terça-feira, 29 de outubro de 2013

A matter of pop

Às vezes para nos fazer ver determinada questão de uma forma diferente, basta que alguém saiba dar um ou dois argumentos realmente lógicos. Foi o que aconteceu comigo em relação à cultura pop, quando lia, recentemente, 'Vamps & Tramps' de Camille Paglia. Eu sou uma dessas pessoas que Paglia acha inacreditáveis, que não tem televisão nem ouve rádio, que consulta apenas alguns sites e blogs muito específicos. Por outras palavras, estou, intencionalmente, um pouco distanciado da cultura pop. Mas entendo o ponto de vista de Paglia. A cultura pop é sintoma e consequência de um pensamento geral, é uma forma de compreender uma grande massa de indivíduos. Direi um pouco distanciado, e não totalmente, porque creio que é impossível que alguém esteja totalmente distanciado dela. Se há característica que define a pop é que ela prolifera de tal forma que é impossível evitá-la de todo. Na música principalmente. 
Aliás, a minha aversão pela pop começa com dois pontos: primeiro, a obra de Andy Warhol que, por mais que seja interessante enquanto atitude, enquanto arte é, quanto a mim, uma das obras mais sobrevalorizadas de todos os tempos: parece-me um trabalho fútil cujo único objectivo é a rentabilização, uma pintura esvaziada de conteúdo que se contenta em ser uma prostituta do capital. Nisto aliás, o trabalho de Andy Warhol é um completo estandarte de tudo o que a pop é, e também daquilo que me faz detestá-la. O que nos leva ao segundo ponto: a música. Eu cresci com o surgir de cantoras como Britney Spears e Jennifer Lopez, assisti à ascensão e queda do conceito de girls-band e boys-band, com as últimas glórias mal conquistadas das Spice Girls e dos Backstreet Boys, tinha colegas na escola que sonhavam namorar com o Nick Carter e que dançavam músicas das Destiny's Child. Tal como a obra tutelar de Warhol, esta música tem em vista sempre o consumo, por norma as letras eram superficiais, quer cultivassem o power-positive-thinking, quer apresentassem queixas sobre amores mal resolvidos, recorrendo sempre às mesmas ideias e às mesmas rimas, acompanhadas de ritmos dançantes e catchy com refrões orelhudos, ou então melódicos e envolventes que proporcionassem uma meditação superficial. Não se trata tanto de despertar sentimentos ou ideias, ou de criar uma obra de arte, quanto se trata de criar um objecto vendável, o mais vago e óbvio possível, para garantir que um grande número de pessoas se identificará com ele. Precisamente a falta de conseguimento artístico, a falta de risco e a baixa criatividade me separaram do pop. A estranheza, a poética e a intensidade, encontrei-as sempre noutros géneros com os quais me conseguia identificar, porque, apesar de tudo, é ainda disso que se trata: ficamos ou não frios perante uma canção?
Se não fosse Camille Paglia, provavelmente eu nunca teria sequer tentado encontrar um outro lado para essa música que me deixa quase sempre indiferente.

1. A desculpa do coração

O pop de hoje não é o pop de há três ou quatro décadas atrás, que está sob o microscópio de Paglia em 'Vamps & Tramps', colectânea de ensaios editada no início dos anos 90. Antes, portanto, do nascimento de certas estrelas pop que são hoje os seus nomes de primeira água. Gostemos ou não, não existe hoje um único nome que tenha o peso que Madonna teve, logo desde o início. Para Madonna (mais do que para qualquer outro), a música não se ficava pelos clichés mais simples, o seu trabalho comportava uma dimensão subversiva cuja consequência última era a política e que, hoje, se encontra completamente ausente da música pop. Talvez porque essas já não são as preocupações do público-alvo. As mulheres acreditam que já conquistaram a plenitude da sua libertação sexual e da sua identidade face ao mundo, por exemplo, o que não acontecia quando Madonna lançou 'Like a Virgin'.


Eu creio, aliás, que nunca houve no pop ninguém tão profundamente inteligente quanto Madonna. Ainda que eu não tenha uma apreciação especial do seu trabalho, reconheço que a sua postura combativa e politizada foi sempre canalizada para a música com inteligência e coragem. Mais ainda, a conquista do estatuto de rainha da pop foi utilizada como forma de fazer uma diferença social. Enquanto ícone, Madonna soube usar a sua importância a favor de várias causas e defendeu ideias que, na altura, só poderiam ser aceites se advogadas por alguém que o público admirava com o fervor que a admirava a ela. O exemplo do álbum de fotografias 'Sex' (1992) que Madonna publica com fotografias de Steven Meisel é extraordinário: por mais que precisamente Camille Paglia discordasse de mim, eu diria que aquele livro foi a subversão certa no momento certo, produziu um choque completamente transformador que só poderia ser assumido por um artista destemido e preocupado em utilizar a sua fama em favor de uma ideologia.
Hoje não temos Madonnas. Uma observação muito geral do universo pop actual mostra-nos que a política e o posicionamento ideológico, mesmo que existam no discurso dos cantores, estão ausentes da música. Mais do que nunca, impõe-se o problema das vendas, e a afirmação politizada que causou tantos dissabores da Madonna é um risco que ninguém deseja correr.
A pop hoje tenta ir de encontro às angústias e alegrias adolescentes, apela à frivolidade disfarçada do mundo, neutraliza-se politica e socialmente através da desculpa do coração. E se os problemas emocionais são comuns em quase todos os géneros de música, o grande problema da pop, que é também o seu segredo para o sucesso, é a superficialidade com que esses problemas são tratados. Pensemos por exemplo nas letras previsíveis de uma Taylor Swift (que de um início country se tem desviado cada vez mais para a pop) ou de um Chris Brown e veremos como tudo no seu discurso é vago para ser abrangente. É uma contenção de riscos, a especificidade eliminará ouvintes, enquanto que um discurso mais lacónico acabará por ir de encontro as vários desgostos amorosos, independentemente dos seus contornos.
Se Kate Bush ou Joni Mitchell alguma vez foram verdadeiramente pop, então os seus herdeiros migraram para o folk, para a alternativa, para o indie e para o rock. Raros artistas verdadeiramente pop abrem o seu coração de uma forma mais detalhada, o que gera uma crise de conteúdo. A pop, neste momento, não tem assunto, faz-se com cada vez mais futilidade, uma futilidade que, ainda por cima, quase sempre é dissimulada de várias formas, disfarçando-se de sinceridade.


2. a futilidade sai do armário

Não é sempre assim, no entanto. Artistas pop vai havendo que conseguem assumir a sua falta de profundidade. A música pode não deixar de ser superficial, mas tem a decência de não se fazer mascarar, e tem ainda um valor muitíssimo mais alto: é sintoma fortíssimo do pensamento mais comum. 


