terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Este ano


























Este ano cresceu de joelhos 
a noite conservou as quatro luas 
as crianças têm os seus cabelos 
seus gritos de paz intransmissíveis

Luiza Neto Jorge
Terra Imóvel
1964, ed. Portugália
fotografia minha (Âncora, Agosto 2013) sujeita a um filtro do Instagram

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Os catacteres góticos


é preciso precipitar o conhecimento da doença.
_entretanto muita nobreza e saltimbancos
como algas que a águas esbofeteia.
a matéria adultera-se dia a dia
recua a cartilhagem ocre das árvores
como uma sonoridade agressiva e impotente.
trompa anal do vento (vergonhas de gente com vergonha)
a ração descorada da tua pele de pêssego e de fases solares.

a primavera chega porque os fariseus a fazem fermentar
abre a boca e fecha os olhos faisões passeiam sobre os fruncos.
a manicure esfrega as pernas friorentas
e sugere um pouco mais de meiguice e má-vontade.
bendita a terra estéril e surda que não lhes paga.

letra e espírito das flores do desmaio.

Regina Guimarães
Abaixo da Banalidade, Abastança
1980, ed. Hélastre
pintura de Anne Bachelier

«É bom viver na terra?»


No parque, sobre a relva,
onde é tudo tão difuso,
eu não tenho relação
com a minha vida. Indistinto
entre as dezenas de pontos

que um mestre desconhecido
distribui por acidente
na tela crua da sorte,
não tenho nome ou idade,
nem sequer um coração

para sofrer outra ofensa:
nunca desci ao inferno
de um amor desenganado,
nada perdi que me fosse
precioso ou necessário

e de resto não conheço
os quatro cantos do medo,
nem tão-pouco me pertence
este modo de estar só
que inventei sem querer.

De seguro, por agora,
só tenho o corpo que ofereço
ao calor da primavera _
e nem me custa ser eu, se sou
também qualquer homem

de qualquer tempo e lugar
que alguma vez se deitou
sem cuidados ou remorso
entre as árvores enfeitadas
pela breve luz da tarde.

Rui Pires Cabral
Oráculos de Cabeceira
2009, ed. Averno
pintura de Yuri Leonov

O excesso da criação




















A penumbra é o movimento do poeta
atravessando a obra. Em cada poro
a sua respiração está na folha
entre a nervura do dedo pequenos sinais
despontam na visibilidade da terra

há uma seara extensa na penumbra
filamentos de rio, rosas
figuras móveis do meu corpo abrindo
todo se converte em folha
folhas, pedaços de lua, longe
mas está no movimento do poeta
multiplicar as sombras
que são o excesso da criação.

Rosa Alice Branco
Monadologia Breve
1991, ed. Limiar
desenho de Francesco Balsamo

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Passo num gesto


























Passo num gesto que eu sei
Deste mundo agoniado para o espaço
Onde sou quanto serei
No tempo que sobra escasso

No outro mundo sou rei
E o meu rosto de cristal e puro aço
É o espelho que forjei
Com suor pena e cansaço

E se o mundo que deixei
Tem as marcas desenhadas do meu passo
São baralhas que enredei
São teias e vidro baço

Tantas provas cá terei
Tantas vezes do pescoço solto o laço
Se me sangraram em rei
Aceitem a lei que eu faço

Vem a ser que o homem novo
Está na verdade que movo

José Saramago
Provavelmente Alegria
4a edição, Caminho, 1998
imagem de Miguel Leal

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Fuck Christmas I Got the Blues



Letra de Paulo Furtado
Do álbum 'Fuck Christmas, I Got the Blues' (2003)

domingo, 22 de dezembro de 2013

Memorial Temporário #2




''As virtudes da desadequação'', um texto meu sobre os Mumford & Sons que podem ler aqui.


terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Lana del Rey feat. Cedric Gervais: Summertime Sadness




Letra de Lana del Rey e Rick Nowels
Do álbum 'Born to Die' (a versão original)


(...)
Oh, my God, I feel it in the air
Telephone wires above are sizzling like a snare
Honey, I'm on fire, I feel it everywhere
Nothing scares me anymore

Kiss me hard before you go
Summertime sadness
I just wanted you to know
That, baby, you're the best
(...)

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

[Isto é o meu corpo]
























Isto é o meu corpo
isto é o meu sangue
a miséria sexual das missas
é a miséria sexual das discotecas
mas este e o melhor tempo
de sempre
ainda muito puritano
e nada pudico
é um tempo obsceno
mas dantes era muito mais obsceno
que farei eu com esta espada?
uma foice e um martelo
oulseiras anéis e gargantilhas
que farei eu com o meu eu?
bavarder bavarder bavarder
(que farei eu com este livro?
outro livro ainda o mesmo
que farei eu com este piano?
improvisos
que farei eu comigo?
ergo-me sento-me deito-me
e faço-me
que cada um tenha a sua casa
que cada um tenha o seu piano)

Adília Lopes
A Mulher-a-Dias
2002, ed. &etc
imagem de Christopher McKenney

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Memorial Temporário #1


''A expropriação da realidade'', um texto meu sobre o tríptico ''Plot Point'' do realizador belga Nicolas Provost, aqui.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Lenga-lenga


Maio, maio.
Tarde.
Vejo-me na rua.
Penso? muito pouco.
Terra escura, terra escura!
E soledade...
Pena?
De nada, de mim.
Mas desespero, fastio.
 
Soledade!
Terra escura.
Maio, maio...
 
Camions de presos,
numa rua parados.
Vazios, cheios?
Impenetráveis.
Vazias as ruas.
E as vistas...
Gastas, imutáveis!
Um rio antigo,
de aquário,
longe, estagnado.
As casas maciças,
impávidas, alinhadas.
 
Descidas, só descidas...
As mulheres, adamadas.
E eu só, só, só!
Sempre assim.
Tudo o mesmo,
o que foi.
Soledade, soledade...
 
As ruas com sêlo.
Características e incaracterísticas.
Quentes e escuras.
E eu hei-de morrer,
acabar de passar,
deixá-las.
E elas, ficar!
Sem nenhum mistério.
Corro nelas, como o seu sangue,
surdo, cego, interior.
Um sangue sem qualidade!
Desconsolado.
 
Há vida?
Não há, não a sinto.
Mas o mundo revolve-se.
Mundo de insectos!
Vai aqui uma alma,
como o sangue das ruas,
perdida,
desemparelhada,
para o nada...
 
