quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Chama de Amor Viva





Oh chama de amor viva,
que ternamente feres
da minha alma o mais profundo ponto!,
já que não és esquiva,
acaba já, se queres;
rasga o tecido deste suave encontro.
Oh cautério suave!
Oh deleitosa chaga!
Oh toque delicioso! Oh mão querida,
que à vida eterna sabe,
toda a dívida paga!,
matando, a morte transformaste em vida.
Oh lâmpadas de fogo,
em cujos resplendores
as profundas cavernas do sentido,
escuro e cego, logo
com estranhos primores
calor e luz dão junto ao seu querido!
Quão manso e amoroso
acordas em meu seio,
onde em segredo, solitário, moras;
e em teu aspirar gostoso,
de bem e glória cheio,
quão delicadamente me enamoras!

S. João da Cruz
trad. José Bento
Poesias Completas de S. João da Cruz
2008, ed. Assírio e Alvim, B.E.I.
pintura de Salvador Dalí

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Acerca de uma Aranha




O que se pode dizer? Falemos da sua leveza, dessa espécie de gesto
que a sustenta no ar. Permanece sozinha, para que se encontre
a si mesma. À sua frente estão múltiplos caminhos, mas escolhe
apenas um. Ela procura o centro de qualquer coisa. Aí fica
à espera, atenta como nós quando lemos um livro. Talvez esteja [perto
daquilo que há muito se ignorava, de um segredo que a teia
lhe pode revelar quando estremece. Solta-se dela um fio
maior para que a luz venha ao seu encontro. Oscila um pouco
e afasta-se lentamente. É outra a página que se lê agora.


Fernando Guimarães
As Raízes Diferentes
2011, ed. Relógio d'Água
escultura de Louise  Bourgeois

domingo, 25 de setembro de 2011

Canção para o dia de hoje...

Massive Attack feat. Horace Andy: Girl I Love You (Do álbum 'Heligoland', 2010)

sábado, 24 de setembro de 2011

Cesária Évora anunciou hoje a sua retirada... é pena


Sodade

A Jornada dos Cabisbaixos


Eu não acredito em eternidades. Acredito no entanto que há tempos que tanto duram, que nos parece realmente que se prolongam para sempre, ainda que essa percepção possa ser errónea. 
A imagem de um bebé numa piscina, com os braços abertos para uma nota, como se lhe fosse dar um afectuoso abraço é uma imagem que tem tudo para nos dar essa impressão de durar para sempre. A 24 de Setembro de 1991, exactamente há vinte anos atrás, era lançado um álbum com essa imagem na capa. 'Nervermind' era o segundo LP dos Nirvana, que vinte anos depois continua a ocupar um estatuto mais que especial, verdadeiramente único na história do rock. Talvez ainda hoje não consigamos entender porquê. 
'Nevermind' está longe de ser o melhor álbum dos Nirvana, no entanto, ele é o mais emblemático. Smells Like Teen Spirit é a canção que abre o álbum, foi o single e é justo dizer que, ao lado de Zombie dos The Cranberries, é um dos hinos de toda uma geração. Não será de todo inadequado dizer que a geração que por estas duas canções fica marcada é a minha, pois, apesar de eu ser pouco mais que uma criancinha quando esta canção aparece, a verdade é que elas vão, ao longo da década de noventa conquistar o seu estatuto, precisamente junto daqueles que têm hoje a minha idade ou próxima.
O que diz então 'Nevermind' que outros álbuns não disseram? Olhar o rosto de Kurt Cobain, ler-lhe as entrevistas ou ler as letras que escrevia pode muito bem responder a esta pergunta. Kurt Cobain era o homem de rosto belo, mas cujos olhos denunciavam o cumprir de uma penitência que era imposta de dentro, e não pelo exterior. Na capa do álbum, o bebé alegremente aceita a nota que lhe deitam como um isco, e que representa todo um sistema -capitalista e outro- que a sociedade espera que todos aceitemos assim, de braços abertos, e sorrindo inscientes. E esta é a história de 'Nevermind': a história de uma geração que está presa no momento da fotografia: o momento antes de aceitar o isco, o momento em que nos perguntamos se realmente devemos aceitá-lo, ou se devemos agarrá-lo para o destruir, ou se devemos terminantemente recusá-lo. O resultado, cantado e tocado, teria que ser desconcertante, e assim é. Onde Smells Like Teen Spirit é um relato de uma certa leviandade, de um não querer saber, as outras canções são construídas com base na banalidade do quotidiano, de onde o autor, Cobain, sabe extrair a violência de um pensamento invasor, de uma imagem perturbante, de um sentimento de repulsa e de nojo que causa a vontade da auto-destruição. Como na melhor poesia, aqui encontramos o avesso do visível: é um mundo interior que se volve nocivo quando confrontado com um mundo exterior em que não temos lugar. In Bloom, Come as You Are, Lithium ou Territorial Pissings são exemplos dessa dualidade, entre a vontade de aproximação e a mágoa de se ser consciente da impossibilidade.
Musicalmente, tudo em 'Nevermind' é sujo, explosivo e, de certo ponto de vista, quase excessivo. Onde as guitarras e a bateria parecem criar tensões doentias e violentas, a voz surge entre o berro e o sussurro, as palavras mal pronunciadas. Tudo nos dá a sensação de estarmos dentro da mente de alguém, onde o que interessa não é exactamente a realidade, mas o efeito que ela tem em nós, esse que, como já foi dito, é nocivo.