Para mim, não haverá melhor exemplo do que o de Ke$ha. O primeiro álbum, 'Animal' veio a lume em 2010, e seguiram-se o EP 'Cannibal' (2010) e o álbum 'Warrior' (2012). Ke$ha vive num mundo de unicórnios e discotecas, faz a constante apologia do álcool e do glitter, apresenta-se com uma estética colorida e excessiva, ainda que, de party-girl no seu primeiro álbum esteja a sofrer uma espécie de transformação num contrasenso pop-hipster, que tem tornado a sua sonoridade bastante mais interessante, como atestam canções do último disco, caso de Supernatural. No entanto, o maior logro da sua música tem sido, desde o início, a sua seriedade em assumir que se trata de um universo fantasioso e supérfluo, não se esconde atrás de supostos sofrimentos. O seu primeiro single, Tik Tok falava de um saída louca à noite, tal como o segundo, Blah Blah Blah e o quarto, Take it Off. Pelo caminho, fica Your Love is My Drug, uma canção de amor descomplexada e festiva, que, em termos de som, não se afasta nada das restantes. Os dois singles do EP são também sobre grandes saídas a bares, We R Who We R e Blow, sendo que, neste último, Ke$ha apresenta um videoclip efabulado que não faz, declaradamente, sentido nenhum: apenas tenta (e consegue, sejamos sinceros) ser divertido. Em 'Warrior', regressamos aos grandes temas da festa com Die Young, C'Mon e Crazy Kids, contando a segunda com a participação de Iggy Pop.
A sua música tem qualquer coisa de opiáceo enquanto música dançável, a sua mensagem é completamente oca. O facto de uma mensagem assim chegar a tanta gente só nos mostra precisamente que a festa é a grande preocupação do público-alvo, no fundo. Isto porque Ke$ha não tem sequer a faceta erotizada que Madonna tinha: pelo contrário, a questão do erotismo não tem grande presença nesta música, a figura de Ke$ha é mais fantasista do que sexualizada. Trata-se de uma ideia de sair e divertir-se, com a diferença de que isto se faz todos os dias ou, pelo menos, em todas as canções. 
Argumente-se ainda que o último álbum se afasta em termos sonoros em direcção a uma electrónica irregular, que lhe dá realmente uma roupagem um tanto hipster. Ainda assim, a mensagem mantém-se.

3. a questão da voz

Bem diferente é a proposta de Christina Aguilera, que muitos apontam como a única digna sucessora de Mandonna, esse espectro eterno. Concordo. Isto porque Aguilera não só se revela uma artista de uma versatilidade impressionante, como é das poucas artistas pop que mostra uma inteligência e uma sensibilidade acima da média.
O primeiro álbum, homónimo, de Christina Aguilera foi editado em 1999 e valeu-lhe o Grammy para Melhor Artista Revelação. Depois de gravar uma versão desse álbum em castelhano, 'Mi Reflejo' (2000), Aguilera optou por uma polémica cisão com os seus primeiros trabalhos. Escolheu novos produtores, recusou-se a continuar a interpretar canções escritas por outros compositores e passou a ter controlo sobre a sua imagem, essa questão tão preponderante na pop. Por assim dizer, tomou as rédeas da sua própria carreira. Quem ouve 'Stripped' (2002) não reconhece a Christina dos primeiros álbuns. O som é maturado, as letras têm uma qualidade surpreendente e a colaboração de nomes como Linda Perry, Lil'Kim ou Floria Sigismondi fazem uma certa diferença. Mas o que mais impressiona em 'Stripped' é a voz fortíssima de Aguilera que é finalmente valorizada. Na pop actual não há voz como a dela, e talvez nem mesmo na história da pop tenha havido voz mais intensa. Ouvi-la em canções como Fighter, Cruz ou Beautiful é entender como efectivamente estamos perante uma cantora a sério, com uma voz matizada perfeitamente capaz de fazer sentir, essa capacidade tão pouco importante para a pop. E em Can't Hold Us Down, Christina assume também uma faceta mais politizada, quando mostra que as mulheres, de facto, ainda não conquistaram a sua plena liberdade na sociedade. Fá-lo de forma simples e directa, mas vale enquanto gesto minimamente consciente.
Após um hiato de quatro anos, Christina mostra uma vez mais a sua versatilidade quando lança 'Back to Basics', um álbum onde assume as suas influências, ligadas ao jazz e à soul. Não caiu bem ao público, o álbum foi dos menos vendidos da sua carreira, mas ficou provada a cultura de Aguilera e a sua capacidade para trazer novos sons ao pop, como vemos por Ain't no Other Man e Hurt, uma canção que contraria precisamente a tendência básica da pop para não ser específica em nada. Trata-se de uma canção dedicada ao pai, com quem Christina tinha uma relação conflituosa. Por volta da mesma altura, Kelly Clarkson lançou uma canção, Because of You, que, pelo vídeo, percebíamos tratar-se de uma queixa familiar. A diferença é que Christina fala dos seus fantasmas com uma sinceridade desarmante, ao passo que a canção de Clarkson podia perfeitamente ser dirigida a um namorado maldoso.
'Bionic' (2010) e 'Lotus' (2012) são um regresso a uma pop mais ligeira, que mesmo assim se expressa com garra, com canções como Not Myself Tonight e Your Body. Mais ainda, em termos de imagem, Christina apresenta-nos videoclips de muita qualidade, bem coreografados e, no caso de Your Body, um dos melhores videoclips pop alguma vez realizados, com uma ironia e uma subtileza assinaláveis.


Num lado diferente da pop encontramos Adele, com os seus dois álbuns '19' (2008) e '21' (2011). O grande ponto de vantagem de Adele foi sempre a voz, que tornou grandes sucessos canções de amor que não eram dançáveis nem minimamente upbeat, como Chasing Pavements, Rolling in the Deep, Someone Like You ou Set Fire to the Rain. Quase todas as canções de Adele falam de amores mal vividos, mas os temas da separação e do desgosto são aqui abordados com uma crueza que nos atinge. Sendo de certa forma uma estrela pop, será igualmente verdade que Adele é vendável porque tem uma espécie de público que a tem como cantora de culto, e esse público está tanto nos ouvintes de pop como em não ouvintes de pop. A sua música consegue atravessar essa fronteira, porque é tão simples e forte que acaba por se demarcar das piores facetas da pop, que a tornam detestável aos olhos de muitos.
Outra coisa que impressiona no caso de Adele é o problema da imagem. Apesar de bonita, Adele é gorda, veste-se quase sempre com um mau-gosto que impressiona e nos seus videoclips apresenta-se tal como é, sem grandes produções e sem omissões. Isto já lhe valeu algumas polémicas, das quais sai quase sempre vencedora, como aconteceu com os infelizes comentários de Lady Gaga, que a criticou por ter excesso de peso. Mas o que Adele conseguiu é uma vitória astronómica, como o foi o sucesso que uma mulher latina como Jennifer Lopez conseguiu mal lançou 'On The 6' (1999). Adele destruiu a ideia de que uma cantora só se consegue tornar estrela pop se tiver um corpo escultural e uma apresentação provocante. Ela é a diva wagneriana de conservatório que decidiu experimentar a pop, assume o seu desencaixe e é admirada por isso. Com Adele, a questão do corpo voltou à ribalta e a música foi o que verdadeiramente triunfou: é idiota rejeitar uma cantora cujas canções são tão boas apenas porque é gorda. Mais do que ser um preconceito, o excesso de peso é um verdadeiro pecado social, uma falha imperdoável. Quem melhor que uma artista pop brutalmente bem-sucedida para vir pôr essa ideia em causa? Tendo eu, até aos 13 anos, sofrido de um grande excesso de peso, admiro mais ainda a personalidade de Adele. Ela quebrou o tabu do peso, forçou o público a admirá-la pelo seu talento enquanto cantora e compositora em vez de a desprezar pela sua imagem. Não estou certo que tenhamos encontrado maior desafio desde que Madonna impôs a mulher como ser sexual.

4. as raízes e as influências

Acima falei de Jennifer Lopez, cujo primeiro álbum, editado em 1999, lhe granjeou um reconhecimento e um estatuto absolutamente à-parte de tudo o resto. Até aos dias de hoje, J.Lo continua a ser uma das mais respeitadas artistas pop, por mais que mude de estilo visual e sonoro, continua a chamar a atenção, produz clássico pop atrás de clássico pop e abriu o caminho a uma série de latinas e latinos na grande indústria pop dos Estados Unidos. Antes dela, talvez só Gloria Estefan tivesse conseguido este tipo de reconhecimento, mas é preciso lembrar que a pop propriamente dita, nunca interessou a Gloria.


