pelo contrário, é um acto quotidiano, quotidianamente repetido, tanto numa quinta (Que poderia ser a quinta da autora em Carcavelos.) como na cidade de Lisboa, que muitas vezes sentimos presente.
Ainda sobre a relação com a natureza, essa comunhão ou fusão, parece-me pertinente acrescentar que nem sempre ela é pacífica ou agradável. Por exemplo em “Prosódia do Texto e Música” lemos no final:

(…) Depois mergulhámos na frial
dade do mundo trazida pelo vento.
O palácio estranho ficou no
horizonte. Nenhuma pedra é

tão lenta como a dos sons.


em que vemos como o mergulho na natureza que constitui esta “nova arte” inclui mergulhar nela quando as condições são as menos favoráveis. É, por isso, uma vivência em pleno da natureza, e não uma assimilação apenas do que esta possa ter de positivo. E mesmo num poema anterior, “Tapada de Mafra II” já líamos uma enorme inércia, um quase abandono, neste excertos

(…)
Quando a deambulação pára
toco na extremidade do real.
(…)
A imobilidade de tudo e a desapa
rição aniquilam-me dia adiante.
(…)

Como podemos ver nestes exemplos, ou numa passagem de “O Começo da Obra” onde lemos “Gota a gota agonizo. O sol chegou en/ tre construtores insensíveis.”, nem sempre a união à natureza é uma sensação de vida. Por vezes é um verdadeiro “ofício de paciência”, Eugénio de Andrade empresta, e até, no segundo caso, de aproximação ao mundo irreal. Mas a poesia de Fiama procura um abraço pleno com a natureza, pleno e portanto, que aceite os males que daí possam ressurgir.
Por outro lado, e agora talvez a palavra subversão venha fazer algum sentido, repare-se que a situação-limite que leva este sujeito poético a tocar a extremidade do real (Onde principia o irreal.) não tem a ver com a “frialdade do mundo”, mas sim com o seu abandono, a sua solidão, a sua “imobilidade”. Mas quando falei de “subversão” foi apenas nas formas inovadoras que Fiama Brandão foi tentando encontrar para a sua poesia. No entanto, os próprios símbolos, nela, são subvertidos. Repare-se no poema “Tâmega” onde a figura do morcego, classicamente associada ao mal, passa a ser um sinal de vida:

Um morcego abençoa-me na escuridão
desenhada. Rebenta como a lâmpada que
ele bebe. Um ente sem lucidez.


De facto, o morcego é, no poema, aceite como figura antagonista à luz e, no entanto, é ele quem abençoa esta figura, mesmo rebentando com a lâmpada e não tendo lucidez. Este acto de rebentar a lâmpada dá-nos também acesso ao outro lado, o da escuridão, que, afinal, parece ser a bênção que o morcego dá à figura humana. Mas como se disse, este abraço à natureza quer-se pleno, cheio.
Por último, e porque esta nota já vai longa, gostaria apenas de realçar a extrema importância que tem ler este livro integrado na “Obra Breve”. É um livro que já li o ano passado e, no entanto, só agora me apeteceu redigir esta nota de leitura. Penso que, integrado no volume da obra completa, são muito mais perceptíveis certas características, principalmente formais, mas não só, que “Âmago 1: Nova Arte” apresenta. É possível agora perceber porque Fiama diz, na sua “Gota de Água”, “Possa a arte gráfica ilu/ minar-me no sofrimento da criação” quando temos, como comparação, a pequena plaquette “Melómana” (1977, Inova), onde Fiama afirma que “mais do que nunca preocup[ou]-se com os fonemas. Por isso ao ter consciência de que assinalam manchas visuais, [teve] de os fraccionar, o que [a] levou a alterações gráficas, de modo a que, entre a forma visual panorâmica, a forma sonora e a forma visual gráfica, houvesse uma correspondência. (…)”, e isto explica as palavras subitamente interrompidas que continuam no verso, e às vezes na estrofe, seguinte, que não é apenas uma questão rítmica. Em termos temáticos, os três separadores anteriores são “13 Poemas de Amor Pelos Livros” inédito até à reunião da “Obra Breve”, “Cântico Maior” atribuído a Salomão, uma versão publicada erm 1985 pela Assírio e Alvim, e os “14 Polissílabos sobre Anjos”, também inédito até à colectânea. No entanto, é precisamente com os livros “Melómana” e “Área Branca” (1978, Arcádia) que “Âmago 1: Nova Arte” parece mais enquadrado, ainda que se sintam também algumas reminiscências daquela que foi, para mim, a fase menos interessante da poesia da autora, que vai das “Novas Visões do Passado” (1974, Assírio e Alvim) à “Homenagemàliteratura” (1976, Limiar) onde a barreira entre a poesia e o ensaio era possivelmente, demasiado ténue.
“Âmago 1: Nova Arte” foi, portanto, um regresso às melhores raízes da poeta de “Em Cada Pedra Um Voo Imóvel” ou “Área Branca”