'Nevermind' não tem a qualidade que tem, por exemplo, 'In Utero' (1993), mas tem outras características, suficientes para fazer dele uma insígnia, de falar daquilo que passou ao lado da maioria dos músicos. E, acima de tudo, 'Nevermind' é um relato na primeira pessoa do plural, e não uma observação por terceiros. Isso o faz tão altissonante.
A fechar o álbum está uma das canções mais famosas dos Nirvana, Something In The Way, que é quase uma crónica de uma morte anunciada. Difícil será encontrar uma outra peça artística onde estejam tão nítidos os contornos da dor, da culpa, do luto e do arrependimento. Esta canção tão simples vem confirmar 'Nevermind' como o diário de uma jornada, a jornada dos cabisbaixos, que não assistiam a 'Beverley Hills', não sonhavam com Hollywood e, se calhar, não sonhavam com nada mesmo. E como existirão sempre os cabisbaixos, aqueles que tiveram o azar de nascer com os olhos abertos, eu creio que não é só a capa de 'Nevermind' que permanecerá nesse tempo longo que por ilusão de óptica parece eternidade: as canções do álbum também ficarão, como uma prova de que sempre haverá alguém que se recusa a morder o isco, mesmo que o preço seja o da própria vida, como aconteceu com Kurt Cobain que hoje saúdo, mais do que nos outros dias.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Novas épocas para as minhas séries

Fringe, season 4: 23 de Setembro
The Good Wife, season 3: 25 de Setembro
Desperate Housewives, season 8: 25 de Setembro

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Agustina tem destas coisas... (29)

Ela tinha oito filhos à volta, como um colar em que os desejos se esbarravam, ficando porém algo enredado nos pensamentos. Ora tristes, ora vingativos. Escreveu versos aos trinta anos. O Baena teve medo e comprou-lhe um carro para que ela passeasse e, com a excentricidade, escondesse as decepções.



de 'O Concerto dos Flamengos' (1994)

sábado, 17 de setembro de 2011

Canção Para o Dia de Hoje



Nine Inch Nails: All The Love in the World (Do álbum 'With Teeth (Halo Nineteen)', 2005.)

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Maria Ondina Braga: A Casa Suspensa

DENTRO

Em 1965, era editado o livro de crónicas 'Eu Vim Para Ver a Terra', de Maria Ondina Braga -que, na altura, assinava apenas Maria Ondina-, um livro que daria origem a um percurso literário fecundo, mas também muito discreto. No entanto, para falar de uma novela como 'A Casa Suspensa', talvez seja importante referir uma questão que escapa a muitos leitores: é que, aos 17 anos, por isso, em 1949, é que se deu a verdadeira estreia de Maria Ondina, com um livro de poemas chamado 'O Meu Sentir', a que se seguiria outro, em 1952, 'Almas e Rimas'. Estes dois livros apresentam poemas de uma certa ingenuidade, emotivos, sim, mas longe de poderem ter a relevância da obra em prosa que se iniciaria treze anos depois. Ficam, portanto, estes poemas como uma espécie de juvenília da autora.
Autora de uma escrita intimista, onde alteridade e auto-representação se fundem constantemente (Sendo disto exemplo maior o livro 'Estátua de Sal' de 1969.), não seria nunca de estranhar uma linguagem dita poética. No entanto, a presença da poesia sente-se em 'A Casa Suspensa' por razões outras que a linguagem. É o próprio conceito da história que nos remete para o universo poético, onde a metáfora, com toda a força, exerce um poder transfigurador sobre a história que está ser contada e sobre os meios usados para a contar.
Editado em 1982, 'A Casa Suspensa' é uma novela de certa forma epistolar. Digo de certa forma porque, apesar de todo o corpo do texto ser escrito como uma sucessão de cartas, essas cartas são escritas por Francisca Teresa a uma mulher inventada por ela. Isa, essa mulher, parece representar um conveniente oposto de Francisca Teresa, ou Chica, ideia subtilmente introduzida quando Chica justifica o nome escolhido para a sua 'personagem':

Perguntarás por que te nomeio Isa e não Isabel ou Isaura, como se pronunciasse só metade do teu nome. Escolhi Isa precisamente pela brevidade da palavra, um sopro, digamos, um suspiro.
(p.9)

ao passo que, do seu próprio nome, Chica dirá

chamo-me Francisca Teresa, da minha madrinha que tinha, aliás, muito desgosto do nome. Por sua vontade punha-me Noémia, punha-me Guiomar. Na nossa família, todavia, tradição vinha logo abaixo do temor de Deus (...) Nome antigo, fidalgo, Francisca Teresa, actualmente em voga entre os burgeses.
(p.11)

Quase instintivamente, poderíamos pensar que é escusada toda a história da invenção de uma destinatária para as cartas da personagem central. No entanto, vamos percebendo logo depois das páginas introdutórias que a escrita destas cartas é movida pela necessidade de Chica de revelar os seus segredos e as suas dúvidas ou, por outras palavras, a sua intimidade; mas que a sua própria personalidade, algo fechada e desconfiada, não lhe permitira fazê-lo a alguém real: a alguém que não ela mesma. E assim entendemos que Isa é uma segunda Chica, distante mas próxima, feita para ouvir quando a outra quer falar. A relação é portanto aquela que se opera num espelho, não porque Chica procure o seu reflexo, mas porque pretende dialogar com ele, servindo-se, para isso, dos aspectos em que o seu reflexo é oposto a si.
Ao longo das páginas da novela, vamos sentindo a hesitação e o reiterada incapacidade de Chica revelar o seu segredo, mesmo que a uma mulher inexistente. Assim sendo, para o revelar, Chica acaba por ir fazendo relatos de memória quer da casa onde vive, um chalé de campo, quer da história da sua família.
A casa, percebemos, ocupa um lugar central na narrativa, já que é ela que mais fielmente projecta a intimidade de Francisca Teresa

na casa que me deixou a avó e que se esfarela roída pela formiga branca.
(p.7)

