sábado, 18 de abril de 2015

Começo


Vejo-te um pouco como se já não houvesse
uma casa para nós. As grandes perguntas estão aí
por todo o lado, onde quer que se respire, dentro
dos próprios frutos. É o começo da noite
e os cinzeiros já estão cheios de meias palavras:
porque escolhemos tão pouco
aquilo que nos pertence?

Vejo-te de olhos fechados enquanto me confiavas
a tua história - à mesa da cozinha, quase um espelho,
quase uma razão. As minhas canções preferidas
pareciam convergir para ti a certa altura, dir-se-ia
que te vestias com elas. E no entanto
como se apressaram as grandes florestas a invadir
as gavetas, como misturaram as raízes
no eco que fazia o teu desejo contra mim.

Rui Pires Cabral
A Super-Realidade (1995)
in «Morada»
ed. Assírio e Alvim, 2015
fotografia de Nikos Stamatopoulos

domingo, 12 de abril de 2015

Desabafo



Quando o meu tumulto recrudesce
(tempestade de água num copo)
o meu interior tumulto,
de que me escapa a profunda causa...

Quando falo
e as minhas próprias palavras,
por inúteis,
me espantam e me cansam...

Quando a moral dos outros
me traça à frente
o ridículo sulco dos limites...

Deponho as minhas armas boas ou fracas e rio.
Rio com amargor
e como o vento torço o rumo.

Limites...
Para o coração que tumultua, bofetada.
Para a livre imaginação, queda
Cinza,
cinza atirada àquele quê,
àquele quê nada expansivo e imenso,
ardente e infinito
de um pobre espírito.

Como o vento torço o meu rumo gritando:
Ó lar, ó lar das minhas esperanças!
Ó acolhida dos sem pátria e sem destino!

Risco baço dos meus limites, galguei-te.
Sim, galguei-te.
E perco-me no meu corcel de vento,
infeliz e irritada.

Mas para calar toda esta ansiedade
e, ai!
abafar o meu desprazer,
só alcançando as estrelas,
ultrapassando-as
e desaparecer...

Meu coração inchado rebenta, rebenta!
E tu gasta-te, saudade,
desejo, desespero, paixão do que sonhei

e sempre tive de perder.

Irene Lisboa
in «Seara Nova», 1939
imagem de Miguel Leal