Estrada da Luz



Fica o arroubo e cinza dos pombos,
a luz rosa caída no teu peito,
filtrada pelas casas
pelos ninhos de muitas vidas.
Só a pele da tua língua pede um verso.
Talvez ele se decida a descer as colinas
pitorescas, num correr de criança
ou num tropeço de velho
na mais frugal viagem das palavras.

Quem promete mais luz?
Repara nos andaimes, como eles se ergueram
na calada beleza
de um domingo sem missa.

Dois meninos de Deus ao fundo da rua
parecem querer subir à eterna glória.
Eu fico aqui parado, realmente parado,
à espera do teu corpo,
debaixo dos martelos desse piano gigante
em que puseste as mãos
como quem pega pela primeira vez
num talher de prata.

É sempre melhor voltar a casa
voar dentro da sala no vento da tua boca.

O azul não cansa a vista e a mata de Monsanto,
outrora um crime inesquecível,
é feita para nela me deitares
com todos os teus insectos e anjos.

Comiam caracóis, calados, jovens, bebiam coca-cola.
O teu marido, eu sei, é um vencedor.
Aos vinte e cinco anos- na era de sessenta-
tornou-se milionário com alma de budista
se é que um budista tem alma.
De pé, o empregado aguarda que percorras
as tábuas da nossa lei
e esgotes numa palavra o sentido
da vida.

Num domingo sem danças, os andaimes
sem gente, e Deus sem hóstia,
há amigos intocáveis,
mas a língua
retoca-os
à sombra da nossa voz.

Só um sorriso borrado de grenat
destoa
na boca desta tarde e da cidade.


Armando Silva Carvalho
Lisboas
ed. Quetzal, Janeiro de 2000

Sinais de Vida, 49



Passa no coração uma agulha
o que é uma elipse antiga.
Algo que poisasse os pés junto
a mim. Túmulo que se fechasse.
Os trinados no fim do canto.

Um choro mais terrível
do que a morte. Corre em espiral.
Cai como um tampo. Não é líquido.
São torrões de terra. Um após

o outro. Não suporto esta imagem
transposta. Quero ser real.
Molhar os olhos em vez de
os transformar. Desconhecer
para sempre o pensamento.

Ignorar as pedras que me fazem
assemelhar a si lágrimas.
Passam as esporas das aves
à superfície. Linhas
de que não tolero a dor.

Estar a ser algo no chão.
Pisar-me. Não saber quem
é o sujeito. Destruição breve.
Dou as palavras que conheço.