O insecto que devora lentamente a casa, e que não pode ser eliminado, funciona aqui como o segredo de Francisca e, um pouco, como toda a sua história de vida: ele destrói lenta e cruelmente, mas certificando-se que deixa sempre alguma coisa, para a refeição não terminar.
Relativamente à história da família, encontramos uma muito contundente e expressiva explicação:

nas famílias, há geralmente anéis que passam de geração para geração, ou certas feições, ou, digamos, uma vocação artística. E doenças, esquisitices, tendências, por exemplo, para a  hipocondria, o suicídio. Na nossa é a falência do amor.
(p.24)

A história deixa de ser história individual e torna-se um padrão, padrão a que Francisca não consegue fugir. À viuvez prematura e não confirmada da avó, sucede-se a relação glacial entre a mãe a o pai, causa ou consequência das dúvidas quanto à verdadeira identidade do pai de Francisca. E, por fim, ela mesma, Francisca, encontra-se num casamento que é fruto de um erro, de uma má consciência dos afectos, onde a questão da traição vai ganhando terreno.
No fundo, esta história poderia ser uma espécie de representação de alguns aspectos da condição humana ou, particularmente, feminina, a que não são estranhos a rejeição de alguns códigos sociais a fatalidade associada a uma cedência forçada a estes. O resultado é uma mulher infinitamente só, que ganha em frieza o que perde em verdade, tornando-se exterior à sua própria vida, ao mesmo tempo que começa a sentir intimamente o mal-estar de viver contrariada e descrente daquilo que construiu, referindo-se à sua vida como vida que imit[a] viver (p.9).
E esse incómodo torna-se de tal modo exacerbado, funde-se tão profundamente na personalidade de Francisca que, derradeiramente, acaba por impedi-la de revelar concretamente a natureza do seu segredo à sua destinatária imaginada, limitando-se, portanto, a dar pistas suficientes para que ele seja subentendido.
A narração do isolamento, que deixa a mulher suspensa na vida, na casa isolada, é feita numa linguagem sóbria e delicada, como é habitual em Maria Ondina Braga, mas é feita, acima de tudo, com uma nitidez e um equilíbrio muito difíceis e que resultam numa novela densa, enigmática e bela, onde as forças destrutivas da mentira e da inércia são descritas de uma forma a um tempo crua e sonhadora.


No entanto, e aqui regresso à ideia inicial deste texto, é preciso sermos críticos o suficiente para perceber que, em termos de história, 'A Casa Suspensa' não vem trazer nada de assinalavelmente novo. O que o faz, portanto, ser um grande livro? A meu ver, é precisamente toda uma formação poética que se faz sentir, esse poder de transfiguração, em que a realidade, que tem sempre o seu quê de banal, levanta voo e se transforma em algo de grandioso. E todo este livro está, realmente, subordinado a um processo muito poético, conseguido através das torções psicológicas do tempo, em que aspectos da vida de personagens de gerações diferentes se fundem completamente; através da forma descarnada como os sentimentos são escritos, desdobrando-se frequentemente em vários sentidos; e até na ideia do diálogo com um 'eu' inventado, como um alter ego, mas cuja invenção nos permitirá dizer a verdade e revelar o rosto, fazendo-nos, em última análise, ultrapassar os limites do ego e do super-ego. Por isso a poesia está muito presente em 'A Casa Suspensa', quase que estruturando-o.
E, um pouco como vai acontecendo em quase todos os livros de Maria Ondina, sentimos alguns ecos da sua vida na vida da personagem, nomeadamente Paris, onde a escritora viveu e trabalhou, o que a confirma como uma das autoras da dita prosa intimista, um 'género' difícil e, em muitos aspectos, negligenciado, mas que deu já resultados tão importantes como os livros de Irene Lisboa, de Ilse Losa, de Luísa Dacosta ou alguns livros de Luiz Pacheco e, de certa forma, de muitas páginas dos 'Sinais de Fogo' de Jorge de Sena. E estou certo que este 'A Casa Suspensa' será outro desses 'filhos maiores' de um género onde o diário, a ficção e a poesia se confundem da forma mais sublime.

sábado, 10 de setembro de 2011

97. A Superscription



Look in my face; my name is Might-have-been;
         I am also call'd No-more, Too-late, Farewell;
         Unto thine ear I hold the dead-sea shell
Cast up thy Life's foam-fretted feet between;
Unto thine eyes the glass where that is seen
         Which had Life's form and Love's, but by my spell
         Is now a shaken shadow intolerable,
Of ultimate things unutter'd the frail screen.


Mark me, how still I am! But should there dart
         One moment through thy soul the soft surprise
         Of that wing'd Peace which lulls the breath of sighs,—
Then shalt thou see me smile, and turn apart
Thy visage to mine ambush at thy heart
         Sleepless with cold commemorative eyes.

Dante Gabriel Rossetti
'The House of Life'
Poems by D.G. Rossetti, 1870
gravura de Dante Gabriel Rossetti

(Aparentemente há ainda) Mais vídeos dos Anathema no Vagos O.A. 2011

Deep A Natural Disaster

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Sem corpo nenhum



Sem corpo nenhum, 
como te hei de amar? 
— Minha alma, minha alma, 
tu mesma escolheste 
esse doce mal! 


Sem palavra alguma, 
como o hei de saber? 
— Minha alma, minha alma, 
tu mesma desejas 
o que não se vê! 


Nenhuma esperança 
me dás, nem te dou:  
— Minha alma, minha alma, 
eis toda a conquista 
do mais longo amor!