As ruas, golfos!
De um lado e outro a vida,
mas dissimulada, aberrativa.
E eu que sou o seu sangue,
correndo,
sem olhos nem sentidos....
Afrontada,
apertada, desenganada.
 
A de sempre aqui vai,
a sem coragem!
Maio, maio...
Uma tarde como estas,
tão velha e tão simples,
me ofende e me angustia.
 
Miseráveis, miseráveis!
Tomais a vida vossa

e não me deixais nada!
Sem vos ver, pressinto-vos...
 
Estas ruas, estes golfos,
que sempre me amarguraram...
me invadiram de melancolia,
tão cara!
 
Humilde, hei-de morrer
e elas continuar...
a receber e a desprezar...
Hei-de passar
sem reconhecer a vida,
a esquiva,
toda a sua acuidade!
De nada me desobrigarei,
não trouxe mensagens...
Vadio.
 
Passarei como o sangue,
indiferente, inconsciente,
repetida e esquecida.
Passarei.
 
Mundo de cães,
mesquinho e utilitário,
como me olhaste?
Nem me olhaste,
tudo me roubaste,
de tudo me desenganaste.
Insípido, insípido.

Irene Lisboa
in «Seara Nova»
Junho de 1938
pintura de Jeremy Enecio

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Coisas minhas III


ANTES DE PARTIR


Sob o último céu que vejo daqui
espero  as luzes da rua.
As casas enterram-se no chão
até serem uma mancha na retina.

Estou preso à estrada,
a fundir-me no alcatrão.

Aprendi o nome das ruas, fixei
algumas árvores,
deixei-me pertencer a este lugar,
adiei a partida.

Nesta última noite chove, ainda
é verão. Parece-me que estou menos só,
como se a noite reagisse à tristeza
e chorasse também.

No meu choro tento memorizar
certos detalhes, uma cor, um resto
de tinta a descascar na parede. Mas é inútil.
Devia pensar que partir será
chegar a outro sítio. Mas a ausência
e a última visão da minha

casa dá lugar só às trevas.

[João Borges: Porto, Julho 2009]
imagem de Helena Almeida

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

O que aponto



1
Conversa muda...
A falada cessou, cessara.
Começou a muda, encadeada, sem presenças, solitá-
ria, gostosa, inteligente, reminiscente, recriada.
Ai, as mãos...
O pensamento, ou aquilo que durante os silêncios
connosco fala, evocava as mãos, regalava-se de não sei
que especiosos contactos!
Os que pouco antes se tinham falado, entendidos e
afectuosos, cautelosos...
Falariam, falavam... Mas o que deles mais deli-
cado e mais secreto falava eram as mãos... ligeiras,
tocando-se invisivelmente, buscando-se.
E ainda agora elas falavam, se tornavam lembra-
das! Carnais e etéreas. Irreais e ligadas!

Pois sim.
Mas não será o meu pensamento que tudo materia-
liza, ou inventa?
Impulsos, movimentos, transposições...
Que prolonga as ínfimas sensações, tais, que um
entendimento brusco e claro anularia?
Pensamento! Que necessidades as tuas, e que pra-
zeres! Reanimares e dares extensão a um quasi nada,
aparente...


2
Subtil, como um papel, uma pena, uma folhita de
árvore, um trapo, eu seja, ou fosse!
E não o sou?
Serena, prudente, desconfiada...
Sou.
Só a minha agastada, descolorida serenidade não
tem, não pode ter, nunca terá aquela mansidão, aquele
ar leve, indiferente, descansado, aquele poisar da doce
pena...
A minha serenidade é... e cada vez mais, daqui
para o resto, para o meu sempre, uma serenidade de
decadência.


3
Belo homem, arisco, violento!
A fala seca, imodulada; o olhar claro; e uma agi-
tação, uma irregularidade, uma leonia!
Animal de presa.
Mas eu, a minha imaginação ou o meu corpo, eu,
tão fria!
Pessoa que nada ufana, nada agita, nem sequer
quebranta...
Mas isto percebendo, sofro, dá-me dor!
Espírito... trabalhas sempre, e talvez te contentes,
te iludas como um delicado.
Pobre! Mesquinho! Impotente!
Relojoeiro, que te distrais e te ocupas com o isocro-
nismo e a finura das rosas, agulhas, pinças, lentes...


4
Pela orla marítima tranquila, tranquila, os namo-
rados, passageiros, despreocupados, de mãos dadas, ou
passadas pelas cintas, pelos ombros, chegados...
Os namorados, tão jovens! renovam não sei que
mitos.
Pela areia húmida, para o sul, para o norte...
Elas, tão finas e castas!
Tantas perspectivas...

Tarde amável, mas indistinta, do acaso, tirada sem
propósitos do calendário.
Velha... É velha a terra, a areia, tudo isto. Mais
eu!
Novos, e espirituais, só os namorados.


5
Eu cantava, havia de cantar...
Mas com que voz?
Falta-me a voz, e os temas.

Eu havia de cantar briosamente (se tivesse voz), o
amor!
Nunca um amor apoetado e correntio...
O amor! O êxtase, o arrebatamento! Ou talvez só
a ternura.

Sons de música...
É a telefonia das minhas vizinhas, das meninas boni-
tas.
São realmente bonitas.
Pois assim, ao som de uma valsa lânguida, de uma
valsa velha e excitante, eu havia de cantar, glosar, as
fantasias, os sonhos de dois jovens pré-amantes.

Havia de cantar?
Não!
Chorar, chorar!
O meu desejo verdadeiro é de chorar, por querer
cantar sem poder.

