quarta-feira, 24 de março de 2010

Egito Gonçalves: Entre Mim e a Minha Morte Há Ainda Um Copo de Crepúsculo

A CIDADE ÍNTIMA


Fernando Pessoa ditou o seu último poema precisamente no dia em que morreu.
Com excepção dele, é raro o poeta português que escreveu literalmente até à morte e que, além disso, teve hipótese de se despedir.
Egito Gonçalves é um desses raros casos.
O percurso poético do autor inicia-se em 1950 com a publicação de "Poema Para os Companheiros da Ilha". Dada a sua clara inclinação para uma poesia politizada é rapidamente atirado para a prateleira dos neo-realistas. E, logo desde o início, há uma característica que é por assim dizer atirada para segundo plano: a dimensão lírica. Numa época em que como está visto, todos tinham que escolher de que lado queriam ficar (A estética dos surrealistas ou a ética dos neo-realistas.) não são raros os casos dos que não se confinam nem a um nem a outro (Por exemplo Jorge de Sena.). O caso de Egito Gonçalves envereda claramente por uma dimensão ética mas em momento algum renuncia à estética (Sem no entanto resvalar para qualquer situação surrealista ou surrealizante.) e será talvez esse o ponto forte da sua poesia.
A sua obra poética foi-se desenvolvendo e desbravando novos terrenos ligados, por exemplo, ao erotismo, muito latente em obras como "Luz Vegetal" (Limiar, 1975) ou "Falo da Vertigem" (Limiar, 1983) até à palavra que quase caíra em desuso mas que Rosa Alice Branco aponta com muita pertinência no seu prefácio a "E No Entanto Move-se" (Quetzal, 1995), a ternura. É esta que irá pontuar nos últimos livros do autor: e se em "O Mapa do Tesouro" (Campo das Letras, 1997) esta "ternura" acaba por resultar em poemas menos conseguidos, em "A Ferida Amável", publicado conjuntamente com "Lettera Amorosa" (Campo das Letras, 2000) ela acaba por resultar com a maior das eficácias, colocando Egito Gonçalves entre os raros poetas contemporâneos que cantam o "amor feliz".
Antes de falar um pouco sobre o último livro do autor, publicado postumamente em 2006 pela Campo das Letras, penso ser pertinente referir o livro "E No Entanto Move-se".
Trata-se de uma recolha de poemas desde os anos 50 até ao início dos anos 90 (Alguns dos quais publicados em antemão na antologia "O Pêndulo Afectivo".) que se caracterizam por ser "poemas de viagem", uma classificação excessivamente resumida mas que explica bem a génese do livro aliás triplamente premiado. Nele o poeta se confronta com cidades estrangeiras, com a observação vantajosa e mais completa de se vir de fora, e, uma vez mais fazendo uso do prefácio de Rosa Alice Branco a este livro, é através de certos elementos como a Mulher ou a poesia ou determinado monumento que o sujeito poético encontra a sua ponte para a cidade estranha que percorre.