Cecília Meireles
Poesia (1942-1959)
pintura de Graça Martins

Agustina tem destas coisas...(28)

_Os casamentos não duram.
_Não duram mas repetem-se. É uma forma de duração.




de 'Prazer e Glória' (1988)

Hellraiser VIII: Hellworld

NÃO, NÃO E NÃO


O último filme da octalogia de 'Hellraiser' é este 'Hellraiser VIII: Hellworld' que, tal como os dois predecessores, é realizado por Rick Bota. A ideia das sequelas é sempre escorregadia, quanto mais não seja porque comporta sempre uma competição subjacente. É muito fácil fazer maus filmes nas sequelas, a maioria dos casos é mesmo assim, e, diga-se, fica sempre, no espectador, a ideia de que há-de haver uma que é pior que as restantes.
'Hellraiser' não foge à regra de todas as sagas, que é dar, depois do primeiro, muitos filmes maus, seriamente maus. Por aqui estão muitos dos piores filmes de horror ou pretenso horror que já vi.
Pensava eu que com uma incursão no Espaço seria difícil descer mais baixo. Pelos vistos, enganei-me. É saudável uma pessoa enganar-se, mas, neste caso, isso é também muito mau sinal.
Este filme foi escrito por Carl V. Dupré, que havia sido um dos argumentistas de 'Hellraiser VI: Hellseeker' que não é nada aquilo que eu chamaria uma boa sequela. No que toca ao argumento que Dupré escreveu para este oitavo 'Hellraiser', o que eu acho inacreditável é que tenha havido um realizador disposto a filmar esta 'coisa' sem pés nem cabeça.
O que temos aqui é de novo a ideia da modernização: essa ideia peregrina que levou Michael Myers para uma aventura on-line, e Jason Vorhees e Pinhead para o Espaço.
Agora, é tempo dos Cenobites transitarem para um jogo on-line, chamado 'Hellworld', um jogo cujo imaginário é exactamente aquele que define 'Hellraiser'.
Adam (Stelian Urian) suicida-se no início do filme e, pelo que percebemos do seu funeral, era um jogador viciado do 'Hellworld'.
Dois anos depois, os seus amigos continuam a jogar o jogo, com excepção de Chelsea (Katheryn Winnick). Neste contexto, os amigos ganham convites para uma festa privada para jogadores do 'Hellworld'. Chelsea acompanha-os a contragosto até à mansão onde a festa decorre, e, na festa, todos acabam por descobrir que 'Hellworld' será mais do que mera ficção informática, sendo torturados e assassinados, o que os leva a concluir que talvez a morte de Adam não tenha sido tão linear como parecia.
A premissa, em si, é verdadeiramente previsível. E essa predicabilidade é agravada pela fraca noção de como inserir este filme na saga a que ele pertence. A verdade é que parece haver da parte do argumentista um propositado esquecimento daquilo que foi feito nos sete anteriores filmes. O resultado é que este filme não tem relação nenhuma com nada, excepto a um nível muito superficial, que é a presença de Pinhead e de Cenobites novos, como vem acontecendo desde a terceira parte. Assim sendo, a presença da mitologia de 'Hellraiser' neste filme é perfeitamente arbitrária: é este imaginário, como poderia ser qualquer outro.
Mais ainda, em termos de soluções, as que aqui encontramos são de um perfeito mau-gosto que não dispensa os lugares-comuns mais comuns do cinema deste tipo, enveredando pelo caminho da vingança e do drama familiar.


A nível visual, Rick Bota não traz nada de substancial nem nada de novo. Repete descontraidamente aquilo que por cá já vimos, e acrescenta algumas coisas que, não estando na saga, estão numa série de outros filmes de horror, os piores, claro.
O resultado é um filme perfeitamente inerte e dispensável, que seria melhor não ter feito. Porque a verdade é que, mesmo no pior dos casos, que é o do quarto filme, víamos algo, por diminuto que fosse, que valeria a pena ressalvar. Tal não acontece neste oitavo capítulo. 
E se há aqueles que guardam o melhor para último, o caso de 'Hellraiser' é o oposto: encontramos aqui uma espécie de fanatismo distraído e incompetente, onde o que fica em falta é o sentido crítico.
Caso para citar a recentemente falecida Amy Winehouse: no, no, no...

Entretenimento





Como quem procura conchas à beira do mar
escolho as palavras para te dizer
quando o silêncio dos teus braços
vestir o frio dos meus ombros.


Luísa Dacosta
A Maresia e o Sargaço dos Dias
2002, ed. Asa
pintura de William Turner 

Hellraiser VII: Deader de Rick Bota

COITO INTERROMPIDO

Parece que Rick Bota é um fã acérrimo de 'Hellraiser'. Digo isto porque, das sete sequelas realizadas, três são da responsabilidade deste realizador, a saber, as últimas três.