Irene Lisboa
in «Presença» nº 50
desenho de Robbert Van Wynendaele

domingo, 10 de novembro de 2013

Je voudrais pas crever

 
Je voudrais pas crever
Avant d'avoir connu
Les chiens noirs du Mexique
Qui dorment sans rêver
Les singes à cul nu
Dévoreurs de tropiques
Les araignées d'argent
Au nid truffé de bulles
Je voudrais pas crever
Sans savoir si la lune
Sous son faux air de thune
A un coté pointu
Si le soleil est froid
Si les quatre saisons
Ne sont vraiment que quatre
Sans avoir essayé
De porter une robe
Sur les grands boulevards
Sans avoir regardé
Dans un regard d'égout
Sans avoir mis mon zobe
Dans des coinstots bizarres
Je voudrais pas finir
Sans connaître la lèpre
Ou les sept maladies
Qu'on attrape là-bas
Le bon ni le mauvais
Ne me feraient de peine
Si si si je savais
Que j'en aurai l'étrenne
Et il y a z aussi
Tout ce que je connais
Tout ce que j'apprécie
Que je sais qui me plaît
Le fond vert de la mer
Où valsent les brins d'algues
Sur le sable ondulé
L'herbe grillée de juin
La terre qui craquelle
L'odeur des conifères
Et les baisers de celle
Que ceci que cela
La belle que voilà
Mon Ourson, l'Ursula
Je voudrais pas crever
Avant d'avoir usé
Sa bouche avec ma bouche
Son corps avec mes mains
Le reste avec mes yeux
J'en dis pas plus faut bien
Rester révérencieux
Je voudrais pas mourir
Sans qu'on ait inventé
Les roses éternelles
La journée de deux heures
La mer à la montagne
La montagne à la mer
La fin de la douleur
Les journaux en couleur
Tous les enfants contents
Et tant de trucs encore
Qui dorment dans les crânes
Des géniaux ingénieurs
Des jardiniers joviaux
Des soucieux socialistes
Des urbains urbanistes
Et des pensifs penseurs
Tant de choses à voir
A voir et à z-entendre
Tant de temps à attendre
A chercher dans le noir
 
Et moi je vois la fin
Qui grouille et qui s'amène
Avec sa gueule moche
Et qui m'ouvre ses bras
De grenouille bancroche
 
Je voudrais pas crever
Non monsieur non madame
Avant d'avoir tâté
Le goût qui me tourmente
Le goût qu'est le plus fort
Je voudrais pas crever
Avant d'avoir goûté
La saveur de la mort...
 
Boris Vian
Je voudrais pas crever
1962, ed. Jean-Jacques Pauvert
fotografia de Francesca Woodman
 

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

o gafanhoto andrajoso

De certo ponto de vista, a pintura sofreu, desde os Egípcios e os Greco-Romanos, várias evoluções mas poucas revoluções. Quando a obra de Giotto experimenta nervosamente a perspectiva, sabemos que uma revolução se avizinha mas, ainda antes do Renascimento, essa evolução seria concretizada não por italianos, mas pelo grupo de pintores ligados à chamada Escola de Brugge que hoje conhecemos como Primitivos Flamengos. Para estes pintores, o domínio da perspectiva foi pouco mais que um instrumento técnico para algo bem mais revolucionário, que foi a substituição do realismo pelo real. Mesmo nos frequentes temas religiosos, os trabalhos de Robert Campin/ Mestre de Flémalle, de Rogier Van Der Weyden ou de Jan Van Eyck, inauguram um senso do real, um elogio do quotidiano que mantém a mística em quadros pouco distanciados da realidade do dia-a-dia. Particulamente Jan Van Eyck, com o seu genial 'Casamento dos Arnolfini', virou costas à mitificação e trouxe a atenção sobre a dignidade e a complexidade do quotidiano.
Mas noutros trabalhos, aparentemente mais circunspectos, o pensamento de Van Eyck não se revela menos inovador. Os retratos individuais que fez apresentam-se-nos segundo uma tradição burguesa, mostram-nos pessoas que ora sabemos ora não sabemos quem são, mas que invariavelmente nos são mostradas como pessoas distintas. A partir dessa aparência, Van Eyck sabe manipular elementos e símbolos para uma compreensão do estatuto e ocupação da pessoa, por exemplo. O retrato individual de Giovanni di Nicolao Arnolfini mostra-nos precisamente isso _o traje escuro denuncia o homem abastado por exemplo (uma vez que só os muito ricos conseguiam pagar o dispendioso tecido escuro). Os fundos negros são diferentes daqueles que se popularizariam no Renascimento, em que o retratado surgia em frente de uma paisagem que aludia ao seu poder sobre determinado espaço. Nos retratos de Van Eyck os retratados dispensam a paisagem: têm o poder por si mesmos.
No entanto, os retratos individuais mais interessantes de Van Eyck terá pintado não chegaram aos dias de hoje. Os polémicos retratos de Isabel de Portugal ocupam um lugar especial no conjunto da obra de Van Eyck. Mais do que serem encomendas, eram uma missão diplomática.
Mudando-se de Lille (actualmente pertencente a França) para Brugge, Van Eyck passa a trabalhar para o corte de Filipe III, Duque de Borgonha, do Brabante e dos Países Baixos Borgonheses. O Duque preparava para o ano de 1428 as suas terceiras núpcias, com Isabel de Portugal, filha de D. João I. A viagem de Van Eyck a Lisboa teve portanto esse propósito _o de retratar Isabel, para que Filipe III pudesse ter uma ideia do aspecto físico da sua pretendente.
Seis séculos depois, restam-nos trabalhos de outros pintores, copiados ou pelo menos baseados nos originais de Van Eyck. Nos três, Isabel surge como uma mulher elegante, bem vestida, evidenciando luxo e requinte. Mas nos três, o que vemos é um rosto demasiado alto, um nariz desproporcionalmente protuberante, uns olhos pequenos de olhar conspícuo e um queixo aguçado que evidencia demasiado a boca.
 
 
 
Particularmente o retrato em que a infanta surge de três quartos (e de que temos apenas uma cópia feita na oficina de Van Der Weyden) denuncia uma espécie de sobrecompensação. Isabel parece uma espécie de gafanhoto andrajoso, a beleza diáfana das suas vestes, o brilho rigoroso dos véus parecem tentar compensar o seu rosto que tem algo de insecto. De um insecto sereno de sorriso contido que, apesar de tudo, indica uma mulher escorreita e submissa que conviria àquele início do século XV num casamento entre nobres. O mesmo acontece com o retrato em que Isabel surge quase de perfil (existente apenas uma cópia do século XV), plasticamente menos conseguido, mas igualmente rigoroso em mostrar as características físicas da infanta.


