sábado, 27 de fevereiro de 2010

um poema de Regina Guimarães que aqui deixo para o Diogo



Fui expulsa da casa do mundo
por um irmão desconhecido.
Vendou-me os olhos e levou-me
à saída de todas as saídas.
Nunca mais achei o caminho
do meu claro quarto crescente
onde se nascia todo o dia.
Só me lembro de nascer, nascer, nascer
como uma labareda a pão e água.




Regina Guimarães
Tutta
1994, ed. Felício e Cabral

imagem: Inês d´Orey

domingo, 21 de fevereiro de 2010

O Sótão do Nómada (um fragmento)

Uns quantos caixotes. De cartão. Alguns cobertos por lençóis. Alguns lençóis já afastados dos caixotes que tapavam. Já estive aqui. Já, antes, abri algum deles, procurei alguma coisa. Das casas.
As coisas das casas têm vindo parar ao sótão desta casa que já não habito. E enquanto for assim quase nómada, terão que aqui ficar. Dentro dos caixotes. Sob os lençóis mais puídos que fui encontrando.
Não podia ter escolhido melhor altura para rever as coisas das casas. Sorriso irónico. Não podia ter escolhido melhor altura para rever as coisas das casas do que esta, em que as coisas que das casas não podem ser empacotadas começam a partir, a partir-se. As que estão empacotadas desenterram ao serem desenterradas muitas das outras coisas e tenho saudades de cada uma das casas.

um poema



Nos apegamos demasiado a los hombres
esas criaturas bidimensionales e inocentes
a su piel
adherente como una tela de araña.

Me quedaria allí hasta que no dejase nada de mí
Nada.

hasta que empezamos a pesarles
como si de pronto engordásemos.
Entonces nos preguntamos
qué pasó y
cuándo.
Inevitablemente nos ponemos
éticas patétias pelenpéticas
pesadas peludas pelenpudas
nos salen canas arrugas
caries estrias verrugas
la sangre no circula.
Nos explotan por dentro.
Se llevan nuestra piel pegada a tiras
y en sus manos algún órgano fácil de vender.

En realidad no saben lo que hacen
solo quieren liberarse de la carga.







Miriam Reyes
Espejo Negro
2001- dvd ediciones
imagem de Francis Bacon

Questões de Idade

à Xana


Para quem acha que chegar aos cinquenta é estar velho, a música parece ser contraditória. Segue-se uma selecção de algumas das "tias" que já dobraram os cinquenta e ainda aí estão bem vivas. Para constituir uma família feliz, pelo menos em termos musicais.

Tia Madonna

Aos cinquenta ainda canta, ainda dança e ainda é assim. Para quê pedir mais?

Tia Glória

Depois das primeiras latinadas muito desagradáveis, a tia Gloria Estefan fez este disco chamado "Unwrapped" que tem este "Wrapped", onde vai mais a fundo nas suas raízes para uma sonoridade mais madura. Melhor aos cinquentas do que aos trintas.

Tia Joni

Desde os tempos em que recusava ir ao Woodstock para ir à televisão, até ao mais recente "Shine", a tia Joni Mitchell não parou de fazer músicas como este "If I Had a Heart".

Tia Stevie

Dos Fleetwood Mac até às Divas Las Vegas, com as sobrinhas, Dixie Chics, que não seriam a minha primeira escolha... a tia Stevie canta ainda, e as pessoas ainda aplaudem de pé quando ela entra.

Tia Marianne

Já depois de Mick Jagger e dos problemas com as drogas, a tia Marianne junta-se à prima PJ Harvey, e faz o seu melhor álbum, "Before The Poison", de onde vem este "The Mystery of Love".

Tia Annie

De cantar e compor músicas excelentes como este "Sing" até à ajuda humanitária, desde os idos tempos dos Eurythmics até uma sólida carreira a solo, a tia Annie Lennox cá está para mostrar que a sua voz é ainda ouvida.