'Hellraiser VII: Deader' é a segunda delas, escrita por Neal Marshall Stevens e Scott Atkins, e, depois de tanto aborrecimento e tanto mau filme, parece trazer-nos algo de novo, ou, se não novo, pelo menos algo de invulgar, para esta saga.
Inicialmente, a relação com toda a mitologia desta saga, que se prende com a figura de Pinhead e com a caixa da Configuração do Lamento, tem contornos que quase que nos escapam, mantendo-nos numa espécie de interrogação, bastante saudável, durante algum tempo.
Amy Klein (Kari Wuhrer) é uma jornalista de investigação, bastante bem-sucedida por sinal, a quem é entregue uma história um tanto macabra. Tudo começa quando uma cassete de vídeo é enviada para o jornal onde ela trabalha, onde uma rapariga aterrorizada fala de um culto de suicidas que renascem da morte. Amy desloca-se a Bucareste, para investigar este culto, cujos participantes se chamam Deaders. Na morada de onde a cassete fora enviada, Amy encontra o cadáver da rapariga e a nossa caixa-puzzle. Já no hotel, Amy abre a caixa e tem a primeira aparição de Pinhead. Impelida pelo perigo que corre a deslindar o mistério dos Deaders, Amy cruza-se com Winter (Paul Rhys), o sinistro líder do grupo que, ao que parece, consegue fazer os suicidas ressuscitar. E assim percebemos que a Configuração do Lamento poderá ser a chave do mistério dos Deaders, escondendo também uma relação entre os Cenobites e Winter.
O argumento, enquanto conceito, teria pernas para andar. Com um pouco de esforço para fugir a clichés e alguma atenção no sentido de não repetir aquilo que até aqui havia sido feito na saga teria salvo o filme. O que acontece, no entanto, é que, na sua primeira parte, o filme parece-nos invulgar e interessante. Claro que aparição primeira de Pinhead nos parece muito adiantada, mas a necessidade de garantir uma relação entre os Deaders e o universo de 'Hellraiser' poderia explicá-la facilmente. Além disto, Rick Bota usa algumas fórmulas já vistas nesta saga, mas consegue evitar satisfatoriamente o deja-vu, ou seja: ela usa de novo o tema da tortura psicológica imposta por uma percepção transtornada do real, mas consegue-o através de imagens asfixiantes do labirinto que daí resulta e, mais importante ainda, funde esse labirinto com aquele que existe em torno dos Deaders. Assim, a personagem de Amy parece sempre entre o desejo de fuga e a curiosidade, envolvendo-nos nessa vontade de descobrir o segredo daquele culto.


Mas, algures a meio, o filme começa a banalizar-se brutalmente, mostrando-se incapaz de nos surpreender no que toca a especificar a relação entre os Deaders e a Configuração do Lamento. O problema começa, então, no argumento. 
Rick Bota tenta, notoriamente, criar algumas cenas em que mistério e tensão criam em nós um muito conveniente suspense, mas tudo isso parece depois ser anulado pelas explicações que nos são dadas. O que acontece é que, apesar de um princípio invulgar, no que toca a desenlaces, o argumento parece ceder com toda a naturalidade a facilitismos, chegando mesmo ao ponto de repisar a sequela mais inusitada de toda a saga, 'Hellraiser IV: Bloodline', através das sucessivas gerações de LeMerchant, o construtor da caixa-puzzle. Salva-se, a este propósito, a cena em que Amy acorda no hotel com uma faca cravada nas costas: será este um dos poucos momentos realmente conseguidos e quase perfeitos deste filme.
O resultado não deixa de ser um filme medíocre, em que o interesse inicial é interrompido para dar lugar a mais bocejos e à sensação de que, uma vez mais, toda a mitologia de 'Hellraiser' vai sendo usada sem rima nem razão, tornando-se forçada ao ponto do incredível. É pena, porque este filme tinha potencial para ser uma boa sequela. Mas pura e simplesmente perde-se. E quanto a isso, nada a fazer.

Anathema: Falling Deeper

CATARSE

Para falar do álbum novo dos Anathema, lançado há três dias apenas, há que recordar um pouco a história da banda, quanto mais não seja por se tratar de um história que não é propriamente linear.


A primeira aparição desta banda de Liverpool deu-se em 1990, com uma audiocassete chamada 'An Iliad of Woes'. Integravam a banda os três irmãos Daniel, Vincent e Jamie Cavanagh, os primeiros dois na guitarra e o terceiro no baixo; John Douglas como baterista e Darren White como vocalista. Das quatro canções que compunham esta demo, nenhuma viria a ser revisitada. Um ano depois, de novo em audiocassete, aparecia 'All Faith is Lost', outra demo, de cujas quatro canções, três haveriam de se revelar das mais aclamadas da banda. Em 1992, surge o primeiro álbum, o EP 'The Crestfallen', onde reapareciam duas das canções da segunda demo. No ano seguinte, o primeiro LP tem como nome 'Serenades', e, nele, já não encontramos no baixo Jamie Cavanagh, mas sim Duncan Patterson, que haveria de ser um dos compositores em tempos vindouros da banda, que, na altura, fazia doom metal. E assim seria por mais dois anos: os anos em que encontramos os EPs 'We Are The Bible' (1994) e 'Pentecost III' (1995). É depois do lançamento deste último que Darren White deixa a banda. E esta alteração seria, talvez, a mais decisiva no percurso dos Anathema. Aparentemente, White não estava interessado no rumo que a banda tomava, e que se afastava do doom-metal, aproximando-se de sonoridades mais experimentais e melódicas.
Foi assim que Vincent Cavanagh passou a vocalista da banda. Daniel Cavanagh, que era o principal compositor da banda, passou também a ser o autor das letras, cargo que, ao longo dos sete álbuns de originais que os Anathema gravaram desde então, tem sido dividido com Duncan Patterson, que deixaria a banda depois de 'Alternative 4' (1998), com Dave Pybus, o baixista de 'Judgement' e 'A Fine Day to Exit' (1999) e com o baterista John Douglas. Em 1999, juntar-se-iam à banda Lee Douglas, como segunda vocalista, e Les Smith como teclista.
O que mais interessa é que 'The Silent Enigma', EP lançado em 1995 vem trazer-nos uma banda que só em nome é a mesma que fora nos anteriores cinco anos. Mantém-se a angústia, mantém-se a violência, mantém-se a tensão, mas a guturalidade da voz de Darren White dá lugar à voz de Vincent Cavanagh, que encontra a força numa tonalidade frágil e emotiva, muito mais capaz de transmitir aquilo que de mais soturno e -por que não dizê-lo- deprimente existe na música dos Anathema, que agora se despe de pretensões e se entrega a experimentações. É esta a ideia ainda do álbum seguinte, 'Eternity' (1996) mas será o álbum 'Alternative 4' (1998) o primeiro momento de verdadeira maturidade da banda. Daí para a frente encontramos alguns dos albuns mais significativos daquilo que se possa chamar o progressive-rock: 'Judgemet', 'A Fine Day to Exit', 'A Natural Disaster' (2003), 'Hindsight' (2008) e 'We're Here Because We're Here' (2010).
De 'Hindsight' precisamente interessa falar. Neste álbum, os Anathema gravam versões acústicas de nove canções escolhidas da fase 1996-2003.