É importante falar disto porque "Entre Mim e a Minha Morte Há Ainda um Copo de Crepúsculo" nos mostra precisamente a mesma situação: um confronto poeta-cidade: mas desta vez sem qualquer tipo de intermediário. A dedicatória do livro é sucinta, dedica-o à cidade do Porto. E desta vez, uma poesia que se pode dizer (Ainda que me pareça rebuscado.) ter uma dimensão geográfica é escrita com a maior intimidade. De certa forma, quase como se essa ternura que acima se referiu fosse sentida também pela cidade, quer seja a cidade construída, quer seja a cidade vivida. E é também um livro onde se colocam em confronto os dois pontos essenciais da vida: a infância e a morte. Se por um lado nos poemas iniciais lemos uma espécie de "memórias" da cidade do Porto nos anos 40 ou 50, é também neste livro que sentimos a proximidade da morte como se pairasse sobre essas mesmas memórias do passado. Talvez um verso de Isabel de Sá sobre Marguerite Duras faça sentido a propósito deste livro "começou a ser velh[o] no último livro". Velho apenas no sentido em que se confronta directamente com a morte.
Não há no entanto qualquer tipo de queixume ou de lamentação. Pelo contrário. As coisas são observadas com a naturalidade e o lirismo sobre o qual Egito Gonçalves edificou toda a sua obra. É quase como se houvesse uma espécie de ternura pela própria morte, precisamente porque esta é aceite como ponto essencial e natural da vida. E a cidade existe no livro como testemunha de todo um percurso e será talvez essa a razão que me leva a colocar este livro no topo dos livros de Egito Gonçalves: a noção de como a cidade enquanto organismo vivo e de algum modo intemporal é o espelho da vida. A mesma cidade em que lemos Egito Gonçalves e os amigos a ir ao Rivoli ou a brincar no Jardim da Cordoaria é a mesma cidade em que, no último poema, inacabado, o poeta sente as árvores dançando ao vento e onde vê o "copo de crepúsculo" que se interpõe entre ele e a sua morte.
Retomando o início deste texto, foram raros os poetas que tiveram a felicidade de se despedir. Egito Gonçalves foi um desses raros poetas. E despede-se, afirmo-o, com uma beleza e uma lucidez tão implacáveis que nos deixa verdadeiramente atónitos, ficamos nós mesmos frágeis e expostos à morte. A poesia que deve, segundo muitos que eu apoio, ser um murro no estômago. E o último poema de Egito Gonçalves é sem sombra de dúvida o derradeiro murro no estômago. E é também o final avassalador que a obra poética de Egito Gonçalves merecia.








Podem (E devem.) ler o poema em questão aqui

Notícias do Bloqueio



Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval, a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.

Tu lhes dirás do coração o que sofremos
nos dias que embranquecem os cabelos...
tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos – contrabando – aos teus cabelos.

Tu lhes dirás o nosso ódio construído,
sustentando a defesa à nossa volta
- único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.

Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima...

Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos de silêncio duro e violento.

Vai pois e noticia com um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.

Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.

Mas diz-lhes que se mantém indevassável
o segredo das torres que nos erguem,
e suspensa delas uma flor em lume
grita o seu nome incandescente e puro.

Diz-lhes que se resiste na cidade
desfigurada por feridas de granadas
e enquanto a água e os víveres escasseiam
aumenta a raiva
.....................e a esperança reproduz-se






Egito Gonçalves
A Viagem com o Teu Rosto
1958 edição Europa-América
imagem de Félix Labisse

domingo, 7 de março de 2010

e ainda sobre a Björk, estes momentos também me emocionaram, por motivos evidentemente diferentes


a entrada em palco no Sudoeste 2008 com "Earth Intruders" e outros momentos, como "Hunter"


ou "Pagan Poetry"


e por falar em Björk, lembro-me perfeitamente que chorei a primeira vez que vi esta cena

"I´ve Seen It All" do filme "Dancer In The Dark" de Lars Von Trier

morreu Lee Alexander McQueen

o realizador deste, entre outros vídeos de Björk

´
r.i.p.

Islas Lípari




La escama de una sirena puede cegarnos de tristeza
y una estrella de mar adormecernos para siempre,
bien lo dijo aquel loco de Porto Levante
cuando en la piel se traía los lentos oros de la tarde.
Isola Vulcano é un peeto addormentato, caro “itagnolo”.
Nadie como él conocía las estrategias del cangrejo
ni los valses secretos para hipnotizar al demonio.
Mordía las cenizas de un té confuso buscando puerta
a los indicios (más de una vez lo vimos auscultar
basaltos bajos las quietas acequias del cielo).
En la hora lábil de las alas y las áncoras,
cuando ya el mar ardía con el fuego de las distancias,
su carne de lapa tatuada abrió los círculos del ron
y crujió en el idioma de los naufragios, diciendo:
Peto addormentato, certo; ma peto di un dio.