Num outro retrato (de que temos uma cópia coeva), metade de um díptico que, do outro lado, apresenta Filipe III, Isabel parece mais jovem e sorridente, mais virginal quase. Não tem o ar adulto e maduro dos retratos que a mostram até à cintura, mas continua envolvida numa série de véus luxuosos e minuciosamente decorados que, tapando-lhe o cabelo, também afogam o seu rosto numa profusão de ornamentos e decorações que a defendem não de parecer feia, mas de parecer apenas feia.
Não é de assumir que a forma verista como Van Eyck pinta Isabel a tenha prejudicado. Filipe III casaria efectivamente com ela, dando até origem à Ordem do Tosão de Ouro, para assinalar a união entre as duas cortes.
Passada a missão diplomática, fica acima de tudo o significado daqueles retratos. Se Jan Van Eyck e aqueles que reproduziram os seus retratos, foram rigorosos na representação do real, sabemo-lo graças aos retratos de Isabel. Seria de esperar que, naquela missão diplomática, para viabilizar um casamento entre dois desconhecidos, Jan tivesse embelezado a infanta, que tivesse disfarçado os seus defeitos. Mas o pintor não fez isto. Ele mostra uma Isabel digna e elegante, mas não ignora a realidade: o seu rosto tem delicadeza mas é tosco e desproporcional. Ela tem outras qualidades, de gosto, por exemplo, é certamente de uma corte abastada, mas a beleza física natural não a contemplou.
Van Eyck não abdica do real, não o força, ainda que o teatralize. E essa foi a verdadeira revolução que representam os Primitivos Flamengos. O domínio da perspectiva que Giotto inicia em Itália não tem grande interesse por si só. O grande interesse da perspectiva é que a saída do bidimensional para o tridimensional prevê uma maior aproximação ao real. E essa aproximação dá-se na Flandres muito mais do que em Itália, concretiza-se esplendidamente no trabalho de Van Eyck, mais do que noutro qualquer.
A prova disso está nos retratos de Isabel de Portugal, que recusam manipular a verdade, preferem o gafanhoto andrajoso que Filipe haveria de conhecer à princesa endeusada que nunca existiu.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Jeito de escrever


Não sei o que diga.
E a quem o dizer?
Não sei que pense.
Nada jamais soube.
Nem de mim, nem dos outros.
Nem do tempo, do céu e da terra, das coisas...
Seja do que for ou do que fosse.
Não sei o que diga, não sei o que pense.
Oiço os ralos queixosos, arrastados.
Ralos serão?
Horas da noite.
Noite começada ou adiantada, noite.
Como é bonito escrever!
Com este longo aparo, bonitas letras e o gesto _o jeito.
Ao acaso, sem âncora, vago no tempo.
No tempo vago...
Ele vago e eu sem amparo.
Piam pássaros, trespassam o luto do espaço, este sereno luto das horas.
Mortas!
E por mais não ter que relatar me cerro.
Expressão antiga, epistolar: me cerro.
Tão grato é o velho, inopinado e novo.
Me cerro!
Assim:
uma das mãos no papel, dedos fincados, solta a outra, de pena expectante...
Uma que agarra, a outra que espera...
Ó ilusão!
Me cerro.
E tudo acabou, acaba.
Para quê a busca das coisas novas, à toa e à roda?
Silêncio.
Nem pássaros já, noite morta.
Me cerro.
Ó minha derradeira composição! do não, do nem, do nada, da ausência e solidão.
Da indiferença.
Quero eu que o seja! da indiferença ilimitada.
Noite vasta e contínua, caminha, caminha.
Alonga-te.
A ribeira acordou.

Estrela, 1950

Irene Lisboa
Vértice nº 109,
Setembro de 1952
pintura de Miguel Leal

terça-feira, 29 de outubro de 2013

A matter of pop

Às vezes para nos fazer ver determinada questão de uma forma diferente, basta que alguém saiba dar um ou dois argumentos realmente lógicos. Foi o que aconteceu comigo em relação à cultura pop, quando lia, recentemente, 'Vamps & Tramps' de Camille Paglia. Eu sou uma dessas pessoas que Paglia acha inacreditáveis, que não tem televisão nem ouve rádio, que consulta apenas alguns sites e blogs muito específicos. Por outras palavras, estou, intencionalmente, um pouco distanciado da cultura pop. Mas entendo o ponto de vista de Paglia. A cultura pop é sintoma e consequência de um pensamento geral, é uma forma de compreender uma grande massa de indivíduos. Direi um pouco distanciado, e não totalmente, porque creio que é impossível que alguém esteja totalmente distanciado dela. Se há característica que define a pop é que ela prolifera de tal forma que é impossível evitá-la de todo. Na música principalmente. 
Aliás, a minha aversão pela pop começa com dois pontos: primeiro, a obra de Andy Warhol que, por mais que seja interessante enquanto atitude, enquanto arte é, quanto a mim, uma das obras mais sobrevalorizadas de todos os tempos: parece-me um trabalho fútil cujo único objectivo é a rentabilização, uma pintura esvaziada de conteúdo que se contenta em ser uma prostituta do capital. Nisto aliás, o trabalho de Andy Warhol é um completo estandarte de tudo o que a pop é, e também daquilo que me faz detestá-la. O que nos leva ao segundo ponto: a música. Eu cresci com o surgir de cantoras como Britney Spears e Jennifer Lopez, assisti à ascensão e queda do conceito de girls-band e boys-band, com as últimas glórias mal conquistadas das Spice Girls e dos Backstreet Boys, tinha colegas na escola que sonhavam namorar com o Nick Carter e que dançavam músicas das Destiny's Child. Tal como a obra tutelar de Warhol, esta música tem em vista sempre o consumo, por norma as letras eram superficiais, quer cultivassem o power-positive-thinking, quer apresentassem queixas sobre amores mal resolvidos, recorrendo sempre às mesmas ideias e às mesmas rimas, acompanhadas de ritmos dançantes e catchy com refrões orelhudos, ou então melódicos e envolventes que proporcionassem uma meditação superficial. Não se trata tanto de despertar sentimentos ou ideias, ou de criar uma obra de arte, quanto se trata de criar um objecto vendável, o mais vago e óbvio possível, para garantir que um grande número de pessoas se identificará com ele. Precisamente a falta de conseguimento artístico, a falta de risco e a baixa criatividade me separaram do pop. A estranheza, a poética e a intensidade, encontrei-as sempre noutros géneros com os quais me conseguia identificar, porque, apesar de tudo, é ainda disso que se trata: ficamos ou não frios perante uma canção?
Se não fosse Camille Paglia, provavelmente eu nunca teria sequer tentado encontrar um outro lado para essa música que me deixa quase sempre indiferente.