Fiama Hasse Pais Brandão
Àrea Branca
1978, ed. Arcádia

imagem de Marc Chagall

Le Chat Beauté (3 Fragmentos)



Tous les artistes sont amoureux du chat Beauté. Aucun ne l´ayant jamais vu, chacun s´efforce, à sa manière de l´inventer. Chacun se vante d´avoir réalisé, en prose, en vers en peintture ou en musique, son portrait. Le chat Beauté les laisse dire, et laisse leurs oeuvres tomber en poussière. Il ne se donne même pas la pleine, d´un coup de queue, de les balayer. Tout au plus s´amuse-t-il parfois à se changer en courant d´air.


Le chat Beauté évite de sortir par les nuits de pleine lune, car les chiens de l´amour le reniflent de loin et se ruent en meute sur ses traces sans aboyer, en tirant la langue, montrant les crocs grondant et soufflant fort. Si bien que les dormeurs qui porsuivent le chat Baeuté dans leurs rêves n´imaginent pas qu´il a passé sous leur fenêtre. Au matin, les chiens de l´amour reviennent, la langue pendante et la queue basse.


Le cat Beauté vit au ciel. Les éclipses sont ses clins d´yeux. Le frottement de son poil électrique provoque des pluies d´étoiles et des aurores boréales. Mais presque toujours par temps de brouillard.




Saguenail
Il N´y a Pas des Saisons en Enfer
ed. Hélastre, dezembro de 2006

imagem de Max Ernst

Rosto Sitiado, 13



De novo curvamos o corpo
cingido o arrepio das casas.
De novo apertamos nos olhos
a dor monótona da chuva
árvores despenteadas
ossos
húmida negrura.

O silêncio do vento
fere
nosso rosto sitiado.

De novo nos consumimos
em outono
fogo lento
e as mãos perfumam a tarde
consentem o cansaço
como pássaros
assustados de cinzento.






Maria Graciete Besse
Rosto Sitiado
ed. Fenda, 1983
imagem de Jorge Pinheiro

i

Rosa Alice Branco: O Gado do Senhor

O ÓPIO E O POVO

Em 2002, Rosa Alice Branco reuniu num único volume, “Soletrar o Dia” (ed. Quasi), a sua obra poética desde 1988 (Ficando excluído o primeiro livro, de 1981, assinado com pseudónimo.). Desde então, dois poemas foram editados em edições de verdadeiro luxo gráfico pela Gémeo R, “A Palmeira de Kairouan” (2003) e “Amor Quanto Baste” (2005), sendo que o primeiro poema vinha já integrado na secção inédita “Soletrar o Dia” na edição da Quasi. Só em 2009, “O Mundo Não Acaba no Frio dos Teus Ossos” (ed. Quasi, incluindo “Amor Quanto Baste”.) vem quebrar este quase-silêncio de seis anos.