Shakira era já uma cantora conceituada na América Latina quando gravou o seu primeiro álbum em inglês. Na bagagem trazia já dois álbuns de originais, dois álbuns de adolescência rejeitados e um álbum ao vivo que lhe valera o Grammy Latino de Melhor Álbum do Ano. Não era uma principiante quando 'Laudry Service' viu a luz do dia em 2001 e se tornou um dos maiores sucessos pop de todos os tempos. Esta rapariga que se apresentava fora da América Latina com Whenever Wherever era tudo menos vulgar. A sua música, mesmo cantada em inglês com letras simples mas não de todo desprezíveis, era declaradamente de raiz latina, os seus videoclips tinham pouquíssimo artifício, não se apresentava com bailarinos nem com grandes coreografias: sozinha, com o seu corpo bonito mas frágil, parecendo dançar instintivamente, ela tinha uma sensualidade que dispensava uma grande produção, era cativante e autêntica. Os singles seguintes, Underneath Your Clothes, Objection (Tango) e The One ajudaram a assimilar o sucesso do primeiro álbum, e a eles seguiu-se um single em castelhano, Que Me Quedes Tu, uma balada belíssima, que anunciava aquilo que o álbum seguinte confirmaria: que o sucesso em inglês não fez Shakira abdicar das suas origens latinas. Pelo contrário, desde 2001, Shakira lançou mais dois álbuns em inglês e outros dois em castelhano. E terão sido precisamente as suas raízes latinas e o facto dela misturar muitas vezes as duas línguas até nas suas canções mais badaladas, que lhe garantiram um lugar muito especial dentro do pop. Ela é reconhecida como autora e intérprete de boas canções pop, comunica determinadas emoções entre a balada e a música dançável, e é igualmente competente em ambos os estilos e em ambas as línguas. Mesmo sem ter voltado a atingir o pico de vendas que foi 'Laudry Service', Shakira, sabemo-lo hoje, é uma artista de culto para um público bastante alargado que admira a sua naturalidade e entende a sua necessidade de liberdade linguística e de sonoridade.


O caso de Rihanna, nascida nos Barbados, não é exactamente o mesmo. O seu começo, com os álbuns 'Music of the Sun' (2005) e 'A Girl Like Me' (2006) não faziam prever uma artista pop particularmente diferente. Ainda que em S.O.S., single do segundo álbum, ela parecesse ter qualquer coisa de original, nada nela fazia prever mais que um sucesso temporário para Rihanna. 'Good Girl Gone Bad' (2007), por mais que tenha sido bem-sucedido, era um trabalho absolutamente aborrecido que não nos mostrava que Rihanna fosse cantora alguma de especial. O álbum seguinte, 'Rated R' (2009), ainda que se tivesse apresentado com um single interessante, Russian Roulette, acabava por falhar redondamente em produzir mais alguma canção interessante. Parecia que Rihanna nunca seria uma cantora pop minimamente surpreendente quando, em 2010, ela lança 'Loud'. Neste álbum, Rihanna aceitava uma série de influências, afro e jamaicanas, que a tornavam de certa forma invulgar. Mais ainda, é neste álbum que consegue, pela primeira vez, chocar. Depois dos singles Only Girl (In the World), a sua primeira canção verdadeiramente boa, e  What's My Name, Rihanna vê o video de S&M censurado por apresentar referências explícitas a práticas sadomasoquistas. A canção, em si, continuava a linha do primeiro single, era uma canção pop obscura e no entanto bastante animada e violenta. As polémicas continuariam com o vídeo de Man Down onde Rihanna aparece a alvejar um homem que a havia violado. Nesta canção, a referência jamaicana traz um som estranho mas contagiante, que Lil'Kim soube aproveitar numa versão que faz desta canção, Cheating.
No seu trabalho de 2011, 'Talk That Talk' Rihanna regressa às polémicas com o vídeo de We Found Love, uma das suas melhores canções, produzida por Calvin Harris. Sendo uma canção de discoteca, acaba por soar extremamente bem, a letra triste contrapõe-se com suavidade ao ritmo acelerado e Rihanna mostra, uma vez mais, a sua capacidade para as canções estranhas.  Do mesmo álbum, merece referência Where Have You Been, onde a electrónica encontra um ritmo afro que cabe muito bem à voz anasalada de Rihanna, que continua a ser um dos seus maiores pontos de interesse.


5. o problema do renascimento

Uma das capacidades cruciais para a pop é a sua capacidade de reinvenção. A maneira mais eficaz de manter o público interessado em alguém é que esse alguém seja camaleónico, e seja capaz de ser o mesmo, nunca sendo igual. Quem via Justin Timberlake nos seus tempos dos 'Nsync, uma boys-band de sucesso na primeira vaga de boys-bands e girls-bands (a segunda está a ser agora, com os One Direction e os The Wanted), nunca diria que, mais tarde, ele se tornaria um grande músico pop. Ainda que 'Justified' (2002) fosse ainda inteiramente refém da experiência com os 'Nsync, no seu segundo álbum, 'FutureSex/ LoveSounds' (2006) Timberlake revela-se bastante competente enquanto performer e até, por que não dizê-lo?, enquanto autor de canções com série qualidade pop. Com canções como Sexyback ou What Goes Around Comes Around, onde a sensualidade masculina é assumida e louvada e a voz algo andrógina de Justin encontra a perspectiva certa, ele torna-se o derradeiro artista pop masculino, justifica com mais do que o seu aspecto físico o estatuto de sex-symbol e demonstra-se oportuno e inteligente naquilo que faz.  O mais recente 'The 20/20 Experience' (2013) confirma precisamente tudo isto, é um álbum discreto, ligado à soul e a um sexy-hip-hop, influências que paralelamente estão sendo exploradas, com resultados mais interessantes ou menos, por outros como Bruno Mars e Chris Brown.
E, de facto, Timberlake consegue fazer aquilo que outros, na mesma situação, não conseguiram. Basta pensarmos em Nick Carter, Melanie C, Duncan James, Lee Ryan ou Geri Halliwell, e veremos que as bandas a que pertenciam, sendo projectos inócuos e com prazo de validade, mais do que não os ajudarem em carreiras a solo, inclusivamente os prejudicaram, pois ficariam sempre associados à experiência fútil e infértil das boys-bands e girls-bands. Justin Timberlake será, por isso, o caso mais extraordinário da reabilitação de uma imagem, de adolescente azeiteiro a homem maduro e sensível às exigências do pop.
E em canções como Sexyback ou Mirrors, não estamos perante nada que não sejam boas canções pop, o que é também importante.


6. haja algum folclore em tudo isto
 
Para vender música pop, a música não se basta. Isto, porque a pop não está só na música, não está sequer principalmente na música. Toda uma indústria de associações de publicidade, de revistas de mexericos contribuem para interessar o público nos artistas que este deve consumir, com os quais, tenta-se, ele poderá identificar-se, sobre o qual poderá debater. Mas ser-se role-model está fora de moda. O célebre chavão de que as meninas boas vão para o céu e as más para todo o lado é a lei da arena pop. Se o rock foi o primeiro a mitificar os comportamentos amorais, ou revolucionariamente imorais dos seus ídolos, como Kurt Cobain, Janis Joplin ou Jim Morrison, cedo o pop percebeu que o choque tem um valor tremendo e que ser um ultraje é vendável, até porque, no pop, não existe má publicidade.
 
