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sábado, 18 de abril de 2015

Começo


Vejo-te um pouco como se já não houvesse
uma casa para nós. As grandes perguntas estão aí
por todo o lado, onde quer que se respire, dentro
dos próprios frutos. É o começo da noite
e os cinzeiros já estão cheios de meias palavras:
porque escolhemos tão pouco
aquilo que nos pertence?

Vejo-te de olhos fechados enquanto me confiavas
a tua história - à mesa da cozinha, quase um espelho,
quase uma razão. As minhas canções preferidas
pareciam convergir para ti a certa altura, dir-se-ia
que te vestias com elas. E no entanto
como se apressaram as grandes florestas a invadir
as gavetas, como misturaram as raízes
no eco que fazia o teu desejo contra mim.

Rui Pires Cabral
A Super-Realidade (1995)
in «Morada»
ed. Assírio e Alvim, 2015
fotografia de Nikos Stamatopoulos

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

«É bom viver na terra?»


No parque, sobre a relva,
onde é tudo tão difuso,
eu não tenho relação
com a minha vida. Indistinto
entre as dezenas de pontos

que um mestre desconhecido
distribui por acidente
na tela crua da sorte,
não tenho nome ou idade,
nem sequer um coração

para sofrer outra ofensa:
nunca desci ao inferno
de um amor desenganado,
nada perdi que me fosse
precioso ou necessário

e de resto não conheço
os quatro cantos do medo,
nem tão-pouco me pertence
este modo de estar só
que inventei sem querer.

De seguro, por agora,
só tenho o corpo que ofereço
ao calor da primavera _
e nem me custa ser eu, se sou
também qualquer homem

de qualquer tempo e lugar
que alguma vez se deitou
sem cuidados ou remorso
entre as árvores enfeitadas
pela breve luz da tarde.

Rui Pires Cabral
Oráculos de Cabeceira
2009, ed. Averno
pintura de Yuri Leonov

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

No Terreno


Foi por altura das ervas altas e dos arraiais.
Eu via-te outra vez ao fim da tarde e tudo se apagava
à tua volta, os acidentes terrenos, as montanhas do passado
e do futuro. Por tua causa eu andava contente
nas ruínas, fazia as pazes com o tempo perdido.


Na estrada à meia-noite o asfalto era morno, os grilos
estavam todos a cantar dentro do céu. Já não sei dizer
o muito que esperei de ti, os serões eram pródigos
e tinham os braços imprevistos de um fractal.


Fumavas dos meus cigarros, falavas da vida que tinhas
a milhares de quilómetros dali. Na minha própria
e exclusiva escuridão, eu já só existia para ti.

Rui Pires Cabral
A Super-Realidade
2a edição, 2011, Língua Morta
fotografia de Arthur Tress

quarta-feira, 2 de março de 2011

China Doll


Eu ia na passadeira com um propósito mas

a gravata de um homem atirou-me para o coração
do abismo. Uma insuspeitada gravata de seda
com pintas discretas, o catalizador

da vertigem. Aquilo que o vento levantava
na avenida era uma espécie
de música, um barulho de sinos remoto

e descompassado, viam-se algumas flores
a entrar na boca do esgoto como se fosse ali
a casa delas. E sem deixar eco qualquer coisa ruía

nas fachadas, o próprio oxigénio era nesse instante
como uma língua estrangeira. Eu sentia na garganta os tambores
do sangue e os prédios enfadonhos pulsavam
na taquicardia, caíam em desamparo

para a cova do meu peito. Do outro lado da rua
um sinal de trânsito foi a minha âncora.

Rui Pires Cabral
Música Antológica & Onze Cidades
1997, ed. Presença
desenho de Tony Bevan

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

I´m Coming Home


O tempo corre nas paredes livremente
mas não toma a direcção da morte: ela esteve aqui
desde o princípio, uma vocação adormecida
debaixo do estuque.

A manhã nasce viciada nos brandos venenos
que os móveis destilam, haverá pombas
sobre o parapeito, o senhorio arrastará o chinelo
sob um eco que caminha pelo tecto.
Nada poderá perturbar a fluência da penumbra
nos cantos para onde se varre a casa
aos domingos. A pele respira tenuamente mas não posso falar
em tristeza. Este é o meu endereço, um lugar composto
para a submergência.


Rui Pires Cabral
Música Antológica & Onze Cidades
1998, ed. Presença
pintura de Pablo Picasso

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Shirley Ann Eales

Na vitrina lê-se Livros Raros
e Usados sob o azul inclinado
de um toldo – mesmo em frente
à glacial cafetaria de franchise
onde o dia destrata o desejo
e não se pode fumar. Subo
aos pequenos gabinetes
mergulhados no doce bafio
da literatura e percorro de A
a Z as espinhas estreitas

e rachadas da poesia. É o sítio
mais vazio de Novembro
e o que mais me reconforta;
o livro que escolho, por metade
de uma libra, traz no frontispício
um nome e uma morada: Shirley Ann
Eales, de Scottsville – um sumido
autógrafo de maiúsculas magras
e triangulares onde a imaginação
encontra por enquanto pretexto

e oxigénio suficientes para arder.
O livro teve outra existência,
pertenceu a outra casa, a outra mesa
de cabeceira – e o pensamento,
de tão óbvio, conjura de repente
uma vertigem, é um corredor
abrupto para a imensidão do mundo
onde trafica o acaso. Ah, sabemos
que a vida é improvável se damos
por nós a cismar, a meio de uma tarde

insípida, numa mulher desconhecida
que lia poemas em Scottsville, nos anos
70. Mas haverá aqui alguma espécie
de sentido, algum sinal guardado
para alguém mais sábio ou inocente
do que eu? Não sei quem és
nem onde estás agora, Shirley Ann,
mas como seria belo se pudesses
um dia encontrar, por obra da mesma
sorte, o teu nome nestes versos.


RUI PIRES CABRAL
Longe da Aldeia
edições Averno, 2005