1. A desculpa do coração

O pop de hoje não é o pop de há três ou quatro décadas atrás, que está sob o microscópio de Paglia em 'Vamps & Tramps', colectânea de ensaios editada no início dos anos 90. Antes, portanto, do nascimento de certas estrelas pop que são hoje os seus nomes de primeira água. Gostemos ou não, não existe hoje um único nome que tenha o peso que Madonna teve, logo desde o início. Para Madonna (mais do que para qualquer outro), a música não se ficava pelos clichés mais simples, o seu trabalho comportava uma dimensão subversiva cuja consequência última era a política e que, hoje, se encontra completamente ausente da música pop. Talvez porque essas já não são as preocupações do público-alvo. As mulheres acreditam que já conquistaram a plenitude da sua libertação sexual e da sua identidade face ao mundo, por exemplo, o que não acontecia quando Madonna lançou 'Like a Virgin'.


Eu creio, aliás, que nunca houve no pop ninguém tão profundamente inteligente quanto Madonna. Ainda que eu não tenha uma apreciação especial do seu trabalho, reconheço que a sua postura combativa e politizada foi sempre canalizada para a música com inteligência e coragem. Mais ainda, a conquista do estatuto de rainha da pop foi utilizada como forma de fazer uma diferença social. Enquanto ícone, Madonna soube usar a sua importância a favor de várias causas e defendeu ideias que, na altura, só poderiam ser aceites se advogadas por alguém que o público admirava com o fervor que a admirava a ela. O exemplo do álbum de fotografias 'Sex' (1992) que Madonna publica com fotografias de Steven Meisel é extraordinário: por mais que precisamente Camille Paglia discordasse de mim, eu diria que aquele livro foi a subversão certa no momento certo, produziu um choque completamente transformador que só poderia ser assumido por um artista destemido e preocupado em utilizar a sua fama em favor de uma ideologia.
Hoje não temos Madonnas. Uma observação muito geral do universo pop actual mostra-nos que a política e o posicionamento ideológico, mesmo que existam no discurso dos cantores, estão ausentes da música. Mais do que nunca, impõe-se o problema das vendas, e a afirmação politizada que causou tantos dissabores da Madonna é um risco que ninguém deseja correr.
A pop hoje tenta ir de encontro às angústias e alegrias adolescentes, apela à frivolidade disfarçada do mundo, neutraliza-se politica e socialmente através da desculpa do coração. E se os problemas emocionais são comuns em quase todos os géneros de música, o grande problema da pop, que é também o seu segredo para o sucesso, é a superficialidade com que esses problemas são tratados. Pensemos por exemplo nas letras previsíveis de uma Taylor Swift (que de um início country se tem desviado cada vez mais para a pop) ou de um Chris Brown e veremos como tudo no seu discurso é vago para ser abrangente. É uma contenção de riscos, a especificidade eliminará ouvintes, enquanto que um discurso mais lacónico acabará por ir de encontro as vários desgostos amorosos, independentemente dos seus contornos.
Se Kate Bush ou Joni Mitchell alguma vez foram verdadeiramente pop, então os seus herdeiros migraram para o folk, para a alternativa, para o indie e para o rock. Raros artistas verdadeiramente pop abrem o seu coração de uma forma mais detalhada, o que gera uma crise de conteúdo. A pop, neste momento, não tem assunto, faz-se com cada vez mais futilidade, uma futilidade que, ainda por cima, quase sempre é dissimulada de várias formas, disfarçando-se de sinceridade.


2. a futilidade sai do armário

Não é sempre assim, no entanto. Artistas pop vai havendo que conseguem assumir a sua falta de profundidade. A música pode não deixar de ser superficial, mas tem a decência de não se fazer mascarar, e tem ainda um valor muitíssimo mais alto: é sintoma fortíssimo do pensamento mais comum. 


Para mim, não haverá melhor exemplo do que o de Ke$ha. O primeiro álbum, 'Animal' veio a lume em 2010, e seguiram-se o EP 'Cannibal' (2010) e o álbum 'Warrior' (2012). Ke$ha vive num mundo de unicórnios e discotecas, faz a constante apologia do álcool e do glitter, apresenta-se com uma estética colorida e excessiva, ainda que, de party-girl no seu primeiro álbum esteja a sofrer uma espécie de transformação num contrasenso pop-hipster, que tem tornado a sua sonoridade bastante mais interessante, como atestam canções do último disco, caso de Supernatural. No entanto, o maior logro da sua música tem sido, desde o início, a sua seriedade em assumir que se trata de um universo fantasioso e supérfluo, não se esconde atrás de supostos sofrimentos. O seu primeiro single, Tik Tok falava de um saída louca à noite, tal como o segundo, Blah Blah Blah e o quarto, Take it Off. Pelo caminho, fica Your Love is My Drug, uma canção de amor descomplexada e festiva, que, em termos de som, não se afasta nada das restantes. Os dois singles do EP são também sobre grandes saídas a bares, We R Who We R e Blow, sendo que, neste último, Ke$ha apresenta um videoclip efabulado que não faz, declaradamente, sentido nenhum: apenas tenta (e consegue, sejamos sinceros) ser divertido. Em 'Warrior', regressamos aos grandes temas da festa com Die Young, C'Mon e Crazy Kids, contando a segunda com a participação de Iggy Pop.
A sua música tem qualquer coisa de opiáceo enquanto música dançável, a sua mensagem é completamente oca. O facto de uma mensagem assim chegar a tanta gente só nos mostra precisamente que a festa é a grande preocupação do público-alvo, no fundo. Isto porque Ke$ha não tem sequer a faceta erotizada que Madonna tinha: pelo contrário, a questão do erotismo não tem grande presença nesta música, a figura de Ke$ha é mais fantasista do que sexualizada. Trata-se de uma ideia de sair e divertir-se, com a diferença de que isto se faz todos os dias ou, pelo menos, em todas as canções. 
Argumente-se ainda que o último álbum se afasta em termos sonoros em direcção a uma electrónica irregular, que lhe dá realmente uma roupagem um tanto hipster. Ainda assim, a mensagem mantém-se.