Jesus Jiménez Dominguez
Diario de la Anemia/Fermentaciones
2000, ed. Olifante
imagem de Ana Hatherly

As Mães (IV)



Chegou.
Vinha da noite escura.
Sentou-se à mesa connosco
pediu o pão
e o vinho.

Não disse mais,
só um pouco de luz,
um Anjo que nos guarde.

Assim como chegou
assim partiu.

Yvette K. Centeno
Canções do Rio Profundo
ed. Asa, 2002 (esgotado)
desenho de Sadsamson

O Anjo sem Sorte



O ANJO SEM SORTE. Atrás dele o passado dá à costa, acumula entulho sobre as asas e os ombros, um barulho como de tambores enterrados, enquanto à sua frente se amontoa o futuro, esmagando-lhe os olhos, fazendo explodir como estrelas os globos oculares, transformando a palavra em mordaça sonora, estrangulando-o com o seu sopro. Durante algum tempo vê-se ainda o seu bater de asas, ouvem-se naquele sussurrar as pedras a cair-lhe à frente por cima atrás, tanto mais alto quanto mais frenético é o escusado movimento, mais espaçadas quando ele abranda. Depois fecha-se sobre ele o instante: no lugar onde está de pé, rapidamente atulhado, o anjo sem sorte encontra a paz, esperando pela História na petrificação do voo do olhar do sopro. Até que novo ruído de portentoso bater de asas se propaga em ondas através da pedra e anuncia o seu voo.




Heiner Muller
(trad. João Barrento)
O Anjo do Desespero
edição portuguesa, Relógio d´Água, 1997
desenho de Sadsamson a partir de uma fotografia de Garrett Neff

sábado, 6 de março de 2010

já está cá fora

Heligoland dos Massive Attack. Tem esta capa



e este vídeo de lançamento: "Paradise Circus" com a voz de Hope Sandoval.

O Anjo do Desespero



Eu sou o anjo do desespero. Com as minhas mãos distribuo o êxtase, o adormecimento, o esquecimento, o gozo e dor dos corpos. A minha fala é o silêncio, o meu canto o grito. Na sombra das minhas asas mora o terror. A minha esperança é a primeira batalha. Eu sou a faca com que o morto abre o caixão. Eu sou aquele que há-de ser. O meu voo é a revolta, o meu céu o abismo de amanhã.





Heiner Muller
(trad. João Barrento)
O Anjo do Desespero
ed. portuguesa Relógio d´Água, 1997
imagem: Graça Martins

quinta-feira, 4 de março de 2010

Joaquim Manuel Magalhães: Um Toldo Vermelho

COMO DESTRUÍR UMA GRANDE OBRA EM MENOS DE 200 PÁGINAS

Que Joaquim Manuel Magalhães ande de candeias às avessas com a própria obra poética não constitui novidade. Já em 1981 veio declarar excluída toda a sua produção desde 1970. Reescreveu os poemas, deu-lhes novas roupagens, fez inúmeros cortes, resultado “Alguns Livros Reunidos”, um livro onde apresenta as, em princípio, definitivas versões dos seus anteriores poemas. A edição, esgotada, foi depois reeditada pela Relógio d´Água em 2001. Outros livros, entretanto, iam sendo publicados, a maioria na colecção Forma da editorial Presença, e, ao que parece, iam construindo uma nova obra sobre alicerces renovados. Quando tudo parece ter corrido bem, nomeadamente com o livro “Uma Luz com Um Toldo Vermelho”, Magalhães anuncia um novo livro, “Um Toldo Vermelho” em que reunirá toda a sua obra.
Dado à estampa ainda esta semana, “Um Toldo Vermelho”, edição da Relógio d´Água, tem numa das últimas páginas esta alarmante nota: “Este volume constitui a minha obra poética até 2001, a que acrescento um poema publicado em 2005. Exclui e substitui toda a anterior.” Mas não estamos, afinal, perante uma poesia reunida. É um manual que explica, capítulo a capítulo, como destruir uma grande obra em menos de 200 páginas.
Ainda que o livro faça alusão a livros passados (Caso de “Envelope”, “Alta Noite em Alta Fraga” e “Segredos, Sebes, Aluviões”- que passa a “Segredo, Sebe, Aluvião”.), qualquer semelhança a qualquer um desses livros é pura coincidência.