Sem uma estratégia centrada numa persona pública irreverente e instável, não teria tanto sucesso alguém como Nicki Minaj. Minaj impôs-se logo a partir do seu primeiro trabalho, 'Pink Friday' (2010), principalmente por causa das suas altercações com a veterana Lil Kim.
Tudo começou porque Kim acusou Minaj de utilizar gravações inéditas suas para várias canções, particularmente Automatic. A troca de insultos, com mais ou menos classe, por parte de ambas, cedo passou das entrevistas para a música. Na sua mixtape 'Black Friday'  (2011), Lil Kim não só escreve uma música directamente sobre o facto de Minaj lhe ter roubado canções e toda uma imagem, como ainda usa um sampler de Did it on 'em de Minaj para cantar a letra absolutamente degradante de Pissin' on 'em. E se Minaj já havia deixado uma mensagem indirecta com o seu Roman's Revenge, no segundo álbum, 'Pink Friday: Roman Reloaded' (2012) responde às canções de Lil Kim com Stupid Hoe.
No meio de tudo isto, a música de Minaj foi o que menos interessou. O que é natural, porque trata-se de um projecto musical que nem sabe o que quer ser: apresenta-se como rap, mas não só Minaj é incapaz de fazer uma rima decente, como parece convencida de que fazer rap é dizer palavrões e ser ultrajante gratuitamente. As suas canções valem essencialmente pelos refrãos orelhudos que, de facto, ficam no ouvido. E o que se torna mais irónico é que a única canção de Nicki Minaj que até aos dias de hoje consegue ser quase boa é Automatic, precisamente aquela que plagiou de Lil Kim. Mas a verdade é que Kim não precisava de se ter preocupado tanto. Não há maneira de algum dia uma estrela meramente folclórica como Minaj conseguir ser aquilo que, no pop, é a cantora de 'La Bela Mafia'.
 
Mas este tipo de folclore faz falta ao pop. Outro exemplo recente disso mesmo foi o de Lana del Rey. Não foi tanto por insultar ninguém que se destacou, mas a menina de 'Born to Die' (2012), cuja música está longe de ser má, foi um sucesso inesperado: não dança, não costuma aparecer seminua, não tem, de resto, uma postura particularmente erotizada, as letras parecem ser mais rock do que pop. Mas Lana del Rey tem fama de ser incapaz de cantar mal ao vivo, está nitidamente pouco à vontade quer no palco quer nos videoclips, e teve algumas prestações desastrosas em programas de televisão onde foi cantar ao vivo.
O facto é que criou um público que lhe é fervorasamente fiel, e, independentemente daquilo que possam ser as suas performances, a música tem, de facto, bastante qualidade. Soa ao que soaria Brintey Spears, se Britney Spears fosse cantora. E talvez isso explique por que a sua música, mesmo sendo apenas remotamente pop, a transformou numa mega-estrela pop. Canções como Born to Die, Blue Jeans, ou Summertime Sadness, particularmente na versão remisturada por Cedric Gervais, demonstram que, pop ou não, Lana del Rey consegue ser mais do que fogo de vista.


7. a falta de cultura

Mas ninguém tem sido, provavelmente, um fenómeno pop tão grande como Lady Gaga, desde Madonna. Camille Paglia, a pensadora mais avançada e arguta no pensamento sobre os fenómenos pop escreveu um artigo brilhante em que explica detalhadamente por que Lady Gaga representa a morte do sexo, mas também a morte de tudo o que o pop foi desde Madonna. Que Gaga seja a morte do erotismo, não apresenta dúvidas. A sua figura artificial e fabricada é um delírio kitsch e camp, além de um acumular de dejá-vues, e a sexualidade não convive pacificamente com estas características.
Lady Gaga será sempre uma das artistas mais importantes em toda a indústria musical. Importante porque ela marca o fim do valor argumentativo e contestatário da pop, marca a definitiva falta de inteligência ao produzir música que será consumida por grandes públicos, assinala a nítida ausência de cultura musical num público mais jovem que ouve música pop mas não lhe conhece sequer a história mais recente. Gaga é, de facto, tão desinteressante, tão ridícula, tão vazia e tão inculta como o público que a ouve e que ela representa. 
Quem é este público? Trata-se um largo conjunto de jovens que cresceu estando continuamente perante a televisão mas que, paradoxalmente, foi incapaz de assimilar qualquer referência da cultura popular (pop); uma geração que não teve a necessidade de uma verdadeira luta social e que se desviou, ou foi desviada através de uma educação sobreprotectora, de qualquer sugestão de uma luta tal; que substituiu a conversa, enquanto exercício primeiro do pensamento, pelas trocas de palavras lacónicas pelo telemóvel e pela internet; e que não foi bem preparada para as relações humanas, que aprendeu a viver sempre através de um qualquer aparelho tecnológico. A tecnologia sabotou, começamos agora a percebê-lo, o modo de estar da sociedade. A geração das revoluções dos anos 70, do Woodstock, do Flower-Power não asseguraram a subsistência dos valores que defendiam: o yuppie surge da rápida conversão às promessas do capital dessas comunidades histéricas que não procuravam mudar a sociedade, apenas fazer uma birra perante os pais. Se há geração verdadeiramente digna de desprezo, é a dos hippies do Woodstock, precisamente aquela que não incutiu nos seus descendentes senão o oposto daquilo que haviam defendido para si. 
Daí a frieza cultural e ideológica do público de Gaga. Quando ouvem aquela figura teatral, artificial, estilizada e aberrativa, sentem-se a exercer uma espécie de liberdade de expressão. Que ela tenha dado voz a tanta gente só mostra como as revoluções dos anos 70 trouxeram tudo menos liberdade e pluralidade. É precisa uma pop-star forçada e idiótica mas astuta para que alguém possa assumir-se diferente e enfrentar as consequências de ser diferente, ainda que não passe, bem vistas as coisas, de uma cópia do seu ídolo. Ou seja, não só esse público é inculto e ignorante, como, o que é mais grave, profundamente inseguro.
O que distingue Gaga do seu público não é senão esse sentido de oportunidade: ela percebeu a crise de consciências que marca a actualidade e soube aproveitar-se dele para granjear sucesso. Essa é a sua importância para a música. Isso faz dela um ídolo, ainda que um ídolo com pés de barro.
 

A matter of pop (alguns videoclips)


Ke$ha: Take it Off (Do álbum 'Animal', 2010)



Ke$ha: Blow (do EP 'Cannibal', 2010)


Christina Aguilera: Fighter (do álbum 'Stripped', 2002)


Christina Aguilera: Your Body (do álbum 'Lotus', 2012)



Adele: Rolling in the Deep (do álbum '21', 2011)


Adele: Set Fire to the Rain (do álbum '21', 2011)



Shakira: Whenever Wherever (do álbum 'Laudry Service', 2001)


Shakira: Rabiosa (do álbum 'Sale el Sol', 2010)


Rihanna: Man Down (do álbum 'Loud', 2010)



Rihanna: We Found Love (do álbum 'Talk That Talk', 2011)


Justin Timberlake: Sexyback (do álbum 'Futuresex/ Lovesounds', 2006)


Justin Timberlake: Mirrors (do álbum 'The 20/20 Experience', 2013)


Nicki Minaj: Automatic (do álbum 'Pink Friday', 2010)


Nicki Minaj: Stupid Hoe (do álbum 'Pink Friday: Roman Reloaded', 2012)


Lana del Rey: Born to Die (do álbum 'Born to Die', 2012)


Lana del Rey vs. Cedric Gervais: Summertime Sadness (do álbum 'Born to Die', 2012)


Lady Gaga: Poker Face (do álbum 'The Fame', 2008)


Lady Gaga: Judas (do álbum 'Born This Way', 2011)

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

os nus e os esfarrapados

Será verdadeiramente possível desligarmos um objecto artístico do seu contexto? Esta é uma pergunta que interessa fazer, principalmente quando estamos perante um objecto que precisamente se afirma como político, opinativo e polémico. É precisamente este o caso de ‘’I’m M’’ (2013) do realizador alemão Christian Von Borries, um documentário dividido em cinco partes sobre o México. 
Há uma vertente nitidamente política neste trabalho de Von Borries, que começa, no primeiro capítulo do filme, com a questão da educação para as forças armadas e termina em acusações crassas de capitalismo, e dos seus perigos e artimanhas que prejudicam e destroem a vida moderna. 
‘’I’m M’’ apresenta-se como um documentário de ficção científica. E a referência ao scy-fy não se esgota no subtítulo. Ao longo do filme, há freeze-frames em que lemos pequenos aforismos sobre o capitalismo, escritos num lettring bastante típico dos primeiros grandes filmes de scy-fy e, ao mesmo tempo, nota-se que Von Borries quis, nitidamente, tornar a realidade que documenta de tal forma incrível que ela quase se apresenta como ficção, uma espécie de ficção de mau gosto a tender para o folhetim. 