Uma leitura desse livro sugere aquilo que o mais recente “O Gado do Senhor” (2009, ed. Espiral Maior.), vencedor do prémio ibérico Espiral Maior e ainda não distribuido no nosso país, vem confirmar: “Soletrar o Dia” foi o momento mais apropriado para reunir a obra da poeta desde “Animais da Terra” (ed. Limiar, 1988), porque a poesia que Rosa Alice Branco publicou no ano passado nos vem demonstrar que está completamente renovada e, nalguns aspectos, até subvertida.
Sem querer aprofundar demasiadamente um olhar sobre a obra 1988-2002 (Que compreende sete livros.), uma das características que mais ressalta na leitura da mesma é a extrema luminosidade que se faz sentir nesses versos: é uma visão que procura a luz, a beleza e a simplicidade (Que melhor prova disto que a “pesquisa” sob a forma de poesia que é “O Único Traço do Pincel” (ed. Limiar, 1997)?), e que as procura usando de uma forma muitíssimo equilibrada a sensibilidade e a inteligência, não dispensando nunca o raciocínio, as associações de ideias e a importância do pensamento e da reflexão. É também uma poesia em que nada é adquirido, tudo é continuamente questionado, codificado e descodificado, uma poesia que existe simultaneamente como elemento autónomo e elemento de ligação do individuo ao real e até às próprias palavras que constroem essa ligação, como vemos no caso de “A Mão Feliz” (ed. Limiar, 1994), onde Rosa Alice Branco explora as potencialidades do d(e)íticos.
Mas quando nos deparamos com “O Mundo Não Acaba no Frio dos Teus Ossos”, há características que se alteram e outras que surgem pela primeira vez. Talvez esse seja mesmo o livro mais “negro” de Rosa Alice Branco, um livro que mergulha profundamente nas problemáticas da morte, da ausência e do luto que, estando presentes nos livros anteriores, o estão agora de forma mais nítida. Também uma dimensão de algum pendor narrativo se faz sentir neste livro, logo no título completo, “O Mundo Não Acaba no Frio dos Teus Ossos (Pensa Ela)”. Estes parêntesis surgem ao longo da maioria dos poemas do livro, e vão-nos dando indicações precisamente de reacções, comportamentos e estados de espírito face às referidas questões que são o cerne do livro.
Redondamente diferente, no entanto, é “O Gado do Senhor”. Se no livro anterior, e mesmo no seu título, poderíamos sentir uma ponta de ironia, a ironia é precisamente uma das principais linhas de força do mais recente livro de Rosa Alice Branco. Este livro é, no seu todo, uma grande sátira com as questões religiosas, mas evita esgotar-se nelas e estende-se para toda uma dimensão social, política e humana, sempre partindo do princípio que inevitavelmente estas são afectadas por aquelas.



Os títulos de alguns poemas aludem logo para este assunto: Parábola dos Talentos, Dia dos Mortos, Arca de Noé, Crescei e Multiplicai-vos ou Via Sacra, por exemplo. Além destas expressões de cariz cristão, a poeta utiliza ainda, em alguns poemas, citações de orações ou passagens bíblicas, tendo sempre o cuidado de as inverter e relacionar com universos exteriores ao catolicismo. Por exemplo em Prova da Existência da Alma:

“O meu director fala de objectivos, fazemos mapas
e somos despedidos se. Ou temos prémios
e corrupção. Haja alguma arte em tudo isto.
Senhor, o teu corpo está seco na gaveta.
Estás no meio de nós coberto de bolor.”
(pag.35)


ou então em Sem Livro de Reclamações:

“No princípio era o verbo
e agora ninguém responde.”
(pag. 48)


A visão de Rosa Alice Branco sobre a problemática aqui colocada, a do catolicismo e da sua influência sobre a vida de toda uma sociedade em que estamos incluídos, é bastante clara: não existe um deus que nos salve ou que nos origine e encaminhe. Além do mais, exclui completamente hipóteses da eternidade ou de ressurreição, o que já não é novo, visto que num dos poemas do seu primeiro livro, Rosa Alice escreve “A eternidade é só a demência do homem”. Mas esta é uma poesia altamente filosófica (Não fosse a poeta formada em Filosofia Moderna.), e portanto, não se limita a excluir a hipótese de deus. Oferece também alternativas. E se em termos de salvação, nada mais parece possível do que o amor, em termos e origem e de caminho a única resposta é a natureza. Interessa aqui relembrar o título do primeiro livro considerado da autora, “Animais da Terra”, que aliás surge agora como título de um poema. Se já nesse título poderíamos pressentir a leve ironia de nos admitir, a nós humanos, apenas como animais da terra, “O Gado do Senhor” vem colocar certezas nessa afirmação, exaltando a nossa relação com a natureza e, mais ainda, afirmar o poder da natureza sobre nós em vez do oposto, como vemos neste excerto de Água Mole em Pedra Dura

“Mastigamos o solo na erva que nos pasta”
(pag. 28)


ou no poema O Cão Que me Tinha de que transcrevo o início:

“Eu tive um cão ou era ele
que me tinha e me deixava à solta
guiada sem saber onde ia.”
(pag.15)