3. a questão da voz

Bem diferente é a proposta de Christina Aguilera, que muitos apontam como a única digna sucessora de Mandonna, esse espectro eterno. Concordo. Isto porque Aguilera não só se revela uma artista de uma versatilidade impressionante, como é das poucas artistas pop que mostra uma inteligência e uma sensibilidade acima da média.
O primeiro álbum, homónimo, de Christina Aguilera foi editado em 1999 e valeu-lhe o Grammy para Melhor Artista Revelação. Depois de gravar uma versão desse álbum em castelhano, 'Mi Reflejo' (2000), Aguilera optou por uma polémica cisão com os seus primeiros trabalhos. Escolheu novos produtores, recusou-se a continuar a interpretar canções escritas por outros compositores e passou a ter controlo sobre a sua imagem, essa questão tão preponderante na pop. Por assim dizer, tomou as rédeas da sua própria carreira. Quem ouve 'Stripped' (2002) não reconhece a Christina dos primeiros álbuns. O som é maturado, as letras têm uma qualidade surpreendente e a colaboração de nomes como Linda Perry, Lil'Kim ou Floria Sigismondi fazem uma certa diferença. Mas o que mais impressiona em 'Stripped' é a voz fortíssima de Aguilera que é finalmente valorizada. Na pop actual não há voz como a dela, e talvez nem mesmo na história da pop tenha havido voz mais intensa. Ouvi-la em canções como Fighter, Cruz ou Beautiful é entender como efectivamente estamos perante uma cantora a sério, com uma voz matizada perfeitamente capaz de fazer sentir, essa capacidade tão pouco importante para a pop. E em Can't Hold Us Down, Christina assume também uma faceta mais politizada, quando mostra que as mulheres, de facto, ainda não conquistaram a sua plena liberdade na sociedade. Fá-lo de forma simples e directa, mas vale enquanto gesto minimamente consciente.
Após um hiato de quatro anos, Christina mostra uma vez mais a sua versatilidade quando lança 'Back to Basics', um álbum onde assume as suas influências, ligadas ao jazz e à soul. Não caiu bem ao público, o álbum foi dos menos vendidos da sua carreira, mas ficou provada a cultura de Aguilera e a sua capacidade para trazer novos sons ao pop, como vemos por Ain't no Other Man e Hurt, uma canção que contraria precisamente a tendência básica da pop para não ser específica em nada. Trata-se de uma canção dedicada ao pai, com quem Christina tinha uma relação conflituosa. Por volta da mesma altura, Kelly Clarkson lançou uma canção, Because of You, que, pelo vídeo, percebíamos tratar-se de uma queixa familiar. A diferença é que Christina fala dos seus fantasmas com uma sinceridade desarmante, ao passo que a canção de Clarkson podia perfeitamente ser dirigida a um namorado maldoso.
'Bionic' (2010) e 'Lotus' (2012) são um regresso a uma pop mais ligeira, que mesmo assim se expressa com garra, com canções como Not Myself Tonight e Your Body. Mais ainda, em termos de imagem, Christina apresenta-nos videoclips de muita qualidade, bem coreografados e, no caso de Your Body, um dos melhores videoclips pop alguma vez realizados, com uma ironia e uma subtileza assinaláveis.


Num lado diferente da pop encontramos Adele, com os seus dois álbuns '19' (2008) e '21' (2011). O grande ponto de vantagem de Adele foi sempre a voz, que tornou grandes sucessos canções de amor que não eram dançáveis nem minimamente upbeat, como Chasing Pavements, Rolling in the Deep, Someone Like You ou Set Fire to the Rain. Quase todas as canções de Adele falam de amores mal vividos, mas os temas da separação e do desgosto são aqui abordados com uma crueza que nos atinge. Sendo de certa forma uma estrela pop, será igualmente verdade que Adele é vendável porque tem uma espécie de público que a tem como cantora de culto, e esse público está tanto nos ouvintes de pop como em não ouvintes de pop. A sua música consegue atravessar essa fronteira, porque é tão simples e forte que acaba por se demarcar das piores facetas da pop, que a tornam detestável aos olhos de muitos.
Outra coisa que impressiona no caso de Adele é o problema da imagem. Apesar de bonita, Adele é gorda, veste-se quase sempre com um mau-gosto que impressiona e nos seus videoclips apresenta-se tal como é, sem grandes produções e sem omissões. Isto já lhe valeu algumas polémicas, das quais sai quase sempre vencedora, como aconteceu com os infelizes comentários de Lady Gaga, que a criticou por ter excesso de peso. Mas o que Adele conseguiu é uma vitória astronómica, como o foi o sucesso que uma mulher latina como Jennifer Lopez conseguiu mal lançou 'On The 6' (1999). Adele destruiu a ideia de que uma cantora só se consegue tornar estrela pop se tiver um corpo escultural e uma apresentação provocante. Ela é a diva wagneriana de conservatório que decidiu experimentar a pop, assume o seu desencaixe e é admirada por isso. Com Adele, a questão do corpo voltou à ribalta e a música foi o que verdadeiramente triunfou: é idiota rejeitar uma cantora cujas canções são tão boas apenas porque é gorda. Mais do que ser um preconceito, o excesso de peso é um verdadeiro pecado social, uma falha imperdoável. Quem melhor que uma artista pop brutalmente bem-sucedida para vir pôr essa ideia em causa? Tendo eu, até aos 13 anos, sofrido de um grande excesso de peso, admiro mais ainda a personalidade de Adele. Ela quebrou o tabu do peso, forçou o público a admirá-la pelo seu talento enquanto cantora e compositora em vez de a desprezar pela sua imagem. Não estou certo que tenhamos encontrado maior desafio desde que Madonna impôs a mulher como ser sexual.

4. as raízes e as influências

Acima falei de Jennifer Lopez, cujo primeiro álbum, editado em 1999, lhe granjeou um reconhecimento e um estatuto absolutamente à-parte de tudo o resto. Até aos dias de hoje, J.Lo continua a ser uma das mais respeitadas artistas pop, por mais que mude de estilo visual e sonoro, continua a chamar a atenção, produz clássico pop atrás de clássico pop e abriu o caminho a uma série de latinas e latinos na grande indústria pop dos Estados Unidos. Antes dela, talvez só Gloria Estefan tivesse conseguido este tipo de reconhecimento, mas é preciso lembrar que a pop propriamente dita, nunca interessou a Gloria.