Por este filme, passam telenovelas, a telescola, as paradas militares, os bares e as festas, os telemóveis, a promessa da tecnologia, o emprego precário, etc, etc, etc. 
As imagens são toscas e por vezes têm qualquer coisa de amador, mas esse efeito não condiz mal com os objectivos do filme, que constantemente é interrompido por separadores e citações, tornando-se quase uma espécie de jogo interactivo transformado em filme. Mas há um problema grave com ‘’I’m M’’ que não se prende essencialmente com o filme em si. 
O facto de ser um documentário, como Regina Guimarães e Saguenail muito bem viram em ‘’Documentira’’, não o torna necessariamente imparcial. Devemos partir do princípio que também o documentário explora um ponto-de-vista sobre um assunto, não o assunto por si só. Assim, o documentário não é insento, ele tem uma opinião, e faz-se para arguir essa opinião, é exercício crítico. 
Mas ‘’I’m M’’ não é o exercício de uma crítica, é o exercício de um julgamento. É de tal forma tendencioso na forma como mostra o México, que é impossível entendê-lo como crítica. Este filme aponta o dedo aos mexicanos, acusando-os de capitalistas e não deixa sequer a sugestão de que possa haver mais México do que aquele que é mostrado. 
Uma atitude tão tendenciosa pode não ser a mais ética, mas certamente não é tão insultuosa quanto isso. 
O que é então insultuoso em ‘’I’m M’’? Precisamente o seu contexto. Reconheçamos, neste ano de 2013, a ironia de um realizador alemão, da Alemanha da chanceler Merkl, realizar um filme em que a acusa os mexicanos de serem capitalistas. 
O objectivo era fazer um filme sobre capitalismo, sobre os seus perigos? Que boa notícia que exista um alemão consciente desses perigos. Mas se queria fazer um filme sobre esse assunto, teria encontrado muito melhor material no seu próprio país. Mas como pode um alemão, no momento em que a Alemanha se faz valer das dívidas do sul da Europa que administra com uma rigidez ditatorial, acusar os mexicanos de uma política capitalista? Como pode um alemão, cujo país tem manipulado a Europa de tal forma que os países mais pobres que os habitantes destes não conseguem senão trabalho precário, apontar o dedo ao subemprego mexicano? Como pode um alemão, cujo país contribuiu para transformar o projecto da União Europeia num projecto financeiro sem nenhuma preocupação cultural, gozar tão abertamente com o díptico telenovela/telescola? 
Não se poderia, claro, proibir Christian Von Borries de fazer este filme. A Arte deve ser livre, o mais livre possível. Mas deve ser igualmente consciente. Torna-se impossível não encarar ‘’I’m M’’ como um julgamento insidioso directamente apontado aos mexicanos, só porque sim. 
Von Borries está tão alheado da realidade europeia que não vê que o país perfeito para realizar o seu filme teria sido a própria Alemanha? Não parece credível. Cede então a alguma pressão algo ditatorial? Ou os defeitos dum país estrangeiro são menos defeitos se o país for o seu? 
E esta falta de ética, esta amarga ironia, seria desculpável se o filme fosse, ao menos, muito bom. Mas o filme de Von Borries poderia desviar-se de certos clichés sobre o capitalismo e não o faz. Nos seus piores momentos, este filme roça o discurso do hippie charrado que critica a sociedade capitalista que integra quando lhe é conveniente. 
Há uma anedota bastante conhecida, sobre um homem nu que diz a um que usa roupas esfarrapadas: ‘’Falta-te um botão!’’ O caso de ‘’I’m M’’ parece ser precisamente esse.

os monstros com sentimentos


Como é que um filme consegue ser polémico sem ser sensacionalista e frívolo? Como é que se faz um filme controverso sem sacrificar tudo em busca precisamente de controvérsia?
Miguel Gomes poderia escrever, depois de ‘’Redemption’’ (2013), um tratado sobre este assunto. A sua mais recente curta-metragem é, sem dúvida, objecto controverso, mesmo que não chegue propriamente a gerar polémicas. No entanto, o seu lado polémico surge apenas veladamente ao longo do filme, e só se assume, com um sorriso condescendente, nos créditos finais.
‘’Redemption’’ é constituído por quatro cartas, lidas em quatro línguas por quatro pessoas diferentes, em quatro tempos e lugares e situações diferentes.
Em 1975, um rapaz de Vila Real escreve para Angola, para os pais que se preparam para regressar a Portugal depois do fim da era colonial, lastima a perda dos amigos angolanos e fala de Portugal como lugar triste e miserável que o deprime. Em 2011, um homem italiano recorda o seu primeiro amor, vivido após a queda de Mussolini, em plena revolução, um amor impossível e triste cuja dor nunca passou. Em 2012, em Paris, um pai escreve à sua filha recém-nascida e avisa-a que, conquanto nada lhe falte em termos materiais, nunca conhecerá verdadeiramente o seu pai e nunca dele receberá o amor que ele desejaria dar-lhe. Em 1977, em Leipzig, uma mulher debate-se, no dia do seu casamento, com a pressão politica, o fantasma perene de Hitler que lhe permanece na cabeça como um perigo, representado pela obsessão por uma ópera de Wagner.
O texto das cartas é belíssimo, comovente nos seus melhores momentos, há nelas uma sinceridade que desarma, mesmo quando falam de questões complexas. A carta do pai parisiense em vésperas de perder as eleições, é o exemplo máximo: a sua carta é fortíssima e, ainda que de certa forma quase soe desafectada, ela expressa uma preocupação e um carinho protector que nos deixa na dúvida: será que o remorso pela incapacidade de dar amor não denuncia já uma capacidade de amar?
O envolvimento da política nos assuntos sentimentais das pessoas que escrevem as cartas é um dos aspectos mais interessantes neste filme. Ele recupera o sentido humano das revoluções e das mudanças que vemos imediatamente como fenómenos sócio-políticos e que, muitas vezes, nos esquecemos de ver como acontecimentos capazes de ter um impacto real na vida dos indivíduos. O facto das imagens do filme não terem sido filmadas (todos os planos são feitos com imagens de arquivo) também contribui para conferir ao filme um aspecto quase documental, torna-se de tal forma realista que quase temos dificuldade em assumir o filme como objecto de ficção.
Os créditos finais vêm alterar substancialmente a nossa percepção do filme: o rapaz que em 75 escrevia de Vila Real para Angola é Pedro Passos Coelho, o homem que após a queda de Mussolini viveu o seu primeiro amor é Sílvio Berlusconi, o pai que escreve em 2012 à sua filha recém-nascida antes de perder as eleições é Nickolas Sarkozy e a noiva de Leipzig é Angela Merkl. Trazendo muito embora as figuras políticas mais controversas da política actual, este filme faz justiça ao seu título, é uma tentativa de redenção dos nossos monstros, da nossa galeria de carrascos que, somos aqui lembrados, são também pessoas, que atravessaram e atravessam os seus dramas, os seus problemas, as suas dores e as suas pressões, que não estão imunes aos sentimentos que são comuns aos nossos.
É um propósito louvável, é certo, relembrar que até os monstros têm sentimentos, e certamente este filme é extraordinariamente eficaz, elegante e conciso na exploração desses potenciais sentimentos (que, como se acrescenta, são fruto da imaginação dos autores do filme). Mas quase se arrisca dizer que a revelação da identidade das pessoas que escrevem as cartas é desnecessária. O filme é de tal forma intenso, de tal forma belo, que dispensava até essa justificação, ou essa expiação política. Sendo que a ‘’rendenção’’ precisava de um rosto reconhecível, é igualmente verdade que todos também temos um monstro dentro de nós, e todos precisamos de redenção. Ainda que o vínculo aos políticos europeus esteja longe de ser nocivo ao filme, diríamos que o filme se bastava sem isso. É provavelmente a melhor produção de Miguel Gomes até à data.