Em relação ao amor como salvação, Rosa Alice Branco opta por uma solução bastante interessante: transfere a adoração de um Deus para um ser humano, e para isso faz uso das expressões que usualmente manifestam a adoração pelo Deus. Serve de exemplo este excerto de A Alma na Boca dos Animais:

“(…)Vem depressa
beber o cálice sagrado. Escolhi um vinho e tanto
para a noite. Depois dispo-te a pele enquanto dizes:
toma-me, este é o meu corpo: eu sou
o meu corpo a caminho do teu. (…)”
(pag.41)


Por assim dizer, a tese que Rosa Alice Branco parece defender (Vigorosamente.) neste livro é que a ideia de Deus é fictícia, sendo que a única hipótese de sobrevivência para o animal da terra que é o Homem é aceitar a sua ligação intrínseca com a natureza, e procurar a plenitude através do amor e do desejo, que devem ser vividos através da natureza ( A “erva que nos pasta”.), funcionando isto numa espécie de círculo fechado Natureza-Homem-Amor-Natureza, um círculo fechado mas livre, porque um dos seus elos, o amor, para o ser, é necessariamente livre; o que funciona como contraponto à opressão religiosa, à falta de liberdade do catolicismo, que nos obriga à mea culpa, como lemos em Arca de Noé: “Tens que sentir a mea culpa que nos ensinaram.” (pag.42).
Como acima referi, “O Gado do Senhor”, mesmo centrando-se no assunto da religião, derrama-se também sobre outras problemáticas sociais e políticas, pois que tudo é político. Uma das que me parece abordada de forma mais pungente é a da morte. Aqui, não no sentido do luto e da ausência que encontrávamos no livro anterior, mas também ela ironizada, vista quer do seu lado burocrático, quer da visão que a religião apresenta sobre ela. Em Sem Livro de Reclamações, um dos melhores poemas desta recolha, lemos o seguinte:

“O marido, a amante, a família e os amigos,
todos alinhados sobre as campas.
Começam pela oração ou correspondente laico
e logo passam às súplicas e aos subornos.
Os cemitérios são repartições públicas.
Por isso não há respostas.
(…)
A família e os demais continuam a correr aos balcões
sem os formulários preenchidos.
Os mortos já não pertencem às respostas.”
(pag.48)


Por outro lado, como disse, também a visão da religião católica sobre a morte é posta em causa neste livro. Em Receituário para as Almas lemos

“(…) Se a morte é falsa
deixa-te estar deitado. Tens um lençol de terra
e não precisas de acreditar em nada. Não é com desespero
que to peço. É mesmo por não valer a pena.”
(pag.23)


Aquilo que Rosa Alice Branco explora neste livro é um assunto explorado por já vários autores, mas creio que o faz com grande originalidade. Além das áreas acima referidas, a poeta questiona ainda a questão do sacrifício, do comportamento de fachada e do discurso ilógico que caracteriza o catolicismo. Sobre este, deixa ainda a sua máxima quanto à religião ser “o ópio do povo”:

“Como vês, a crença Nele é fervorosa e grande:
a medida exacta da nossa miséria.”
(pag.47)


“O Gado do Senhor” representa, penso, um enorme passo em frente em relação a “Soletrar o Dia”, não desprezando este, claro. E se um projecto desta natureza coloca sempre as suas dificuldades em termos de pensamento e de resolução poética, mais do que nunca, Rosa Alice Branco mostra-se muito competente no que toca a resolvê-las.