Portanto, quando 'Falling Deeper' nos foi anunciado como recuperação de canções da fase 1991-1995 da banda, pensámos instintivamente tratar-se de uma espécie de continuação do conceito de 'Hindsight'.
Essa ideia, no entanto, não parece ser muito exacta. De facto, há diferenças substanciais entre o que era o álbum de 2008 e o que é este que agora nos chega.
'Falling Deeper' abre com uma das canções mais emblemáticas dos Anathema, Crestfallen, uma canção que surge pela primeira vez em 'All Faith is Lost' e é gravada definitivamente no EP a que dá nome. Onde estava a violência, aqui encontramos um lado melódico profundamente harmonioso, com arranjos orquestrais grandiosos, e as vozes de Vincent Cavanagh e Lee Douglas repetindo as palavras 'falling deeper', que, aliás, faziam parte da letra original de Crestfallen, escrita por Danny Cavanagh.
A grande maioria do álbum é feita desta forma. O ênfase é colocado quase totalmente no lado instrumental, onde os instrumentos, maioritariamente acústicos, se cruzam com os grandes arranjos de orquestra, um pouco como vinha acontecendo em 'We're Here Because We're Here'. O instrumento que parece ter maior importância, ainda assim, é o piano, e não a guitarra, e isso constitui de certa forma uma novidade na música dos Anathema.
Com esta construção muito definida e concreta, o álbum vai tendo momentos de beleza absoluta, como Sleep In Sanity, Alone, We The Gods e o emblemático They Die (Também chamado They (Will Always) Die.).  As vozes dos dois vocalistas surgem na maior parte das faixas como vozes-ambiente, por vezes declamando palavras, outras vezes em surdina. São excepção a nova versão de Everwake onde encontramos a voz de Anneke Van Giersbergen, uma voz bela que consegue perfeitamente captar a atmosfera da canção; Kingdom, onde os dois vocalistas entoam a letra num tom quase sussurrado e Sunset Of Age, que, de todas as faixas, será talvez aquela que mais se aproxima da sua versão original.
A opção do instrumental é acertada na maioria dos casos, já que, por si só, o instrumental é capaz de expressar com toda a clareza aquilo que os Anathema fazem de momento, e também aquilo que, na sua música inicial, existia já de comum com o presente. No entanto, há duas excepções que apetece apontar, e elas são Crestfallen e They Die. Não porque as versões instrumentais (Ou quase, no caso da primeira.) sejam insatisfatórias, mas porque, sendo duas das canções mais emblemáticas desta banda, de certa forma pediam que, nelas, se arriscasse um pouco mais, sendo trabalhadas também a nível da colocação da voz.
Nos restantes casos, as opções parecem ter sido as mais indicadas, guardando-se a componente vocal para apenas alguns momentos em que ela se torna algo crucial. A única perda que isto comporta é a das letras originais, sendo que muitas delas são algumas das melhores já escritas por Daniel Cavanagh; merecendo, portanto, ser ouvidas desta forma menos gutural.
Há ainda que assinalar a transpiração que a produção deste álbum terá implicado, pois é certo que nos surge como um objecto perfeitamente acabado e conseguido, na tarefa aparentemente impossível de transformar em symphonic-rock aquilo que era doom-metal. Poderíamos ter aqui uma receita para o verdadeiro fracasso e não é isso que acontece. 'Falling Deeper' é um álbum simples mas cheio de detalhes subtis, não ficando, por isso, na maioria dos seus momentos, a dever seja o que for ao que esta banda de melhor tem feito. No fundo, este álbum vem continuar aquilo que 'We're Here Because We're Here' já tinha vindo atestar preto-no-branco: que a música dos Anathema é profundamente angustiada, ao mesmo tempo que é profundamente bela, resultando, então, numa espécie de libertação, de catarse. E por isso estas canções potencialmente nos comovem tanto.
O caminho está definido e, assim, aberto. Esperemos que um próximo álbum de originais não demore muito (Lembremos que entre 'A Natural Disaster' e 'We're Here Because We're Here' se passaram sete anos.). E, claro, esperemos que o lançamento de 'Falling Deeper' signifique um ou mais concertos em Portugal, já que a transposição destas canções para o palco não deixa de nos parecer intrigante.