“Um Toldo Vermelho” começa, logo nos primeiros poemas, por se mover contra os princípios críticos que o próprio Joaquim Manuel Magalhães há tanto tempo anda a alarviar. São pequenos poemas, quase haikus, anti-discursivos, e, em boa parte, inconsequentes (Alguns fazem lembrar levemente uma página de agenda.). Além disso, como João Luís Barreto Guimarães muito bem viu, é difícil ler estes poemas, pelo menos os iniciais, sem pensar nos tiques do Poesia61, esse happening que, a julgar pela crítica de Magalhães, terá sido do pior que aconteceu à literatura portuguesa.
Mais ainda, a poesia de Joaquim Manuel Magalhães sempre se mostrou altamente original, com ecos muito longínquos apenas. Ao ler este livro, é difícil não pensar em outros autores.
Por exemplo, num poema como este

A manzilla
adquire um toque suicida.
A goela vomita ressaca,
evaporou uma cúpula de linho,
o café um algar telegráfico,
subvertes a sucata submersa
da colecção
(pag. 87)

ou este

Fiada ficava/ hirta, imperativa
hipnótica sirga/ siena carcomido (…)
(pag.89)

é difícil não pensar nos poemas de Fátima Maldonado, primeiro pelo ritmo corrido, e depois pelo léxico que é, nessa poeta em específico, muito demarcado. Ou então num dos poemas inciais, onde lemos

O voo da ampola
na reflexão de um aro,
batalha.

Pêndulo,
tarefa laqueada.
Fossil o ardil em dualidade
(pag. 12)

facilmente nos ocorre a fase inicial de Maria Teresa Horta, profundamente simbólica e enumerativa.
Nalguns casos, também, fica-se com a sensação de se estar a ler um Herberto Helder sem fôlego, algo que relembra um pouco Jorge Melícias, por exemplo aqui

A nortada no alcantil.

Do areal ao campo lavrado
alimenta-se de larva de besouro.

Ao relento catos e o tojo
dobram
e a viseira domina.

O bálsamo,
o inóquo equilíbrio do ar.

Planta migratória,
aí o fuselo pousará.
(pag. 131)

O primeiro dos casos que referi, da página 87, é também exemplo de algo que acontece com frequência neste “Um Toldo Vermelho”: a destruição completa de poemas brutais que estavam em livros anteriores, neste caso, Maig de “Uma Luz Com Um Toldo Vermelho”.
Serve-me esse poema também para referir outro dos aspectos que mais decepciona nesta poesia reunida: o corte de toda e qualquer pulsão erótica. Se falássemos, antes deste livro, de poesia erótica em Portugal, dois nomes eram obrigatórios: o de Joaquim Manuel Magalhães (Numa perspectiva homo-erótica.) e o de Maria Teresa Horta. Depois deste livro, a grande poesia erótica portuguesa é a de Maria Teresa Hora.