[terceiro momento musical: primeiro concerto para violoncelo de shostakovich]



de coração abismado para mim
como um dentro onde ilumine o lixo
e a sucessiva merda que há-de vir
penso na subversiva recursiva morte
e escrevo

venham de longe meus suaves assassinos
violoncelos tocados por um poema
que um pirómano de longes dedilhou

anda gustav mahler meio jesus cristo
trespassador de paisagens proibidas
aguardo os teus passos de alvorada
e a dissolvência irónica de mim

não sirvo para mim próprio
engenho fácil a fornicações
a promessas de braços esculpidos
que não sabem nunca quem eu sou

cheguem das artérias gastas
britten shostakovich e rachmaninov
bach tocado pelos mortos quando nascem
e a luz de luz onde é prisão

esvaziem-me intensa e rapidamente
minha realidade corrente e destrutiva
doença de verdade aonde moro
a espessa casa que me tem os ossos tensos
quero depressa o esquecimento consciente
o meu fim primeiro

(não tenho carne tenho uma espécie de palavra
que não tem a pele como incêndio
ossos de reencarnação para o tempo nunca
e a fome dissolvente de outro)






Pedro Sena-Lino
Biofagia
ed. Quasi, Abril de 2003

imagem de Hans Bellmer

quinta-feira, 6 de maio de 2010

O Fim da Noite



A lava deixou sulcos no céu baixo
entre as nuvens do dia perseguido
como ramos da árvore
do céu batido
pelo vento visível

Os espelhos espalharam este brilho
de cinza
Sobre a zona do
ventre alastra ainda
o labirinto líquido
numa
mancha de ramos e raízes
E as lanças da luz como serpentes
erectas passam entre
as ramificações e as radículas
imprecisas
e fias do dia cor da
noite perseguidora
perseguida

Uma rede de vermes vai roendo
a barriga ferida A noite morre
com um espasmo de esperma e abre a extinta
boca de espuma e esperma e dela solta
retido e consumido um pénis hirto


Gastão Cruz
Órgão de Luzes
ed. &etc, 1981
imagem de Henri Toulouse Lautrec

um poema



As sereias transformaram-se em gaivotas.
Repousavam
sob essa forma aérea entre a duna
e a onde, banhando-se no sol. Duas ternuras
moviam-se em charneira, faces
de concha bivave que formavam- era
ainda uma composição marítima onde
os próprios anjos
se inscreviam (é certo
serem anjos primários, sem metafísica,
um deles mesmo repetente.) Cito
esse conjunto
porque me pareceu paradigmático: chave
em plena tarde
rodando a lingueta de um nirvana;
a minha boca dizia no siêncio
as orações correspondentes. A vida
estava imóvel
como um tecido celular e dediquei
ao oceano
o último acto: voz de água
na linha exacta da praia, calma vital,
língua na bainha, olhos
postos no carregar de imagens ao relógio.
Ali o ser
e o tempo atravessavam o anel
onde se prende
a erva renascente. Escrevo
a partir daí este poema, a fidelidade
a um céu sem nuvens; também
no mesmo anel me enrolo
e o tema
é que o momento se eternize. O tema
e o seu código: as zonas
quentes do inverno.






Egito Gonçalves
As Zonas Quentes do Inverno
1977, ed. Inova
imagem de Edward Hooper

um poema



ah como se desatavia
o destino e suas anedoctas

fiandeiros do nada
os velhos deuses
já trocaram
seus corpos de oiro
por túnicas de fumo

ah como não desferem já
…..como indeferem
os inauditos excessos da plena luz







Ana Hatherly
O Cisne Intacto
ed. Limiar, fevereiro de 1983


desenho de Ana Hatherly

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Sexta Canção de Amor



A minha amiga ofertou-me
uma faca de dois gumes
um para lhe abrir os olhos
outro para talhar flechas
a que ela chama ciúmes.

A minha amiga ofertou-me
um belo pau de dois bicos
e de mansinho eu lhe bato
com palavras sem recato
e silêncio a corta-mato.

A minha amiga ofertou-me
um livro onde me deitasse
e com ela amarrotasse
a brancura do papel
e o negrume da noite
pois em palavras e actos
me fez à fala fiel
onde a fala lhe faltasse.





