Às vezes para nos fazer ver determinada questão de uma forma diferente, basta que alguém saiba dar um ou dois argumentos realmente lógicos. Foi o que aconteceu comigo em relação à cultura pop, quando lia, recentemente, 'Vamps & Tramps' de Camille Paglia. Eu sou uma dessas pessoas que Paglia acha inacreditáveis, que não tem televisão nem ouve rádio, que consulta apenas alguns sites e blogs muito específicos. Por outras palavras, estou, intencionalmente, um pouco distanciado da cultura pop. Mas entendo o ponto de vista de Paglia. A cultura pop é sintoma e consequência de um pensamento geral, é uma forma de compreender uma grande massa de indivíduos. Direi um pouco distanciado, e não totalmente, porque creio que é impossível que alguém esteja totalmente distanciado dela. Se há característica que define a pop é que ela prolifera de tal forma que é impossível evitá-la de todo. Na música principalmente.
Aliás, a minha aversão pela pop começa com dois pontos: primeiro, a obra de Andy Warhol que, por mais que seja interessante enquanto atitude, enquanto arte é, quanto a mim, uma das obras mais sobrevalorizadas de todos os tempos: parece-me um trabalho fútil cujo único objectivo é a rentabilização, uma pintura esvaziada de conteúdo que se contenta em ser uma prostituta do capital. Nisto aliás, o trabalho de Andy Warhol é um completo estandarte de tudo o que a pop é, e também daquilo que me faz detestá-la. O que nos leva ao segundo ponto: a música. Eu cresci com o surgir de cantoras como Britney Spears e Jennifer Lopez, assisti à ascensão e queda do conceito de girls-band e boys-band, com as últimas glórias mal conquistadas das Spice Girls e dos Backstreet Boys, tinha colegas na escola que sonhavam namorar com o Nick Carter e que dançavam músicas das Destiny's Child. Tal como a obra tutelar de Warhol, esta música tem em vista sempre o consumo, por norma as letras eram superficiais, quer cultivassem o power-positive-thinking, quer apresentassem queixas sobre amores mal resolvidos, recorrendo sempre às mesmas ideias e às mesmas rimas, acompanhadas de ritmos dançantes e catchy com refrões orelhudos, ou então melódicos e envolventes que proporcionassem uma meditação superficial. Não se trata tanto de despertar sentimentos ou ideias, ou de criar uma obra de arte, quanto se trata de criar um objecto vendável, o mais vago e óbvio possível, para garantir que um grande número de pessoas se identificará com ele. Precisamente a falta de conseguimento artístico, a falta de risco e a baixa criatividade me separaram do pop. A estranheza, a poética e a intensidade, encontrei-as sempre noutros géneros com os quais me conseguia identificar, porque, apesar de tudo, é ainda disso que se trata: ficamos ou não frios perante uma canção?
Se não fosse Camille Paglia, provavelmente eu nunca teria sequer tentado encontrar um outro lado para essa música que me deixa quase sempre indiferente.
1. A desculpa do coração
O pop de hoje não é o pop de há três ou quatro décadas atrás, que está sob o microscópio de Paglia em 'Vamps & Tramps', colectânea de ensaios editada no início dos anos 90. Antes, portanto, do nascimento de certas estrelas pop que são hoje os seus nomes de primeira água. Gostemos ou não, não existe hoje um único nome que tenha o peso que Madonna teve, logo desde o início. Para Madonna (mais do que para qualquer outro), a música não se ficava pelos clichés mais simples, o seu trabalho comportava uma dimensão subversiva cuja consequência última era a política e que, hoje, se encontra completamente ausente da música pop. Talvez porque essas já não são as preocupações do público-alvo. As mulheres acreditam que já conquistaram a plenitude da sua libertação sexual e da sua identidade face ao mundo, por exemplo, o que não acontecia quando Madonna lançou 'Like a Virgin'.
Eu creio, aliás, que nunca houve no pop ninguém tão profundamente inteligente quanto Madonna. Ainda que eu não tenha uma apreciação especial do seu trabalho, reconheço que a sua postura combativa e politizada foi sempre canalizada para a música com inteligência e coragem. Mais ainda, a conquista do estatuto de rainha da pop foi utilizada como forma de fazer uma diferença social. Enquanto ícone, Madonna soube usar a sua importância a favor de várias causas e defendeu ideias que, na altura, só poderiam ser aceites se advogadas por alguém que o público admirava com o fervor que a admirava a ela. O exemplo do álbum de fotografias 'Sex' (1992) que Madonna publica com fotografias de Steven Meisel é extraordinário: por mais que precisamente Camille Paglia discordasse de mim, eu diria que aquele livro foi a subversão certa no momento certo, produziu um choque completamente transformador que só poderia ser assumido por um artista destemido e preocupado em utilizar a sua fama em favor de uma ideologia.
Hoje não temos Madonnas. Uma observação muito geral do universo pop actual mostra-nos que a política e o posicionamento ideológico, mesmo que existam no discurso dos cantores, estão ausentes da música. Mais do que nunca, impõe-se o problema das vendas, e a afirmação politizada que causou tantos dissabores da Madonna é um risco que ninguém deseja correr.
