Como é que um
filme consegue ser polémico sem ser sensacionalista e frívolo? Como é que se
faz um filme controverso sem sacrificar tudo em busca precisamente de
controvérsia?
Miguel Gomes poderia
escrever, depois de ‘’Redemption’’ (2013), um tratado sobre este assunto. A sua
mais recente curta-metragem é, sem dúvida, objecto controverso, mesmo que não
chegue propriamente a gerar polémicas. No entanto, o seu lado polémico surge
apenas veladamente ao longo do filme, e só se assume, com um sorriso
condescendente, nos créditos finais.
‘’Redemption’’
é constituído por quatro cartas, lidas em quatro línguas por quatro pessoas
diferentes, em quatro tempos e lugares e situações diferentes.
Em 1975, um
rapaz de Vila Real escreve para Angola, para os pais que se preparam para
regressar a Portugal depois do fim da era colonial, lastima a perda dos amigos
angolanos e fala de Portugal como lugar triste e miserável que o deprime. Em
2011, um homem italiano recorda o seu primeiro amor, vivido após a queda de
Mussolini, em plena revolução, um amor impossível e triste cuja dor nunca
passou. Em 2012, em Paris, um pai escreve à sua filha recém-nascida e avisa-a
que, conquanto nada lhe falte em termos materiais, nunca conhecerá
verdadeiramente o seu pai e nunca dele receberá o amor que ele desejaria
dar-lhe. Em 1977, em Leipzig, uma mulher debate-se, no dia do seu casamento,
com a pressão politica, o fantasma perene de Hitler que lhe permanece na cabeça
como um perigo, representado pela obsessão por uma ópera de Wagner.
O texto das
cartas é belíssimo, comovente nos seus melhores momentos, há nelas uma
sinceridade que desarma, mesmo quando falam de questões complexas. A carta do
pai parisiense em vésperas de perder as eleições, é o exemplo máximo: a sua
carta é fortíssima e, ainda que de certa forma quase soe desafectada, ela
expressa uma preocupação e um carinho protector que nos deixa na dúvida: será
que o remorso pela incapacidade de dar amor não denuncia já uma capacidade de
amar?
O envolvimento
da política nos assuntos sentimentais das pessoas que escrevem as cartas é um
dos aspectos mais interessantes neste filme. Ele recupera o sentido humano das
revoluções e das mudanças que vemos imediatamente como fenómenos sócio-políticos
e que, muitas vezes, nos esquecemos de ver como acontecimentos capazes de ter
um impacto real na vida dos indivíduos. O facto das imagens do filme não terem
sido filmadas (todos os planos são feitos com imagens de arquivo) também
contribui para conferir ao filme um aspecto quase documental, torna-se de tal
forma realista que quase temos dificuldade em assumir o filme como objecto de
ficção.
Os créditos
finais vêm alterar substancialmente a nossa percepção do filme: o rapaz que em
75 escrevia de Vila Real para Angola é Pedro Passos Coelho, o homem que após a
queda de Mussolini viveu o seu primeiro amor é Sílvio Berlusconi, o pai que
escreve em 2012 à sua filha recém-nascida antes de perder as eleições é
Nickolas Sarkozy e a noiva de Leipzig é Angela Merkl. Trazendo muito embora as
figuras políticas mais controversas da política actual, este filme faz justiça
ao seu título, é uma tentativa de redenção dos nossos monstros, da nossa
galeria de carrascos que, somos aqui lembrados, são também pessoas, que
atravessaram e atravessam os seus dramas, os seus problemas, as suas dores e as
suas pressões, que não estão imunes aos sentimentos que são comuns aos nossos.
É um propósito
louvável, é certo, relembrar que até os monstros têm sentimentos, e certamente
este filme é extraordinariamente eficaz, elegante e conciso na exploração
desses potenciais sentimentos (que, como se acrescenta, são fruto da imaginação
dos autores do filme). Mas quase se arrisca dizer que a revelação da identidade
das pessoas que escrevem as cartas é desnecessária. O filme é de tal forma
intenso, de tal forma belo, que dispensava até essa justificação, ou essa
expiação política. Sendo que a ‘’rendenção’’ precisava de um rosto reconhecível,
é igualmente verdade que todos também temos um monstro dentro de nós, e todos
precisamos de redenção. Ainda que o vínculo aos políticos europeus esteja longe
de ser nocivo ao filme, diríamos que o filme se bastava sem isso. É
provavelmente a melhor produção de Miguel Gomes até à data.
REDEMPTION from O SOM E A FÚRIA on Vimeo.
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