Shakira era já uma cantora conceituada na América Latina quando gravou o seu primeiro álbum em inglês. Na bagagem trazia já dois álbuns de originais, dois álbuns de adolescência rejeitados e um álbum ao vivo que lhe valera o Grammy Latino de Melhor Álbum do Ano. Não era uma principiante quando 'Laudry Service' viu a luz do dia em 2001 e se tornou um dos maiores sucessos pop de todos os tempos. Esta rapariga que se apresentava fora da América Latina com Whenever Wherever era tudo menos vulgar. A sua música, mesmo cantada em inglês com letras simples mas não de todo desprezíveis, era declaradamente de raiz latina, os seus videoclips tinham pouquíssimo artifício, não se apresentava com bailarinos nem com grandes coreografias: sozinha, com o seu corpo bonito mas frágil, parecendo dançar instintivamente, ela tinha uma sensualidade que dispensava uma grande produção, era cativante e autêntica. Os singles seguintes, Underneath Your Clothes, Objection (Tango) e The One ajudaram a assimilar o sucesso do primeiro álbum, e a eles seguiu-se um single em castelhano, Que Me Quedes Tu, uma balada belíssima, que anunciava aquilo que o álbum seguinte confirmaria: que o sucesso em inglês não fez Shakira abdicar das suas origens latinas. Pelo contrário, desde 2001, Shakira lançou mais dois álbuns em inglês e outros dois em castelhano. E terão sido precisamente as suas raízes latinas e o facto dela misturar muitas vezes as duas línguas até nas suas canções mais badaladas, que lhe garantiram um lugar muito especial dentro do pop. Ela é reconhecida como autora e intérprete de boas canções pop, comunica determinadas emoções entre a balada e a música dançável, e é igualmente competente em ambos os estilos e em ambas as línguas. Mesmo sem ter voltado a atingir o pico de vendas que foi 'Laudry Service', Shakira, sabemo-lo hoje, é uma artista de culto para um público bastante alargado que admira a sua naturalidade e entende a sua necessidade de liberdade linguística e de sonoridade.


O caso de Rihanna, nascida nos Barbados, não é exactamente o mesmo. O seu começo, com os álbuns 'Music of the Sun' (2005) e 'A Girl Like Me' (2006) não faziam prever uma artista pop particularmente diferente. Ainda que em S.O.S., single do segundo álbum, ela parecesse ter qualquer coisa de original, nada nela fazia prever mais que um sucesso temporário para Rihanna. 'Good Girl Gone Bad' (2007), por mais que tenha sido bem-sucedido, era um trabalho absolutamente aborrecido que não nos mostrava que Rihanna fosse cantora alguma de especial. O álbum seguinte, 'Rated R' (2009), ainda que se tivesse apresentado com um single interessante, Russian Roulette, acabava por falhar redondamente em produzir mais alguma canção interessante. Parecia que Rihanna nunca seria uma cantora pop minimamente surpreendente quando, em 2010, ela lança 'Loud'. Neste álbum, Rihanna aceitava uma série de influências, afro e jamaicanas, que a tornavam de certa forma invulgar. Mais ainda, é neste álbum que consegue, pela primeira vez, chocar. Depois dos singles Only Girl (In the World), a sua primeira canção verdadeiramente boa, e  What's My Name, Rihanna vê o video de S&M censurado por apresentar referências explícitas a práticas sadomasoquistas. A canção, em si, continuava a linha do primeiro single, era uma canção pop obscura e no entanto bastante animada e violenta. As polémicas continuariam com o vídeo de Man Down onde Rihanna aparece a alvejar um homem que a havia violado. Nesta canção, a referência jamaicana traz um som estranho mas contagiante, que Lil'Kim soube aproveitar numa versão que faz desta canção, Cheating.
No seu trabalho de 2011, 'Talk That Talk' Rihanna regressa às polémicas com o vídeo de We Found Love, uma das suas melhores canções, produzida por Calvin Harris. Sendo uma canção de discoteca, acaba por soar extremamente bem, a letra triste contrapõe-se com suavidade ao ritmo acelerado e Rihanna mostra, uma vez mais, a sua capacidade para as canções estranhas.  Do mesmo álbum, merece referência Where Have You Been, onde a electrónica encontra um ritmo afro que cabe muito bem à voz anasalada de Rihanna, que continua a ser um dos seus maiores pontos de interesse.


5. o problema do renascimento

Uma das capacidades cruciais para a pop é a sua capacidade de reinvenção. A maneira mais eficaz de manter o público interessado em alguém é que esse alguém seja camaleónico, e seja capaz de ser o mesmo, nunca sendo igual. Quem via Justin Timberlake nos seus tempos dos 'Nsync, uma boys-band de sucesso na primeira vaga de boys-bands e girls-bands (a segunda está a ser agora, com os One Direction e os The Wanted), nunca diria que, mais tarde, ele se tornaria um grande músico pop. Ainda que 'Justified' (2002) fosse ainda inteiramente refém da experiência com os 'Nsync, no seu segundo álbum, 'FutureSex/ LoveSounds' (2006) Timberlake revela-se bastante competente enquanto performer e até, por que não dizê-lo?, enquanto autor de canções com série qualidade pop. Com canções como Sexyback ou What Goes Around Comes Around, onde a sensualidade masculina é assumida e louvada e a voz algo andrógina de Justin encontra a perspectiva certa, ele torna-se o derradeiro artista pop masculino, justifica com mais do que o seu aspecto físico o estatuto de sex-symbol e demonstra-se oportuno e inteligente naquilo que faz.  O mais recente 'The 20/20 Experience' (2013) confirma precisamente tudo isto, é um álbum discreto, ligado à soul e a um sexy-hip-hop, influências que paralelamente estão sendo exploradas, com resultados mais interessantes ou menos, por outros como Bruno Mars e Chris Brown.
E, de facto, Timberlake consegue fazer aquilo que outros, na mesma situação, não conseguiram. Basta pensarmos em Nick Carter, Melanie C, Duncan James, Lee Ryan ou Geri Halliwell, e veremos que as bandas a que pertenciam, sendo projectos inócuos e com prazo de validade, mais do que não os ajudarem em carreiras a solo, inclusivamente os prejudicaram, pois ficariam sempre associados à experiência fútil e infértil das boys-bands e girls-bands. Justin Timberlake será, por isso, o caso mais extraordinário da reabilitação de uma imagem, de adolescente azeiteiro a homem maduro e sensível às exigências do pop.
E em canções como Sexyback ou Mirrors, não estamos perante nada que não sejam boas canções pop, o que é também importante.


6. haja algum folclore em tudo isto
 
Para vender música pop, a música não se basta. Isto, porque a pop não está só na música, não está sequer principalmente na música. Toda uma indústria de associações de publicidade, de revistas de mexericos contribuem para interessar o público nos artistas que este deve consumir, com os quais, tenta-se, ele poderá identificar-se, sobre o qual poderá debater. Mas ser-se role-model está fora de moda. O célebre chavão de que as meninas boas vão para o céu e as más para todo o lado é a lei da arena pop. Se o rock foi o primeiro a mitificar os comportamentos amorais, ou revolucionariamente imorais dos seus ídolos, como Kurt Cobain, Janis Joplin ou Jim Morrison, cedo o pop percebeu que o choque tem um valor tremendo e que ser um ultraje é vendável, até porque, no pop, não existe má publicidade.
 