A leitura destas quase duzentas páginas não pode senão deixar um travo muito azedo na boca.
É evidente que todos, incluindo Joaquim Manuel Magalhães, sabemos que por ele ter renegado toda a sua anterior obra não signifique que ela deixe de existir. Há livros ainda disponíveis na Presença e na Relógio d´Água e, quanto mais não seja, na BNP ou na Gulbenkian. E claro que o poeta, qualquer poeta, é livre de fazer da sua obra o que quiser, mesmo que seja reduzi-la a lixo, como é o caso. Valham-nos esses livros antigos de Joaquim Manuel Magalhães para o ter como referência, porque, se nos basearmos somente neste, está ao nível de qualquer candidato medíocre a poeta.
Na minha opinião o realmente grave, mesmo assim, é que Joaquim Manuel Magalhães tenha vindo retirar a sua obra poética que era, inegavelmente, uma das mais assinaláveis entre nós, em vez de retirar, por exemplo, todos os disparates críticos que tem vindo a vomitar ao longo dos anos. E à luz deste “Toldo Vermelho”, a primeira coisa a fazer seria enaltecer nomes como o de Fiama, Gastão Cruz, Teresa Horta, entre outros, que realmente agora surgem nas entrelinhas de um poeta que já uma vez foi grande.
Por outro lado, quem sabe se Joaquim Manuel Magalhães não estará a tentar ser um novo Herberto Helder ao, renegando todas as obras, inflaccionar os preços dos seus anteriores livros. Como diz uma sábia amiga minha, "sabe-se lá o que vai na cabeça de uma pessoa...."

José Saramago: Caim

A REDENÇÃO DO ASSASSINO

“Caim”, o mais recente romance de José Saramago não podia ter sido mais aproveitado pelos media, tendo, por muitos, sido inclusivamente recebido com uma estranha surpresa. O que acho estranho. Para ser mais imediato, poderia referir o romance publicado em 1991, “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” como romance de heresia, mas ao longo da bibliografia de Saramago, livro a livro, é frequente que este se manifeste claramente contra o catolicismo e, em última análise, contra a própria figura de deus.
É-me então difícil perceber o escândalo gerado por “Caim”. Escândalo maior foi, para mim, que no dia seguinte ao seu lançamento, o livro estivesse já a ser alvo de todos os ataques e todas as considerações, dado que, penso, um dia não será suficiente para ler, ou ler plenamente, este ou outro romance.