REDEMPTION from O SOM E A FÚRIA on Vimeo.

corpo sem ironia


As teorias de Susan Sontag sobre forma, conteúdo e estilo _expressas essencialmente nos ensaios Against Interpretation e On Style _ iniciaram brilhantemente o diálogo sobre o problema dos motivos da obra de arte.  O objecto artístico basta-se a si mesmo? Necessita de uma razão, de um conteúdo? É certamente alguma coisa no mundo, mas deve ser um comentário sobre esse mundo? Sontag respondeu a estes desafios, por vezes brilhantemente, mas podemos afirmar, hoje, que as suas teorias já demonstraram as suas falibilidades e não parece tão clara a valência da obra de arte só enquanto objecto de estética ou estilo.
O problema do motivo é um dos problemas essenciais da curta-metragem de João Pedro Rodrigues ‘’O Corpo de Afonso’’ (2013). O objectivo do realizador seria recriar a ideia do corpo de D. Afonso Henriques. Desde as sucessivas dinastias monárquicas ao Estado Novo e até ao pós-25 de Abril, Afonso Henriques tem sido alvo de mistificações, distorções e recriações, desde aquilo que se encontra nas crónicas históricas à famosa estátua de Guimarães.
Para personificar possíveis aspectos do corpo de Afonso, João Pedro Rodrigues filma 24 homens a despir-se, falando sobre os seus trabalhos, explicando as suas tatuagens e lendo textos históricos ou respondendo a perguntas sobre a formação de Portugal. Estes homens são todos galegos, e é em galego que falam, o que é já uma forma de subtilmente impor a presença do rei.
Os corpos são filmados em frente à tela verde, onde muitas vezes se projectam várias imagens, que pressupõem enquadrar determinada sequência, evidenciando-lhe o sentido.
Mas, apesar do seu natural sentido de humor e da sua subtileza conceptual, algo falha redondamente em ‘’O Corpo de Afonso’’. Há uma pesada ironia, que resulta muitíssimo bem, nesta recriação de Afonso. A maioria destes homens são desempregados, ou trabalham como strippers, ou são culturistas que transpiram amor-próprio. Apresentar as possíveis personificações do rei como pessoas financeiramente inaptas, sem ambição, com vidas difíceis, sem qualquer cultura histórica e sem outro centro de interesse próprio que não o corpo é uma piada cruel e deliciosa sobre a mística figura do primeiro rei, é tomá-lo não como herói mas como ser humano contraditório e a vários títulos falhado, como sabemos que Afonso Henriques também foi. Essa ironia será o ponto de vantagem do filme. O que corre mal, então? É que ao realizador de ‘’O Fantasma’’ (2000) faltou entender que essa ironia não se devia ter detido na persona do rei, deveria ter sido estendida ao seu aspecto físico, seria mais intensa se tivesse um correspondente na faceta mais directamente erótica de Afonso.
Por um lado, Rodrigues denuncia e destrói a mitificação do rei fundador, por outro, na questão física, continua descomplexadamente essa mitificação. O filme, na sua totalidade, parece incapaz de tomar uma decisão sobre o que quer fazer. Os homens são filmados a ler uma crónica que descreve o corpo do rei como disforme e feio, e é impossível que João Pedro Rodrigues não saiba que é praticamente impossível que um nobre borgonhês da Idade Média tivesse um corpo robusto e definido, por mais que tivesse vocação militar. Portanto, a opção de filmar homens com físicos de culturista, ou, pelo menos, com físicos belos de atletas gregos, a relembrar quase as recriações clássicas de Leni Riefenstahl em ‘’Olympia’’ (1938), não é, no filme, senão uma continuação da tendência que precisamente o filme tenta contrariar.
Este problema torna-se ainda mais intenso quando, em determinados momentos, se fica com a impressão de que filmar estes homens quase nós é mais importante do que propriamente o jogo com a figura de D. Afonso Henriques. Afonso quase se torna uma espécie de desculpa para as imagens e as falas dos 24 galegos que são ora cómicos, ora tristes, ora irritantes.
O que, acima de tudo, é de lastimar em ‘’O Corpo de Afonso’’ é que João Pedro Rodrigues pareça ser perfeitamente capaz de tomar uma figura histórica magnânima e de a desmascarar. No entanto, ironizando com eficácia com a persona do fundador, o corpo do rei propriamente dito é um corpo sem ironia que, nos seus piores momentos, roça a futilidade. A curta-metragem torna-se assim confusa, e algo nela acaba por parecer estar à procura de um motivo, que ora é encontrado, ora se perde de vista.


domingo, 13 de outubro de 2013

13 de Fevereiro de 1979, terça (fragmento)

 

 
No dia 7, morte da prima Leonor. Era alguém pequeno e delicado, com pesado cabelo, que me manifestava muita amizade, e que me ofereceu um saiote de renda antiga  um castiçal que hoje acendi para iluminar o que ela desconhece da morte.
Hoje, a Françoise telefonou de manhã a pedir que o Zé lhe levasse alguns legumes; o Marc veio encontrar-se com a mulher do Mottoule, que precisa de um cozinheiro para o restaurante que vai abrir, e almoçou connosco. Vivo com animais, mas quanto a pessoas sinto-me numa ilha deserta. Falando da Françoise, e do Marc, é como se dissesse: hoje fiz sinais para um barco, hoje um veleiro passou pelo porto.
Evidentemente que não gosto menos do silêncio, mas gostaria de poder abordar naturalmente os outros, trocar com eles alguns fósforos, já não digo velas, para iluminar este caminho de implicações imprevisíveis e desconhecidas que a prima Leonor, que tinha um rosto cantante, deixou com oitenta anos, há dias.
Conversa com o Augusto sobre o impasse.
 
Maria Gabriela Llansol
Numerosas Linhas / Livro de Horas III
2013, ed. Assírio e Alvim
pintura de Georges de la Tour

trielo

Portugal não é um país particularmente rico em arte conceptual. Aparte uma série de experiências que não vão além da repetição de experiências feitas por artistas estrangeiros, há poucos nomes a citar no campo do conceptual. Os imitadores beneficiaram do fechamento cultural do país durante o Estado Novo e, com as vantagens de estudar no estrangeiro, foi possível a vários artistas conquistar aclamação com trabalhos pobres e pouco criativos. Helena Almeida é, por isso, um caso praticamente excepcional na arte portuguesa. O seu universo de certa forma autista só pontualmente tem referências visíveis e, mesmo nas suas primeiras exposições, o que se nos apresenta é um cruzamento entre fotografia, pintura, escultura e performace, um projecto difícil mas apaixonante.


