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sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

[podes levar os dias que trouxeste]


podes levar os dias que trouxeste

os pássaros soterraram agosto
e sem lugar um homem cega pela janela
o mar que jura ter tocado com o sangue

podia ter sido o amor se não tivesse vindo
tão directamente da sede
um duplo rosto de enganos e os braços
que saíram desertos
o eco da morte reverbera na pele
com que vejo a tua ausência encher as ruas
um choro de papel cai pela terra
e nunca foi tão tarde ser depois

daqui onde o grito surdo incendeia
a refutação da madrugada
donde o crânio esmaga o coração
um homem corta pela janela
a própria certeza de ter sido

não    é tarde demais para uma manhã
que foi a enterrar em tantas noites

as escadas morreram de sede
a terra caiu em nunca

podes levar os dias que trouxeste

Pedro Sena-Lino
Zona de Perda/ Livro de Albas
2006, ed. Objecto Cardíaco
imagem de David Penprase

sábado, 12 de março de 2011

Um poema


hoje ouvi morrer uma noite

tu chegavas de tão longe que eu não te podia tocar
como se viesses de um sonho ou de uma mentira
o teu corpo era cruel como o nevoeiro
e onde ardia o amor eu era apenas um corpo

algum dia ouviste morrer uma noite
uma água de mágoa tritura os pulsos
um ruído trespassado desabita o coração

esfinges ocupam o quarto
a lua permanece raios decepados
abraço o teu corpo onde me sobrevivo
e adormeço futuro contra a luz

do amor de tão antes onde te espero
vejo um fantasma abrir um corpo de voz
e sangrar sobre a noite esvaziado

ninguém se levanta dentro do seu próprio coração

Pedro Sena-Lino
Zona de Perda: Livro de Albas
2006, ed. Objecto Cardíaco
fotografia de José Francisco Azevedo

sexta-feira, 28 de maio de 2010

[o jardim cortado]



quando eu tinha muitos sonhos vivos que me faziam ter uma idade superior à que a palavra idade me daria, fugia muitas vezes para o quintal de minha casa, doente de toda a gente, e abraçava as árvores mortas. elas encostavam a seiva ao meu coração, e eu aspirava uma vida omnipotente de ventre e de força. ouvia-as naufragar dentro do meu coração com a sua voz de rio morto. aí nasciam as metáforas, os longos jardins cortados, a minha forma afásica de dizer ao mundo que me desejava apenas a mim o próprio fim, cortado por todas as espécies de perversão amorosa; aí eu aprendia que tinha que correr uma distância por dentro até chegar aos vários degraus que implicavam a minha morte.
a árvore que dava nêsperas na minha infância morreu quando eu tinha doze anos. havia uma cobra encostada á raíz. disse-me que era em tudo igual ao instrumento mais potente do meu corpo, o mais elástico de vontade, o mais atento ao cérebro, à memória, ao inesperado. deu-me depois um livro. eu comi o livro, como o apocalipse mandava.
perguntei-lhe o nome. disse-me apenas que se chamava crevel. eu disse-lhe que já tinha lido um livro de apelido parecido, mas ela fugiu para dentro do livro e nunca mais a vi a ela, nem à árvore. mas um destes dias, fazendo amor violentamente, uma cabeça da cobra deitou dentro de ti uma seiva de livro, e os meus galhos de asas cortadas abriram os teus ombros.


Pedro Sena-Lino
As Flores do Sono: Prelúdios e Fugas
2002, ed. Litera Pura

imagem de Magritte

sexta-feira, 7 de maio de 2010

[terceiro momento musical: primeiro concerto para violoncelo de shostakovich]



de coração abismado para mim
como um dentro onde ilumine o lixo
e a sucessiva merda que há-de vir
penso na subversiva recursiva morte
e escrevo

venham de longe meus suaves assassinos
violoncelos tocados por um poema
que um pirómano de longes dedilhou

anda gustav mahler meio jesus cristo
trespassador de paisagens proibidas
aguardo os teus passos de alvorada
e a dissolvência irónica de mim

não sirvo para mim próprio
engenho fácil a fornicações
a promessas de braços esculpidos
que não sabem nunca quem eu sou

cheguem das artérias gastas
britten shostakovich e rachmaninov
bach tocado pelos mortos quando nascem
e a luz de luz onde é prisão

esvaziem-me intensa e rapidamente
minha realidade corrente e destrutiva
doença de verdade aonde moro
a espessa casa que me tem os ossos tensos
quero depressa o esquecimento consciente
o meu fim primeiro

(não tenho carne tenho uma espécie de palavra
que não tem a pele como incêndio
ossos de reencarnação para o tempo nunca
e a fome dissolvente de outro)






Pedro Sena-Lino
Biofagia
ed. Quasi, Abril de 2003

imagem de Hans Bellmer

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

dez de janeiro. só o silêncio responde



não sei se alguma vez viste
crescer a morte sobre um corpo

é como uma infância
de que se desconhecem os modos
ou o lento estalar de um vidro

são como imagens as imagens
partidas esse abandono de partir
o que em água viram os olhos

por esse lençol subido de silêncio
sobe nu de tempo um homem
com mãos devagar de luz
a morte cresce com ele
é o seu corpo que poderá ser
a palavra

Pedro Sena-Lino
Deste Lado da Morte Ninguém Responde
2005, quasi edições
imagem: Paulo Nozolino