O Rei





conta-me 


conta-me entre as amêndoas 


entre as mulheres 
que é preciso 
depor 
aos pés 
do rei 


conta-me 
torna-me 
amarga 


faz-me saber 
mais 
do que sei

Yvette K. Centeno
in 'Poesia do Mundo'
org. Maria Irene Ramalho de Sousa Santos
1995, ed. Afrontamento
pintura de William Holman Hunt

sábado, 3 de setembro de 2011

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Hellraiser VI: Hellseeker de Rick Bota

PEDIR DEMAIS

Estamos em 2002 quando é editado, directamente em DVD, a sexta parte da saga 'Hellraiser'. Um primeiro filme invulgar, por mais vomitivo que fosse, três sequelas entre o muito fraco e o medíocre e uma sequela, a quarta, a aproximar-se seriamente de um bom filme.
Carl V. Dupré e Tim Day são os argumentistas e Rick Bota é o realizador. O filme chama-se 'Hellraiser VI: Hellseeker' e traz-nos de volta Ashley Laurence no papel de Kirsty Cotton, que regressa depois de muitas voltas e reviravoltas no destino da saga.
Kirsty começa por morrer, num acidente de carro, carro esse conduzido pelo marido, Trevor (Dean Winters). Enquanto decorre a investigação do acidente, que apresenta o problema de o carro ter caído a um rio e o corpo de Kirsty ter desaparecido, vamos tomando conhecimento da vida de Trevor, que era tudo menos um marido exemplar. Tem pelo menos três amantes, pouco afecto pela mulher, e, mais tarde, descobrimos, tinha ainda um plano para a matar e dividir com um amigo cúmplice a gorda herança a que Kirsty tinha direito.
O problema é que o acidente de carro deixou a Trevor uma série de problemas de saúde, que passam por insistentes dores de cabeça e perda severa de memória, que o leva a, muitas vezes, não ter a certeza do seu passado. As suas dúvidas são asseveradas pelas alucinações de que começa a sofrer. Isto porque, percebemos, há algum tempo, ele havia oferecido um bonito presente de aniversário a Kirsty: a caixa-puzzle da Configuração do Lamento. Aparentemente, quando Trevor a comprara, numa loja ilegal, não estava completamente consciente do que teria em mãos, mas foi Kirsty quem, num acesso de raiva, abriu a caixa.
Este filme começa com uma citação do 'Inferno' de Dante Alighieri:

There is no greater sorrow
than to recall happiness in times of misery

mas esta citação é completamente gratuita. Primeiro, porque a personagem de Trevor está tão pobremente definida que nunca, na verdade, percebemos a verdadeira natureza quer dos seus sentimentos -se é que tem alguns -, quer dos seus interesses. A rejeição das amantes é pouco clara quanto a causas: será um luto ou um efeito das tremendas dores de cabeça de que sofre?
Esta é uma entre muitíssimas dúvidas que facilmente nos ocorrem durante 'Hellraiser VI: Hellseeker', e nem no final elas ficam explicadas.
Este sexto filme parece querer seguir o quinto num aspecto: a substituição da violência física pela psicológica. E, para esse efeito, decalca a técnica usada anteriormente por Scott Derrickson, que é criar em torno do personagem um completo labirinto. Mas, se no filme de Derrickson, sentíamos já algum excesso nesse labirinto, neste, o labirinto não é labirinto, é confusão pura e gratuita. Nada aqui é claro, e isto não é um elogio. O filme parece deambular, apenas, sem ter um objectivo concretamente definido. Pinhead e mais alguns Cenobites aparecem aqui, mas não parecem ser mais do que meros detalhes sem importância, já que o cerne do filme é o drama de Trevor. Nada contra, se ao menos esse drama estivesse bem construído, mas não é mesmo o caso.

A resolução do filme é interessante em teoria, mas, na prática, está filmada de uma maneira tão previsível, que acaba por ser anulada a potencial força da cena.
E se o argumento não está particularmente bem escrito, a realização consegue ficar aquém. Rick Bota não faz mais que uma assemblage de uma série de lugares-comuns do cinema em geral, mas, mais escandaloso do que isso, de uma série de lugares-comuns dentro da própria saga de 'Hellraiser'.
A participação de Ashley Laurence neste filme também não parece ter sido mais do que um mero golpe publicitário, já que a sua presença acaba por ser quase residual. Dean Winters, enquanto actor, nem consegue entender-se se está a tentar transmitir uma ideia de confusão -se é o caso, foi bem sucedido -, ou se é pura e simplesmente incapaz de representar melhor do que isto.
É de supor que duas boas sequelas na mesma saga seja pedir o impossível, não sei.


Existem Pedras


Existem pedras nos olhos
mas não as tragas
contigo

Meu amor
e meu amigo

Existem pedras nas mãos
mas não as uses
comigo

Meu amor
e meu amigo

Existem pedras sedentas
de amor e muito perigo
Não queiras que elas inventem
motivo do meu castigo

MARIA TERESA HORTA
Minha Senhora de Mim
1971, ed. Dom Quixote

fotografia de SOPHIE CALLE

Cerimónia Funesta


O corpo não responde
às vozes de comando,
como um cão estropiado
já desdenha os apelos
os antigos convites
às funestas moradas,
esqueceu-se do ponto
vai olvidando senhas
os códigos das grutas
acumulando lixos
as servidões austeras
diluem-se num canto
o corpo não atende chamadas
não estremece ao ruído da chave
não suporta
qualquer intromissão
secou num aterro,
os restos à vista
a memória escava
da lembrança os rastos
avidamente suga
de tal fausto os ossos,
de tão vitais cerimónias
nos tão secretos barcos
mesmo o pouco que resta
ainda se mastiga.

FÁTIMA MALDONADO
Vida Extenuada
2008, ed. &etc

pintura de LUCIEN FREUD

Hellraiser V: Inferno de Scott Derrickson

QUASE QUASE QUASE

Quatro filmes numa saga é muita coisa. Com uma média de hora e meia cada um, quatro filmes somam seis horas de fita dedicadas, mais ou menos, ao mesmo assunto.
Quando, em 2000, Scott Derrickson embarcou no projecto de fazer uma quinta parte para 'Hellraiser', deve ter tido a inteligência de perceber que isso não podia ser feito de qualquer maneira. Era imperativo que o argumento para mais uma sequela fosse muito, mas mesmo muito pensado. Isto porque com uma quarta parte passada no Espaço, parece que já toda a tentativa de retomar 'Hellraiser' estaria fadada para a desgraça.