Uma das suas séries mais interessantes é uma das intituladas ''Pintura Habitada'', de 1976. Helena Almeida utilizara já a técnica de pintar ou desenhar sobre fotografias, mas esta série inicia uma nova problemática, que se prende essencialmente com o espaço. A artista chama ao que faz neste trabalho ''pintar para a frente''. Nas fotografias, o modelo é sempre a própria Helena Almeida, fotografada pelo marido, o arquitecto Artur Rosa. Neste caso, vê-mo-la segurando um pincel. A intervenção com pintura é uma mancha de tinta azul que vai sendo maior de fotografia em fotografia, até ocultar por inteiro o corpo. Esta pintura existe sem superfície, está como que suspensa no espaço entre o modelo fotografado e o espectador. A bidimensionalidade torna-se então um conceito confuso, porque o muro crescente de tinta azul convoca toda uma espacialidade sem outra saída que não o tridimensional. É diferente daquilo que acontece numa fotografia. A fotografia é representação bidimensional do que é tridimensional. Mas aqui, a tinta azul contrasta significativamente com o preto-e-branco da fotografia, assume-se como elemento de natureza distinta e, o que é mais decisivo, encena uma realidade que uma fotografia não poderia, à partida, captar. Por isso este gesto de ''pintar para a frente'' é um dos aspectos mais desconcertantes da obra de Helena Almeida. Ele origina um onirismo que toca o abstracto, o que nos confronta com as limitações do que entendemos como figurativo.
Nas fotografias, a artista surge-nos vestida de negro, com uma expressão serena que tende para o melancólico. Nunca nos fita directamente nos olhos. Acaba por ficar oculta pela pintura, que se torna muro. Esse muro é desviado, mas a série termina antes que ela esteja novamente revelada. Poderemos interpretar tudo isto como uma anulação? A serenidade com que o rosto de Helena Almeida aceita a ocultação, não será precisamente um reconhecimento de que, ali, ela cessa de existir para se tornar parte da obra, disposta inclusivamente ao sacrifício?
A rejeição constante da ideia de auto-retrato na obra da artista pode confirmar esta ideia. De facto, o que aqui existe é auto-representação. A figura de Helena Almeida é sempre discreta, apesar de central, e contida, apesar de expressiva. Nesta ''Pintura Habitada'', sobressai a relação física do corpo com a obra, simbolizada pela tinta. Mas essa relação física propaga-se ao espectador, que passa a ter uma relação, também física, com aquela muralha de tinta e, consequentemente, com o corpo da artista, então auto-representado. Em última análise, é essa a habitação desta pintura: definindo distâncias, marcações espaciais, ela cria um trielo com a artista e o observador, deixa de ser pintura para ser espaço, capaz de suportar vida e energia.
E se a obra de Helena Almeida rejeita as disciplinas artísticas, é por convocar um grande número delas, e não devemos esquecer-nos de incluir a arquitectura.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

a angústia da repetição

O rock foi sempre campo por excelência para as angústias humanas. Sendo um tipo de música que se destaca pelo peso, pela agressividade redentora e pela expressão directa dos sentimentos, é apenas normal que o rock tenha sido o primeiro género de música a expressar-se com uma sinceridade desarmante e violenta. Desde o lançamento do primeiro álbum dos Nine Inch Nails, ''Pretty Hate Machine'' (1988), Trent Reznor tem-se afirmado como um dos mais criativos e inteligentes músicos rock. Após o álbum instrumental ''Ghosts I-IV'' (2008), Reznor parecia pouco interessado em continuar com o projecto dos Nine Inch Nails, razão acrescida para ''Hesitation Marks'' (2013) ter sobre si expectativas acrescidas.




Depois do lançamento do single de Came Back Haunted, foi disponibilizada na internet uma segunda canção, Copy of A.
Trata-se de uma canção que enfatiza a dimensão electrónica que existiu desde sempre nos Nine Inch Nails e que fazia a ponte entre o rock e o industrial. O som do sintetizador marca do ritmo de Copy of A e, ao contrário do que acontecia em clássicos como Hurt ou We're in This Together, Reznor parece embalado numa espécie de dormência _não é contemplativo e comovido como no primeiro exemplo, nem grita nem desespera como no segundo.
Em Copy of A, a ideia do desespero, da angústia da repetição, é clara logo pela performance vocal de Reznor que se coaduna com a instrumentalização repetitiva e insistente que não é quebrada senão brevemente após os refrãos. A letra tem aqui um lugar central, e deixa à mostra um Reznor poeta, faceta do músico que é sistematicamente negligenciada. Aqui, assume uma espécie de síndroma de clonagem muito característico da cultura contemporânea: diz-se cópia de uma cópia, sombra de uma sombra, eco de um eco. Copy of A é uma espécie de monólogo em que Trent Reznor, por um lado se define continuamente como resultado previsível de uma cultura controladora, castradora e formatada e, ao mesmo tempo, interpela um tu que ora é ele mesmo (no refrão), ora é uma entidade que se assume como figura autoritária que coordena a repetição dos indivíduos, uma figura do Poder a um tempo definidor e anulador, que os esvazia até que deixem precisamente de ser indivíduos.
Copy of A também contraria a ideia culturalmente enraizada de que a diferença cria solidão e a igualdade aceitação. No antigo Egipto, aconselhava-se o abafamento de qualquer invulgaridade, a promessa de gregatismo e sucesso estava na formatação. Essa ideia permanece, mas Reznor parece afirmar justamente o contrário. A solidão e a angústia são os ecos que mais se fazem ouvir em Copy of A. O princípio promissor da vida foi condicionado, até que se perdesse o eu original e sobrasse apenas a cópia de um modelo infinitamente copiado. A atmosfera tépida da canção ajuda a criar a sensação de fechamento, de que não há saída possível para o indivíduo que se descobre apenas como repetição.
Numa linha politizada que, no trabalho dos Nine Inch Nails, teve o seu ponto máximo em ''Year Zero'' (2007), Copy of A também não deixa de soar como uma crítica à lógica da internet, em que a música é copiada de site em site, perdendo-se o vínculo entre músicos e ouvintes representado pelo objecto físico do disco ou do CD.
Tratando-se de uma das melhores canções de ''Hesitation Marks'', Copy of A é um comentário brilhante a uma era que perdeu os seus valores, em que ninguém sabe assumir um lugar no mundo nem procurá-lo sequer, e é irónico que seja alguém como Trent Reznor _que é tudo menos uma cópia de uma cópia _a chamar a atenção para o problema.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

as duas perguntas

A arte romântica é, até hoje, um campo de experimentação fascinante a nível da relação do Homem com o Mundo e do papel da arte nessa relação. A rejeição dos princípios algo castradores do segundo Neoclássico permitiu aos artistas do Romântico utilizar toda a técnica magistral de representação em favor de um universo que privilegiava o Homem, enquanto ser emotivo e psicológico. Se mais tarde a arte abstracta ou não-figurativa deu o salto definitivo na abordagem destes temas, o Romântico, que não existiu sem espartilhos, foi obrigado a ser muito mais imaginativo. As imagens da pintura romântica são representações de cenários possível, realistas, mas a sua poética fá-las ultrapassar-se a si mesmas. É a primeira era do ouro para o conteúdo, para o subtexto, para a subjectividade e a interpretação.
O ''Mar Gelado'' do alemão Caspar David Friedrich é um dos exemplos mais impressionantes e ousados da pintura romântica. Ousado porque a sua representação das placas quebradas de gelo tende para a abstracção, é uma paisagem de tal forma idealizada que parece não encontrar correspondência senão na nossa psicologia.

