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segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Coisas minhas III


ANTES DE PARTIR


Sob o último céu que vejo daqui
espero  as luzes da rua.
As casas enterram-se no chão
até serem uma mancha na retina.

Estou preso à estrada,
a fundir-me no alcatrão.

Aprendi o nome das ruas, fixei
algumas árvores,
deixei-me pertencer a este lugar,
adiei a partida.

Nesta última noite chove, ainda
é verão. Parece-me que estou menos só,
como se a noite reagisse à tristeza
e chorasse também.

No meu choro tento memorizar
certos detalhes, uma cor, um resto
de tinta a descascar na parede. Mas é inútil.
Devia pensar que partir será
chegar a outro sítio. Mas a ausência
e a última visão da minha

casa dá lugar só às trevas.

[João Borges: Porto, Julho 2009]
imagem de Helena Almeida

domingo, 13 de outubro de 2013

trielo

Portugal não é um país particularmente rico em arte conceptual. Aparte uma série de experiências que não vão além da repetição de experiências feitas por artistas estrangeiros, há poucos nomes a citar no campo do conceptual. Os imitadores beneficiaram do fechamento cultural do país durante o Estado Novo e, com as vantagens de estudar no estrangeiro, foi possível a vários artistas conquistar aclamação com trabalhos pobres e pouco criativos. Helena Almeida é, por isso, um caso praticamente excepcional na arte portuguesa. O seu universo de certa forma autista só pontualmente tem referências visíveis e, mesmo nas suas primeiras exposições, o que se nos apresenta é um cruzamento entre fotografia, pintura, escultura e performace, um projecto difícil mas apaixonante.


Uma das suas séries mais interessantes é uma das intituladas ''Pintura Habitada'', de 1976. Helena Almeida utilizara já a técnica de pintar ou desenhar sobre fotografias, mas esta série inicia uma nova problemática, que se prende essencialmente com o espaço. A artista chama ao que faz neste trabalho ''pintar para a frente''. Nas fotografias, o modelo é sempre a própria Helena Almeida, fotografada pelo marido, o arquitecto Artur Rosa. Neste caso, vê-mo-la segurando um pincel. A intervenção com pintura é uma mancha de tinta azul que vai sendo maior de fotografia em fotografia, até ocultar por inteiro o corpo. Esta pintura existe sem superfície, está como que suspensa no espaço entre o modelo fotografado e o espectador. A bidimensionalidade torna-se então um conceito confuso, porque o muro crescente de tinta azul convoca toda uma espacialidade sem outra saída que não o tridimensional. É diferente daquilo que acontece numa fotografia. A fotografia é representação bidimensional do que é tridimensional. Mas aqui, a tinta azul contrasta significativamente com o preto-e-branco da fotografia, assume-se como elemento de natureza distinta e, o que é mais decisivo, encena uma realidade que uma fotografia não poderia, à partida, captar. Por isso este gesto de ''pintar para a frente'' é um dos aspectos mais desconcertantes da obra de Helena Almeida. Ele origina um onirismo que toca o abstracto, o que nos confronta com as limitações do que entendemos como figurativo.
Nas fotografias, a artista surge-nos vestida de negro, com uma expressão serena que tende para o melancólico. Nunca nos fita directamente nos olhos. Acaba por ficar oculta pela pintura, que se torna muro. Esse muro é desviado, mas a série termina antes que ela esteja novamente revelada. Poderemos interpretar tudo isto como uma anulação? A serenidade com que o rosto de Helena Almeida aceita a ocultação, não será precisamente um reconhecimento de que, ali, ela cessa de existir para se tornar parte da obra, disposta inclusivamente ao sacrifício?
A rejeição constante da ideia de auto-retrato na obra da artista pode confirmar esta ideia. De facto, o que aqui existe é auto-representação. A figura de Helena Almeida é sempre discreta, apesar de central, e contida, apesar de expressiva. Nesta ''Pintura Habitada'', sobressai a relação física do corpo com a obra, simbolizada pela tinta. Mas essa relação física propaga-se ao espectador, que passa a ter uma relação, também física, com aquela muralha de tinta e, consequentemente, com o corpo da artista, então auto-representado. Em última análise, é essa a habitação desta pintura: definindo distâncias, marcações espaciais, ela cria um trielo com a artista e o observador, deixa de ser pintura para ser espaço, capaz de suportar vida e energia.
E se a obra de Helena Almeida rejeita as disciplinas artísticas, é por convocar um grande número delas, e não devemos esquecer-nos de incluir a arquitectura.

quinta-feira, 4 de abril de 2013

[ponho palavras onde vou morrer]


ponho palavras onde vou morrer
e estremeço porque a vida se dissipa
como água derramada no soalho

entre muitas outras coisas escrever
é procurar nos confins

além tempo e sucessão de espaços
a demorada nomenclatura do efémero

Miguel-Manso
Aqui Podia Viver Gente
2012, ed. Primeiro Passo
fotografia de Helena Almeida


quinta-feira, 10 de março de 2011

Cada Dia


Cada dia é mais evidente que partimos
Sem nenhum possível regresso no que fomos,
Cada dia as horas se despem mais do alimento:
Não há saudades nem terror que baste.




Sophia de Mello Breyner Andresen
Coral
1950, ed. Livraria Simões Lopes
imagem de Helena Almeida

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Helena Almeida: Sem Título (2010)


há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida


há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida
pensava eu... como seriam felizes as mulheres
à beira mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado

por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos... sem ninguém

e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentada à porta... dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua
assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão

(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no coração. mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)

um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade


Al Berto
Salsugem
1984, ed. Contexto
imagem de Helena Almeida

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

O Beijo de Antikonie (II)



De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.

E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.

Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.

Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.


Natália Correia
O Dilúvio e a Pomba
1979- edições Dom Quixote


imagem: Helena Almeida, Pintura Habitada

domingo, 1 de março de 2009

sobre o único assunto universal



"Ricardo Asse mexeu-se na cadeira- "A morte, nossa vizinha, nossa irmã, companheira do nosso corpo em sua sombra, parte integrante da nossa alma, único fantasma grandioso da nossa vida, único tema da nossa obra! Eu, como tu, aos vinte anos estava esclarecido. O meu primeiro poema foi sobre a morte, o segundo foi sobre a morte, o vigésimo terceiro foi sobre a morte, o centésimo, o tricentésimo, foram todos sobre essa chamada permanente, essa toalha alva que desde sempre nos espera sob a forma do nosso próprio sopro. A minha intuição sobre a importância da morte, em todos os gestos da minha vida, sempre foi tão poderosa que nunca permitiu que nenhum outro assunto entrasse nas linhas da minha escrita. E assim atravessei cinquenta anos de fertilidade criativa, discorrendo sobre o único tema universal que existe. A morte... Julgas, porém, que foi pacífico?..." Durante um minuto, Ricardo Asse empalideceu. Mas regressou.
"Ah, não foi pacífico, não!"





LÍDIA JORGE
O Jardim Sem Limites
1995- dom quixote
imagem: HELENA ALMEIDA
Pintura Habitada