Outra questão que importa referir ao falar de “Caim” é a de todo o jogo de ataques e contra-ataques que o romance gerou.
Em entrevistas e depoimentos, o Nobel refere a bíblia como “um manual de maus costumes e um catálogo da crueldade”. Ora e isto, que poderia surgir como uma pequena observação da parte de José Saramago é, na verdade, uma das maiores matrizes de “Caim”.
Caim, assassino de seu irmão, e condenado por deus (Ou o senhor.) à errância durante toda a sua vida é, claramente, personagem central deste romance, mas não é a sua errância, o seu percurso, o verdadeiro tema deste romance.
A errância que José Saramago atribui a Caim é mais uma passagem pelos momentos bíblicos que, de facto, sustentam a ideia do “manual de maus costumes e catálogo da crueldade”. Por assim dizer, este é um romance principalmente argumentativo, onde Saramago prova, por A+B, e com toda a eficácia, essa sua opinião (Que, acrescento a título pessoal, corroboro por inteiro.).
Caim inicia o seu percurso nas terras de Nod, onde se envolve com Lilith, mas passa pela Torre de Babel depois desta ter ruído, presencia o quase sacrifício de Isaac por seu pai Abraão, a destruição de Sodoma e Gomorra, a desgraça de Job, etc.
Neste último caso, Job, homem próspero e fidelíssimo a deus, é vítima de todas as possíveis desgraças, impingidas por Satã na consequência de uma aposta com deus. A Torre de Babel foi destruída por deus para que os homens não pudessem atingir o céu. Abraão sacrificaria o seu filho para provar a sua fé em deus.
No particular caso de Job, intervém a figura de Satanás. E aí, Saramago não o coloca como antítese de deus, antes como um servo insubordinado.
Porque, ao longo de “Caim”, o verdadeiro antagonista de deus não é outro senão Caim. É Caim quem, na verdade, vê o suficiente para poder duvidar de deus, ou do conceito normalizado de deus. É Caim quem, em último caso, confronta deus com a sua crueldade, a sua frieza e a sua natureza megalómana e totalitária. Ou seja, uma natureza de ditador.
Mais ainda, Caim é confrontado com a duplicidade da sua relação com deus: que pacto foi este entre os dois, em que deus lhe diz que estará condenado a errar enquanto viver, mas que ninguém lhe fará mal, pois estará protegido pela marca negra na testa?
O deus que Saramago nos apresenta não é, pois, uma concepção gratuitamente análoga daquela que a sociedade em geral tem dele. Essa analogia é, efectivamente, muito bem sustentada: deus é um ser confuso (Por exemplo no seu pacto com Caim.), sedento de poder (Por exemplo, a conquista de Jericó) e de provas dele (O sacrifício de Isaac.), pouco inteligente por vezes (Ordenando a Noé que construísse a sua arca num vale, longe de água, onde, logo que viesse o dilúvio, a arca de afundaria.), e, acima de tudo, não é todo poderoso. Neste último aspecto, Saramago utiliza a história de que, na batalha contra os amorreus, deus fez o sol (Ou a Terra.) parar para perpetuar o dia e manter a batalha. Vale a pena reproduzir um excerto da conversa do senhor com Josué:
“Não posso fazer parar o sol porque parado já está ele (…) Algo se move realmente, mas não é o sol, é a terra. A terra está parada, senhor, disse Josué (…) se assim é, manda parar a terra, que seja o sol a parar ou que pare a terra, a mim é-me indiferente desde que possa acabar com os amorreus. Se eu fizesse parar a terra, não acabariam só os amorreus, acabava-se o mundo (…) Pensei que o funcionamento da máquina do mundo dependesse apenas da tua vontade, senhor, Já demasiado eu a venho excedendo (…) é que a vida de um deus não é tão fácil quanto vocês crêem, um deus não é senhor daquele contínuo quero, posso e mando que se imagina, nem sempre se pode ir direito aos fins, há que rodear (…)" [pág.124-125]
Na última das suas sequências, a que corresponde à arca de Noé, é que definitivamente “Caim” retira de Satã o peso do anti-cristo e a coloca sobre Caim, sendo este que, verdadeiramente, faz frente a deus e aos seus desígnios. No fundo, Caim, o assassino de seu irmão, acaba por perceber a insignificância do seu acto, face aos actos daquele que o castigou pelo seu crime.
Em última análise, mostra que deus não tem sequer poder sobre os actos dos homens, e muito menos conhecimento do futuro ou do destino, caso contrário, a condenação natural do Caim de Saramago teria sido a sua morte, e não a errância pelo tempo.


Como romance, “Caim” não desilude, mantendo-se dentro do ciclo restrito das melhores obras de José Saramago. Por um lado, alude à fase histórica dos romances iniciais (Como sejam “Levantado do Chão”, “Memorial do Convento” ou “O Ano da Morte de Ricardo Reis”.), mas, pelo tratamento que dá à história, mostra-se também muito próximo dos romances pós-modernos (Em que poderíamos incluir “Ensaio Sobre a Cegueira”, “Ensaio Sobre a Lucidez” ou “As Intermitências da Morte”.), dado o desenrolar praticamente livre de historicismos do romance, acrescido ainda de uma vertente altamente filosófica (Que poderemos reconhecer em “Todos Os Nomes” ou “O Homem Duplicado”.) que é toda a relação directa ou indirecta entre Caim e o senhor nos vários episódios do romance.
A única falha possível neste livro, será a diferença entre a premissa prometida pelo título, que nos relatasse a errância verdadeira de Caim, e “descambar” para uma errância conduzida por José Saramago. O que não tem que ser defeito, e, neste caso, resulta até bastante melhor.
De qualquer forma, a visão fria e crua de José Saramago sobre a bíblia, vem confirmar uma frase que Woody Allen escreveu há uns anos “Se deus existe, é melhor que tenha uma boa desculpa”.