Regina Guimarães
Cantigas de Amigo
ed. Hélastre, 2009

fotografia de Sophie Calle

Ilse Losa: Sob Céus Estranhos

O CAMINHO DE CASA

A obra de Ilse Losa, desde o inicial “O Mundo em que Vivi”, construiu-se tentando ensaiar uma noção de pátria, não no sentido de um qualquer nacionalismo, mas no sentido de uma localização íntima do indivíduo. É pois uma obra que não vale apenas o seu valor literário, mas que deve ser considerada também ao seu nível político, antropológico e sociológico.
As suas temáticas variam, mas sempre se movimentam em torno deste conceito. É um imaginário muito pessoal, e, de certa forma, único entre nós, já que, até hoje, não nos surgiu ainda um autor que possa ter reflectido tão profundamente sobre as questões de um mundo em transformação pela força de uma guerra, e, acima de tudo, no seu impacto humano. Os livros de Ilse Losa são, ainda hoje, testemunhos de uma época que em muito terá sido decisiva para uma formação do tempo que é este, o nosso. Exemplos disso são livros como “Aqui Havia Uma Casa” ou os poemas em prosa de “As Grades Brancas”.
“Sob Céus Estranhos”, no entanto, condensa todas as questões intrínsecas à temática da autora, mas destaca-se por ser uma obra de particular maturidade, como se retomasse os textos prévios de Ilse Losa, mas o recontasse de forma tão mais desenvolta e polida que se nos assomam completamente novos. É, ainda hoje, um romance de excepção, quer no contexto da vasta bibliografia de Ilse Losa, quer no contexto de uma literatura portuguesa.




O protagonista da trama, Joseph “José” Berger é um alemão refugiado no Porto. Encontramo-lo no primeiro capítulo vagueando pela cidade enquanto a mulher, Teresa, se encontra na maternidade, pronta a dar à luz. Ao longo dos capítulos seguintes, a história de José é contada, respeitando mais um tempo emocional do que um tempo cronológico. É num dos capítulos finais que encontramos uma passagem que, a meu ver, define bem o espírito deste romance, a ideia sobre que ele se questiona e reflecte: Joseph está pronto a casar com Teresa mas, no Registo Civil exigem-lhe a certidão de nascimento que não tem. Quando contacta os Serviços Administrativos da sua cidade natal, é-lhe dito que o edifício onde estes originalmente funcionavam fora incendiado e os documentos, perdidos. José é então forçado a forjar, junto do notário português, uma certidão de nascimento com base em testemunhas. De testemunhas servem-lhe dois amigos portugueses que afirmam ter sido convidados para as várias festas de aniversário de José na Alemanha, desde a infância. Esta história, que todos, incluindo o notário, sabem ser falsa serve, no entanto, para conceder a José a sua certidão de nascimento. Uma segunda certidão de nascimento, dada num país estranho com base em factos faseados. É esta a eterna questão de “Sob Céus Estranhos”: se é possível para aquele que fugiu do seu país de origem encontrar uma outra pátria num outro país. A verdade é que esta é uma pergunta que só pode ficar sem resposta, pois, mesmo casado e à espera de um filho, José continua a ser um estrangeiro, que não só é posto, de certa forma, à margem da sociedade portuguesa, como também não raras vezes ele mesmo se coloca fora dela. Acerca disto, cito uma passagem do vigésimo oitavo capítulo:

“Acontece quando a vida em público que decorre sem a presença de mulheres me simboliza atraso, enfado, falta de espírito e de graça, e apetece então romper as grades, respirar mais fundo, em qualquer parte onde haja resistência e luta, renovação e aventura ou, pelo menos, um pouco mais de exuberância”

(1ª edição, pag.187)

Também no final da história, outra problemática é colocada: José, já casado com Teresa, vai visitar a sua cidade natal à Alemanha. Ao contrário daquilo que esperava, o que encontra não é um “deserto”, mas também não é o lugar de onde saiu, aquando da guerra. É verdade que grande parte da cidade está destruida, mas ainda encontra pessoas que conhecia, que se recordam dele e o reencontram já numa nova vida, uma vida que acontece num outro país. São pungentes as ideias que passam pela cabeça do personagem:

“Onde estavam aqueles que me tinham derrubado na estrada e que se “estavam nas tintas” para comigo? Onde estavam os que escorraçaram o good old man? Os que encerraram toda essa gente num comboio selado que entrou, certa noite, na estação do Rossio? Ninguém parecia ter expulsado ninguém. (…) Ninguém parecia ter assassinado ninguém. E nenhuma dessas pessoas solícitas tinha cara de ser assassino de crianças. Lamentavam, sentiam muito, por vezes até choravam. Mas não se apresentou um único que tivesse estado presente nos dias da carnificina. Estiveram todos ausentes, todos.”

(1ª edição pág. 196-197)

Ou seja, mais do que a questão de muito provavelmente não ser possível para quem foge de um país conseguir “habitar” outro, mostra-se também impossível reencontrar o país de origem. Ele encontra-se geograficamente, mas não se encontra emocionalmente. Aqui, a cisão que a Guerra, nos seus impactos social e político, cria num indivíduo, bem como num povo inteiro.
É este, acima de tudo, o drama que “Sob Céus Estranhos” relata, na primeira pessoa: a perda de identidade. O indivíduo que foge é obrigado a ter uma espécie de “segundo nascimento” que nunca é encarado como nascimento, pelo menos de forma plena, porque não se consegue eliminar o registo do primeiro. O refugiado é arrancado à força de tudo o que conhece, e entregue à sua sorte para reconstruir algo semelhante a uma vida num outro lugar. Mas verdadeiramente nunca o consegue, por mais que a sua vida siga aquilo que é o esquema mais normal: o casamento, uma casa, filhos…
A sensação que “Sob Céus Estranhos” mais parece deixar é a de que se perdeu alguma coisa que nunca verdadeiramente se vai recuperar. Alguma coisa que é impossível nomear precisamente, tanto quanto é impossível obter respostas concretas para as muitas perguntas que essa perda levanta.
Além da questão individual, que Ilse Losa conheceu na primeira pessoa (E só isso permitiria um romance tão profundo.), há também a questão vista de um prisma de colectivo: as movimentações de imigrantes que passam pela cidade do Porto, o café Superba onde se reuniam para contar as suas histórias que, sendo todas diferentes, eram todas, na realidade, muito iguais, porque todos haviam perdido essa identidade, e todos se encontravam, para todos os efeitos, perdidos num mundo em que não podiam encaixar.
O choque cultural é também uma componente muito marcada neste romance. José depara-se, no Porto, como uma sociedade ainda atrasada, descriminatória, misógina e que se recusa terminantemente à cultura, é um “mundo fechado” como Agustina disse no seu primeiro romance. Há, neste aspecto, algo de queirosiano em “Sob Céus Estranhos”, no sentido em que a figura de José, mesmo vindo de um país destruído pela guerra, tem da vida uma noção mais evoluída do que a maioria em que se vê inserido, tal como acontece muitas vezes nas prosas de Eça, ainda que essas se centrem mais num antagonismo romantismo/realismo-naturalismo, sendo, portanto, mais direccionadas do que o que encontramos em Ilse Losa que ultrapassa em muito a literatura e se refere à política e à sociedade.
O estilo de escrita vem na linhagem seca e fluida que encontramos, por exemplo, em Irene Lisboa: Ilse Losa não perde tempo em detalhes, não se desvia da história que está a contar, é acutilante e extremamente observadora: não só em relação às pessoas que descreve, mas à visão de uma cidade, o Porto, uma visão que só é possível a quem vem de fora e se confronta com uma cidade nova.
Romance de primeira água, “Sob Céus Estranhos” é um livro que, em muitos aspectos, não perdeu a sua modernidade e que coloca questões sobre o nosso país que, ainda hoje, não têm uma resposta concreta.