Tia Ute

Alemã de nascença, a tia Ute é uma veterana do cabaret. Desde os clássicos de Kurt Weill e Bertolt Brecht, que nunca abandona, até ao mais recente "Punishing Kiss" onde canta originais compostos para ela por Nick Cave, Phillip Glass, Tom Waits e os Divine Comedy, esta tia é a prova de que chegar aos cinquenta não é parar de se divertir. Acima, "The Case Continues".

uma canção para quem como eu

Annie Lennox, A Thousand Beautiful Things

searching for water in this desert

último poema de Egito Gonçalves, incompleto e sem título




Entre mim e a minha morte
há ainda um copo de crepúsculo.
Talvez pequenas coisas
ainda respirem, não as distingo,
há uma névoa que me mantém na sombra.
Sei que lá fora as árvores
dançam ao vento, o que perdem
no outono ganham na primavera.
Nós vamos deixando pelo caminho
os farrapos da pele


Egito Gonçalves
Entre Mim e a Minha Morte Há Ainda Um Copo de Crepúsculo
2006, edição Campo das Letras
aguarela de António Cruz

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Agustina tem destas coisas 10

O princípio do prazer buscava ancorar em novos símbolos o que era, por si só, um caminho de histeria.







de A Alma dos Ricos

Agustina tem destas coisas 9

Os bons rapazes são muito difíceis de corrigir, senão impossíveis. Quando fazem uma asneira não escondem como os outros e tiram qualquer proveito, nem que seja só a protecção de uma tia.





de A Alma dos Ricos

Agustina tem destas coisas 8

Se a lei fosse testemunho da verdade, Cristo não teria que fazer na Terra.





de O Mistério da Légua da Póvoa

Agustina tem destas coisas 7

Porque é que as mulheres gostam dos criados? Naturalmente, porque os homens não preferem as loiras, exactamente, mas as criadas. Perceptores, professores de música, cavalariços, caíram nas boas graças de aristocratas com quem partilhavam não só os prazeres mas essa felicidade de palheiro que só é dada por um completo desprendimento, essa formosura da paz que está na reciprocidade de vontades. Enquanto o homem emprenhava a criada e fazia uma espécie de contrato matrimonial com a secretária, sempre sem perder de vista a sociedade e as suas barreiras, com a mulher é diferente. Ela ama o criado, como Rebeca amou Jacob, pelo que vale como estrangeiro, alguém de fora que jamais será um vínculo de família, que combaterá o incesto que o sangue reclama.




de O Mistério da Légua da Póvoa

Agustina tem destas coisas 6

_Escuta, minha filha: está na moda andar despenteada mas não carregar com a culpa.




de A Jóia de Família

Agustina tem destas coisas 5

_Pode perguntar- disse Vanessa, servindo-se simbolicamente de um pouco de doce.- Mas previno-a que eu minto a respeito da idade. Não sou tão emancipada que diga toda a verdade.
António riu-se totalmente. Ria-se sempre totalmente quando Vanessa falava com aquela segurança. Rutinha pensou que, provavelmente, António tinha medo dela. O que mais a assustou foi que Vanessa lhe chamasse Tony. Afinal, não tinha modos, nem cultura, só tinha expedientes. Mas isso estava a alastrar pela vinha do Senhor, que era a sociedade inteira.



de A Jóia de Família

mudanças imprevisíveis 4: Avril Lavigne

como é que se vai do pseudo-rock pseudo-deprimido muito adolescente que soa mais ou menos sempre assim



para esta piroseira adolescente cheia de ancas a abanar, assim



em termos sonoros foi sempre mau, mas a atitude muda muito estranhamente. não consegui, até à data decidir qual das duas poses é mais irritante.

mudanças imprevisíveis 3: Delta Goodrem

como se passa de coisas até bonitas destas



a vómitos destes



outra mudança para pior. para bastante pior

mudanças imprevisíveis 2: Christina Aguilera

como é que se passa de coisas pirosas destas



a coisas mais interessantes como estas



claramente, o crescimento é positivo

mudanças imprevisíveis 1: Nelly Furtado

como é que se chega de coisas boas assim



a coisas absolutamente estúpidas assim



a mudança aqui é para pior. definitivamente

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Sansão e Dalila

(17) Sansão acabou por lhe descobrir o seu segredo: "Sobre a minha cabeça, disse ele, nunca passou a navalha, porque sou nazarita de Deus desde o ventre de minha mãe. Se me fôr rapada a cabeça, perderei a minha força e então serei como qualquer outro homem."
(19) Dalila, fazendo-o adormecer sobre os seus joelhos, chamou um homem, que cortou a Sansão as sete tranças do seu cabelo. Ela começou a dominá-lo, pois a sua força deixou-o.
(21) Os filisteus, domando-o, tiraram-lhe os olhos (...)
(22) Entretanto, os seus cabelos recomeçaram a crescer.
(25) E estando eles de coração alegre, exclamaram: "Mandai vir Sansão para nos divertir!" Tiraram-no da prisão, e Sansão foi para eles objecto de divertimento. E obrigaram-no a ficar de pé entre as colunas.
(28) Sansão porém invocando o Senhor disse: "Senhor Deus! Lembra-te de mim e restitui-me agora, ó meu Deus, a minha antiga força para vingar-me (...)"
(29) E agarrando então as duas colunas centrais sobre as quais repousava todo o edifício, pegou numa com a mão direita e noutra com a mão esquerda e gritou:
(30) "Morra eu com todos os filisteus"! Dizendo isto, sacudiu fortemente o edifício, que ruíu sobre os prínicipes e sobre todo o povo reunido. Desse modo, Sansão matou na sua morte muitos mais homens do que antes matara em toda a sua vida.
Livro dos Juízes, cap. 16