Noutros trabalhos, Friedrich não é tão extremista, mas não deixa nunca de ser subtil. É poderosíssima a imagem do seu ''Caçador na Floresta''. Numa primeira observação, a presença humana passa quase despercebida. A minúscula figura do caçador, de costas, não passa de um vulto estático no fim do caminho. É de facto um caminho que está diante de nós, um caminho definido no espaço vazio entre árvores altíssimas, que se cerra naquele ponto que o caçador enfrenta. As árvores estão secas, há neve presa nalguns galhos e pouco se avista do chão senão neve também.
O caçador assume-se como uma projecção nossa, ele é o nosso lugar naquela imagem. E Friedrich parece colocar assim duas perguntas: Que floresta é esta? e Quem somos nós/ sou eu nesta floresta? Trata-se de uma das distinções cruciais entre a arte do Neoclássico e a arte do Romântico: a primeira faz afirmações, a segunda faz perguntas.
A floresta assume o lugar do próprio Mundo: as árvores são de uma escala monumental e irrealista, em face delas o caçador é uma formiga, e cada uma das árvores não tem particular identidade: os galhos vão-se misturando até formarem um difícil emaranhado, uma massa asfixiante e incompreensível. O céu cinzento não é visível senão no topo, entre as árvores perpassa apenas escuridão.
Em termos pragmáticos, no entanto, não há nada de dificultoso naquele lugar. Por próximas que as árvores cresçam umas das outras, seria sempre possível ao caçador passar por entre elas. É, por isso, a nossa percepção que transforma a pintura na obra grandiosa que é. O próprio Friedrich conta com isso. A prova está no elemento primeiro da composição: ainda entre o espectador e o caçador, encontra-se um tronco decepado. De repente, parece-nos que não só aquele homem não pode avançar, como que não pode voltar para de onde veio. E se o tronco, por si só, não é bloqueio suficiente, pousado nele está ainda um corvo. É o único elemento, além do caçador, que não parece ali totalmente desprovido de vida  _no entanto, a sua presença é tudo menos apaziguadora. Ele funciona como uma espécie de guardião dos portões, é o elemento mais diminuto de toda a pintura, mas o seu poder é extraordinário: ele zela o fechamento desse mundo imenso e intrincado em que o caçador está encurralado.  O que nos leva à segunda pergunta de Friedrich: Quem é o Homem em face daquela floresta? À resposta não falta a poética, a beleza e a angústia tão características do Romântico. O Homem é aqui elemento de pouca significação, é um vulto esvaziado de traços específicos, uma presença cabisbaixa perdida num lugar sem identidade que em tudo o ultrapassa, um espaço confinado do qual, mesmo podendo sair fisicamente, nunca poderá escapar psicologica e emocionalmente.
Essa ideia torna-se ainda mais intensa quando nos lembramos que na floresta, o caçador está na mesma posição que nós, perante o quadro.

o anjo da crueldade


O personagem criado na literatura por Thomas Harris e levado ao ecrã pela primeira vez em 1986 por Michael Mann em ''Manhunter'' não se tornou imediatamente a lenda que é actualmente. Só quando Jonathan Demme, em 1991, retoma a personagem de Hannibal Lecter em ''The Silence of the Lambs'' ele se torna verdadeiramente mítico. Para isso terá contribuído a mudança de actor. Anthony Hopkins parece ter nascido para interpretar o papel do brilhante psiquiatra levado à prisão pelos seus vícios canibais, que funcionam quase como apenas mais uma excentricidade num homem culto, requintado e único. ''The Silence of the Lambs'' vive essencialmente da figura torturada e persistente de Jodie Foster como agente Clarice Starling _é a ela que a câmara segue constantemente, é ela o centro da narrativa e Lecter não aparece senão, ao longo de todo o filme, em cerca de 16 minutos. Mas a interpretação de Hopkins é tão intensa e contundente que, muito mais importante do que ter-lhe conquistado o Oscar para Melhor Actor, conseguiu elevar a sua personagem a um estatuto praticamente insólito entre os grandes vilões do cinema. Além de sequelas, boas e más, e de uma série de televisão, com ou sem Hopkins, o nome de Hannibal Lecter chegou ao imaginário comum, é uma referência incontornável para falar do mal, da crueldade e da força maligna que existe nos homens e os move por vezes.
Mas a performance de Anthony Hopkins, por impressionante que seja, não foi o único factor para o estatuto lendário de Lecter.

''The Silence of the Lambs'' está longe de ser um filme gore, a sua violência é essencialmente psicológica e é preciso não esquecer que a sinopse se centra em Clarice quando esta persegue um outro assassino, conhecido como Buffalo Bill. Lecter, já então encarcerado, aproveita do facto do assassino ter sido seu paciente para negociar um acordo de transferência de prisão, o que, com o desenrolar dos eventos, viabilizará a sua fuga. Neste contexto, surge precisamente uma das cenas mais intensas de todo o filme _e a único em que assistimos a um crime cometido pelo bom psiquiatra. Munido com uma peça de uma caneta, Hannibal consegue escapar da jaula onde está preso e eliminar os dois seguranças que o zelam. Quando a equipa da polícia chega, assistimos a uma cena que, aparte a sua força no contexto do filme, se afirma como um conseguimento artístico assinalável. Um dos polícias encontra-se crucificado no gradeamento da jaula. Os seus ombros parecem suspender-se de três longas faixas de tecido, branco, vermelho e azul _as cores da bandeira americana _ que, debaixo dos braços, se desprendem frondosamente. À contraluz, aquele homem crucificado com os intestinos de fora, torna-se um anjo da crueldade. A sua figura interpela directamente a de Cristo, ele é um mártir cujo rosto se mostra aterrorizado perante o mundo maligno que o traiu. As asas, translúcidas, revelam ainda o gradeamento, como se impedissem aquela figura de ascender e o tecido vermelho é como sangue, um símbolo de drama que se impõe na imagem. O polícia, símbolo de autoridade, encontra-se suspenso nas cores da bandeira americana, trata-se do país que deve proteger, o país pelo qual acaba de ser crucificado _por outro lado, trata-se da América que, mesmo em era pré-11 de Setembro, é já a América obcecada com a segurança e o controlo, valores vencidos facilmente pela genialidade de um homem só que, através daquele aparatoso homicídio, ironiza com toda uma Instituição, com todo um sistema de valores.
No que a breve sequência do homicídio cometido por Lecter tem de político, de simbólico, de a um tempo cruel e belo, é um exemplo extraordinário de uma obra de arte intensa que se destaca e se autonomiza num filme que é já, por si só, uma obra de arte.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

O Tempo





















O tempo longo, longo...
Longo...
E simultaneamente tão precipitado!
Tão desordenado, tão vazio.
Este verão das ruas...
Tudo fora, além das casas,
mas invasor, invadindo-as.
Aqui mesmo, rua estreita, comum cidade...
mas...
e em Bruxelas e em Ferreira,
quiçá na China?
Sempre a mesma cálida solidão.
O tempo aniquilado mas irritante.
E a pergunta uniforme:
para que se vive, como se vive?
Isto,
monotíssimo, desenrolando.
Isto, o prazo de uma vida!
«A tua vida tecê-la-ás pela tua mão».
Ah! ah!
Blasfémia.
Estupendo ridículo, imoral até.
Que teceu e que tece,
que poderá ter tecido a minha mão?
Nunca, pelo menos,
a minha primeira vida.
Nem a segunda,
imprevista e sentimental.
Nem esta, esta, derradeira,
descansada ou como tal.

Haveria a minha pobre mão,
ferrenha, convicta e cabalística,
de fazer no ar os seus firmes traços?
Ah! ah!
Os outros apanham os frutos já maduros
e ficam a julgar,
a julgar que o seu desejo os corou.
Tolos!
Que foi que fizeram?
Levantaram este braço.
Mas esse gesto mesmo...
Não, não foi a insuficiência do gesto.
O que foi, foi o meu deserto,
os caminhos áridos.
Áridos, secos, amargos.
Mais um Verão...
Mais um Verão,
mais uma jornada,
mais uma época.
O  verão remata sempre qualquer coisa.
Depois dele é que volta a velha vida.
E quanto mais ela passa,
se repete e se eterniza,
mais ansiada é a nossa pergunta:
porque e para quê?
como se vive?
para onde é a ida?

Irene Lisboa
Diário Ilustrado,
8/10/1957
pintura de Michele del Campo

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Nine Inch Nails: Came Back Haunted



Letra de Trent Reznor
Do álbum 'Hesitation Marks' (2013)
Vídeo de David Lynch






(...)
Now I've got something you have to see
They put something inside of me
The smile is red and its eyes are black
I don't think I'll be coming back

I don't believe it, I had to see it,
I came back, I came back haunted
(...)