Sem uma estratégia centrada numa persona pública irreverente e instável, não teria tanto sucesso alguém como Nicki Minaj. Minaj impôs-se logo a partir do seu primeiro trabalho, 'Pink Friday' (2010), principalmente por causa das suas altercações com a veterana Lil Kim.
Tudo começou porque Kim acusou Minaj de utilizar gravações inéditas suas para várias canções, particularmente Automatic. A troca de insultos, com mais ou menos classe, por parte de ambas, cedo passou das entrevistas para a música. Na sua mixtape 'Black Friday'  (2011), Lil Kim não só escreve uma música directamente sobre o facto de Minaj lhe ter roubado canções e toda uma imagem, como ainda usa um sampler de Did it on 'em de Minaj para cantar a letra absolutamente degradante de Pissin' on 'em. E se Minaj já havia deixado uma mensagem indirecta com o seu Roman's Revenge, no segundo álbum, 'Pink Friday: Roman Reloaded' (2012) responde às canções de Lil Kim com Stupid Hoe.
No meio de tudo isto, a música de Minaj foi o que menos interessou. O que é natural, porque trata-se de um projecto musical que nem sabe o que quer ser: apresenta-se como rap, mas não só Minaj é incapaz de fazer uma rima decente, como parece convencida de que fazer rap é dizer palavrões e ser ultrajante gratuitamente. As suas canções valem essencialmente pelos refrãos orelhudos que, de facto, ficam no ouvido. E o que se torna mais irónico é que a única canção de Nicki Minaj que até aos dias de hoje consegue ser quase boa é Automatic, precisamente aquela que plagiou de Lil Kim. Mas a verdade é que Kim não precisava de se ter preocupado tanto. Não há maneira de algum dia uma estrela meramente folclórica como Minaj conseguir ser aquilo que, no pop, é a cantora de 'La Bela Mafia'.
 
Mas este tipo de folclore faz falta ao pop. Outro exemplo recente disso mesmo foi o de Lana del Rey. Não foi tanto por insultar ninguém que se destacou, mas a menina de 'Born to Die' (2012), cuja música está longe de ser má, foi um sucesso inesperado: não dança, não costuma aparecer seminua, não tem, de resto, uma postura particularmente erotizada, as letras parecem ser mais rock do que pop. Mas Lana del Rey tem fama de ser incapaz de cantar mal ao vivo, está nitidamente pouco à vontade quer no palco quer nos videoclips, e teve algumas prestações desastrosas em programas de televisão onde foi cantar ao vivo.
O facto é que criou um público que lhe é fervorasamente fiel, e, independentemente daquilo que possam ser as suas performances, a música tem, de facto, bastante qualidade. Soa ao que soaria Brintey Spears, se Britney Spears fosse cantora. E talvez isso explique por que a sua música, mesmo sendo apenas remotamente pop, a transformou numa mega-estrela pop. Canções como Born to Die, Blue Jeans, ou Summertime Sadness, particularmente na versão remisturada por Cedric Gervais, demonstram que, pop ou não, Lana del Rey consegue ser mais do que fogo de vista.


7. a falta de cultura

Mas ninguém tem sido, provavelmente, um fenómeno pop tão grande como Lady Gaga, desde Madonna. Camille Paglia, a pensadora mais avançada e arguta no pensamento sobre os fenómenos pop escreveu um artigo brilhante em que explica detalhadamente por que Lady Gaga representa a morte do sexo, mas também a morte de tudo o que o pop foi desde Madonna. Que Gaga seja a morte do erotismo, não apresenta dúvidas. A sua figura artificial e fabricada é um delírio kitsch e camp, além de um acumular de dejá-vues, e a sexualidade não convive pacificamente com estas características.
Lady Gaga será sempre uma das artistas mais importantes em toda a indústria musical. Importante porque ela marca o fim do valor argumentativo e contestatário da pop, marca a definitiva falta de inteligência ao produzir música que será consumida por grandes públicos, assinala a nítida ausência de cultura musical num público mais jovem que ouve música pop mas não lhe conhece sequer a história mais recente. Gaga é, de facto, tão desinteressante, tão ridícula, tão vazia e tão inculta como o público que a ouve e que ela representa. 
Quem é este público? Trata-se um largo conjunto de jovens que cresceu estando continuamente perante a televisão mas que, paradoxalmente, foi incapaz de assimilar qualquer referência da cultura popular (pop); uma geração que não teve a necessidade de uma verdadeira luta social e que se desviou, ou foi desviada através de uma educação sobreprotectora, de qualquer sugestão de uma luta tal; que substituiu a conversa, enquanto exercício primeiro do pensamento, pelas trocas de palavras lacónicas pelo telemóvel e pela internet; e que não foi bem preparada para as relações humanas, que aprendeu a viver sempre através de um qualquer aparelho tecnológico. A tecnologia sabotou, começamos agora a percebê-lo, o modo de estar da sociedade. A geração das revoluções dos anos 70, do Woodstock, do Flower-Power não asseguraram a subsistência dos valores que defendiam: o yuppie surge da rápida conversão às promessas do capital dessas comunidades histéricas que não procuravam mudar a sociedade, apenas fazer uma birra perante os pais. Se há geração verdadeiramente digna de desprezo, é a dos hippies do Woodstock, precisamente aquela que não incutiu nos seus descendentes senão o oposto daquilo que haviam defendido para si. 
Daí a frieza cultural e ideológica do público de Gaga. Quando ouvem aquela figura teatral, artificial, estilizada e aberrativa, sentem-se a exercer uma espécie de liberdade de expressão. Que ela tenha dado voz a tanta gente só mostra como as revoluções dos anos 70 trouxeram tudo menos liberdade e pluralidade. É precisa uma pop-star forçada e idiótica mas astuta para que alguém possa assumir-se diferente e enfrentar as consequências de ser diferente, ainda que não passe, bem vistas as coisas, de uma cópia do seu ídolo. Ou seja, não só esse público é inculto e ignorante, como, o que é mais grave, profundamente inseguro.
O que distingue Gaga do seu público não é senão esse sentido de oportunidade: ela percebeu a crise de consciências que marca a actualidade e soube aproveitar-se dele para granjear sucesso. Essa é a sua importância para a música. Isso faz dela um ídolo, ainda que um ídolo com pés de barro.