Sansão e Dalila

gravura do século XV


por Lucas Cranach, o Velho


por Rembrandt




por Peter Paul Rubens

um fragmento sobre a imortalidade



Era preciso prevenir as pessoas destas coisas. Ensinar-lhes que a imortalidade é mortal, que ela pode morrer, que já aconteceu, que ainda acontece. Que não se anuncia como tal, nunca, que é a duplicidade absoluta. Que existe no pormenor, mas apenas no princípio.
(...)
Que a imortalidade não é uma questão de mais ou menos tempo, que não é uma questão de imortalidade, que é questão de outra coisa que permanece ignorada.


Marguerite Duras
"O Amante"
imagem: Carla Gonçalves

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

There Is a Ghost

a beleza destas palavras da "tia" Marianne impressiona-me. A música, composta com Hall Willner também.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Perante os Tribunais



somos novatos
como os faunos de granito na pia baptismal
parto ilumindo em que as trincheiras da neblina apertam a fivela prateada
in memoriam.
a disparar tiros do continente esperamos desespero detonações,
galgos negros hirtos
delineandio a serena silhueta orelhas vrdes foliformes e verbosas.
à-beira mar imperturbáveis báculos abandonados na areia
paisagem, pai singular.
o zoom da cinza é uma nódoa de gordura sob um pálio de cetim rosa saloio.
no painel a aromática careta do bagaço
no painel de seda pôr a mão à transparência
pôr a mão na boca de todas as feras.

gótica braguilha da noite
as mulas ácidas no sorriso da lua.
vírus que eu acalento transportada.

como pelo esquecimento.

Regina Guimarães
(Corbe)
Abaixo da Banalidade, Abastança
1980, ed. Helastre
imagem: Paula Rego

Um poema



La vue est le sens de l´illusion
on ne voit jamais si bien que paupières baissées
en rêve
Les yeux sont les organes du chagrin
un oeil ouvert ne sert qu´à pleurer
Vivre les yeux bandés





Saguenail
Le Peu de Chose
ed. Helastre, 2009
imagem: Edvard Munch

domingo, 7 de fevereiro de 2010

12 de Fevereiro, às 22 horas

na Cooperativa Gesto, Porto, será lançado um novo livro de Saguenail, "Déchanter/Abyme", com a chancela da Hélastre, que, este ano já nos presenteou com várias obras do mesmo autor, e ainda três novos livros de Regina Guimarães.
Além do lançamento do livro, será exibido o filme de ambos, "Nus Dans La Cage d´Escaliers", de onde foi retirada a seguinte imagem:

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

morreu ontem

Rosa Lobato de Faria


actriz que se dividiu entre o teatro, a televisão e o cinema, escreveu ainda um punhado de romances que merecem definitivamente uma leitura, em particular "O Pranto de Lúcifer", editado pela Asa em 1995.
Na escrita de canções, foi inúmeras vezes autora de canções do Festival da Canção, bem como de muitas das melhores letras já cantadas por Mísia.
A sua poesia, compendiada no volume "Poemas Escolhidos e Dispersos" recentemente reeditado pela Roma Editores, conta pelo menos dois livros de grande interesse- "Os Deuses de Pedra" (1983) e "As Pequenas Palavras" (1987), ambos editados originalmente na colecção Poesia e Verdade da Guimarães editores- ainda que outros, como "Memória do Corpo" (1991) se revelem mais mediocres.
De "As Pequenas Palavras" relembro este poema:




Vimos chegar as andorinhas
conjugarem-se as estrelas
impacientarem-se os ventos
Agora
esperemos o verão
do teu nascimento tranquilos, preguiçosos
Tão inseparáveis as nossas fomes
Tão emaranhadas as nossas veias
Tão indestrutíveis os nossos sonhos
Espera-te um nome
breve como um beijo
e o reino ilimitado
dos meus braços
Virás
como a luz maior
no solstício de junho.