Portanto, Derrickson e Paul Harris Boardman, ao escreverem o argumento, perceberam que era precisa uma mudança de direcção nesta saga, mas uma mudança bem pensada e que não tivesse contornos de ridículo.
Qual é, portanto, em termos gerais, a maior mudança que se sente em 'Hellraiser V: Inferno', comparativamente aos seus predecessores? É que este não é um filme gore. É um filme declaradamente violento, é certo, mas essa violência decorre a um nível psicológico, e mesmo a um nível narrativo. Mas, contrariamente ao passado, não há neste filme entranhas à mostra nem explosões sadomasoquistas. Pelo menos em conceito, a ideia é boa.
Vejamos então o que acontece com o filme propriamente dito. Encontramos, e isso está bastante longe de ser um rasgo de originalidade, um detective corrupto, Joseph Thorne (Craig Sheffer), que encontra a caixa-puzzle do Inferno ao investigar a cena de um crime violento, facilmente associável, em termos de cenografia, a um misto de ritual satânico com uma sessão sadomasoquista.
Enquanto temos acesso aos vícios de Joseph, que se relacionam com droga, dinheiro e prostitutas, percebemos também que, sem querer, ele terá aberto a caixa da Configuração do Lamento. Por meios travessos, Joseph toma conhecimento de um misterioso e perigoso homem, que, pensa ele, estará ligado à máfia, que dá pelo nome de O Engenheiro. Perceberemos que O Engenheiro não é outro que não o charmoso Pinhead.
A partir daqui, todo o filme está cheio de progressos e retrocessos, de afirmações e negações das mesmas realidades, gerando-se, enfim, uma espécie de labirinto no próprio decurso da narrativa. Joseph parece nunca realmente tomar consciência da natureza dos fenómenos que atravessa, parecendo concentrado em, a todo o custo, encontrar O Engenheiro, ao mesmo tempo que a sua vida começa a estilhaçar e se torna claro que nem ele mesmo consegue distinguir a realidade dos delírios em que vai caindo. O enigma vai-se tornando tanto mais intrincado quanto mais Joseph se aproxima d'O Engenheiro, terminando de uma maneira angustiante e profundamente pesada -em termos psicológicos, claro.
É evidente que este filme não dispensa uma certa violência gráfica. No entanto, na grande maioria dos casos, encontramos tudo já consumado, já que, pode-se dizer, nós seguimos a investigação, tal como Joseph, o que significa que, maioritariamente, teremos acesso ao resultado dos homicídios, menos do que ao seu decorrer.
A verdade é que um filme como este pode, de certa forma, desiludir alguns fãs de 'Hellraiser'. Isto porque a mudança é, na verdade, drástica. A escolha de transladar toda a pulsão agressiva para o domínio psíquico e para a própria estruturação da narrativa do filme, pode resultar numa comunicação menos imediatista. No entanto, sendo que, por razões que abaixo explicarei, me parece que 'Hellraiser V: Inferno' está longe de ser um grande filme, parece-me que, de todas as sequelas do filme de 1987, esta consegue ser melhor que qualquer uma que esteja entre os dois filmes. E, e isso é sempre algo a assinalar, é o primeiro a introduzir mudanças realmente significativas na génese de 'Hellraiser'.
Cabe, portanto, a Scott Derrickson o mérito de ter arriscado realmente inovar e, de certa forma, mostrar-nos o avesso daquilo que víamos no filme de Clive Barker. Se o tema foi sempre o sadomasoquismo, enquanto prazer do sofrimento, a verdade é que durante quatro filmes esse tema, de formas mais conseguidas ou menos, tem sido abordado do seu ponto de vista físico, no mostrado. E Derrickson parece, pela primeira vez, ter colocado a ênfase no lado psíquico, de percepção desse mesmo prazer do sofrimento. Este filme, portanto, exerce um certo impacto por meio de sugestão, e essa é uma solução que tem salvo muitos filmes da mediocridade (Pensemos por exemplo em 'The Blair Witch Project', que é exemplo extremo disto mesmo.).


O que corre, então, mal em 'Hellraiser V: Inferno'? Salvo um certo excesso de carga enigmática e muito excesso no lado corrupto de Joseph, e também a cedência a alguns clichés ligados aos filmes que partem de investigações criminais e o desequilíbrio que se sente no que toca à aproximação de Joseph a'O Engenheiro e à verdade sobre a Configuração do Lamento; não há nada que corra particularmente mal. Parece-me que o labirinto de realidade em torno de Joseph toma alguns contornos claramente ficcionais; parece-me que se cria demasiado suspense até ao encontro com O Engenheiro. Mas é a cedência aos clichés que afunda parcialmente 'Hellraiser V: Inferno'. Um pouco de esforço por encontrar alguma invulgaridade teria favorecido muito este filme. Mas temos cá tudo: desde o polícia obcecado com a resolução de um crime brutal; temos a dupla de polícia bom e polícia mau; temos o polícia mau que usa meios ilícitos por uma causa nobre. Teria sido mais inteligente que esta investigação funcionasse como um pano de fundo para a relação entre Joseph e a Configuração do Lamento, no entanto, na maioria do filme, sentimos que acontece o contrário.
Não se trata, feitas as contas de um mau filme. Como disse, é bastante melhor que a segunda, a terceira e a quarta partes. Só que um esforço um tanto maior teria resultado num filme realmente bom, em vez que se ficar pelo razoavelmente bom.