A pop hoje tenta ir de encontro às angústias e alegrias adolescentes, apela à frivolidade disfarçada do mundo, neutraliza-se politica e socialmente através da desculpa do coração. E se os problemas emocionais são comuns em quase todos os géneros de música, o grande problema da pop, que é também o seu segredo para o sucesso, é a superficialidade com que esses problemas são tratados. Pensemos por exemplo nas letras previsíveis de uma Taylor Swift (que de um início country se tem desviado cada vez mais para a pop) ou de um Chris Brown e veremos como tudo no seu discurso é vago para ser abrangente. É uma contenção de riscos, a especificidade eliminará ouvintes, enquanto que um discurso mais lacónico acabará por ir de encontro as vários desgostos amorosos, independentemente dos seus contornos.
Se Kate Bush ou Joni Mitchell alguma vez foram verdadeiramente pop, então os seus herdeiros migraram para o folk, para a alternativa, para o indie e para o rock. Raros artistas verdadeiramente pop abrem o seu coração de uma forma mais detalhada, o que gera uma crise de conteúdo. A pop, neste momento, não tem assunto, faz-se com cada vez mais futilidade, uma futilidade que, ainda por cima, quase sempre é dissimulada de várias formas, disfarçando-se de sinceridade.
1. A desculpa do coração
O pop de hoje não é o pop de há três ou quatro décadas atrás, que está sob o microscópio de Paglia em 'Vamps & Tramps', colectânea de ensaios editada no início dos anos 90. Antes, portanto, do nascimento de certas estrelas pop que são hoje os seus nomes de primeira água. Gostemos ou não, não existe hoje um único nome que tenha o peso que Madonna teve, logo desde o início. Para Madonna (mais do que para qualquer outro), a música não se ficava pelos clichés mais simples, o seu trabalho comportava uma dimensão subversiva cuja consequência última era a política e que, hoje, se encontra completamente ausente da música pop. Talvez porque essas já não são as preocupações do público-alvo. As mulheres acreditam que já conquistaram a plenitude da sua libertação sexual e da sua identidade face ao mundo, por exemplo, o que não acontecia quando Madonna lançou 'Like a Virgin'.
Eu creio, aliás, que nunca houve no pop ninguém tão profundamente inteligente quanto Madonna. Ainda que eu não tenha uma apreciação especial do seu trabalho, reconheço que a sua postura combativa e politizada foi sempre canalizada para a música com inteligência e coragem. Mais ainda, a conquista do estatuto de rainha da pop foi utilizada como forma de fazer uma diferença social. Enquanto ícone, Madonna soube usar a sua importância a favor de várias causas e defendeu ideias que, na altura, só poderiam ser aceites se advogadas por alguém que o público admirava com o fervor que a admirava a ela. O exemplo do álbum de fotografias 'Sex' (1992) que Madonna publica com fotografias de Steven Meisel é extraordinário: por mais que precisamente Camille Paglia discordasse de mim, eu diria que aquele livro foi a subversão certa no momento certo, produziu um choque completamente transformador que só poderia ser assumido por um artista destemido e preocupado em utilizar a sua fama em favor de uma ideologia.
Hoje não temos Madonnas. Uma observação muito geral do universo pop actual mostra-nos que a política e o posicionamento ideológico, mesmo que existam no discurso dos cantores, estão ausentes da música. Mais do que nunca, impõe-se o problema das vendas, e a afirmação politizada que causou tantos dissabores da Madonna é um risco que ninguém deseja correr.
A pop hoje tenta ir de encontro às angústias e alegrias adolescentes, apela à frivolidade disfarçada do mundo, neutraliza-se politica e socialmente através da desculpa do coração. E se os problemas emocionais são comuns em quase todos os géneros de música, o grande problema da pop, que é também o seu segredo para o sucesso, é a superficialidade com que esses problemas são tratados. Pensemos por exemplo nas letras previsíveis de uma Taylor Swift (que de um início country se tem desviado cada vez mais para a pop) ou de um Chris Brown e veremos como tudo no seu discurso é vago para ser abrangente. É uma contenção de riscos, a especificidade eliminará ouvintes, enquanto que um discurso mais lacónico acabará por ir de encontro as vários desgostos amorosos, independentemente dos seus contornos.
Se Kate Bush ou Joni Mitchell alguma vez foram verdadeiramente pop, então os seus herdeiros migraram para o folk, para a alternativa, para o indie e para o rock. Raros artistas verdadeiramente pop abrem o seu coração de uma forma mais detalhada, o que gera uma crise de conteúdo. A pop, neste momento, não tem assunto, faz-se com cada vez mais futilidade, uma futilidade que, ainda por cima, quase sempre é dissimulada de várias formas, disfarçando-se de sinceridade.
2. a futilidade sai do armário
Não é sempre assim, no entanto. Artistas pop vai havendo que conseguem assumir a sua falta de profundidade. A música pode não deixar de ser superficial, mas tem a decência de não se fazer mascarar, e tem ainda um valor muitíssimo mais alto: é sintoma fortíssimo do pensamento mais comum.
Para mim, não haverá melhor exemplo do que o de Ke$ha. O primeiro álbum, 'Animal' veio a lume em 2010, e seguiram-se o EP 'Cannibal' (2010) e o álbum 'Warrior' (2012). Ke$ha vive num mundo de unicórnios e discotecas, faz a constante apologia do álcool e do glitter, apresenta-se com uma estética colorida e excessiva, ainda que, de party-girl no seu primeiro álbum esteja a sofrer uma espécie de transformação num contrasenso pop-hipster, que tem tornado a sua sonoridade bastante mais interessante, como atestam canções do último disco, caso de Supernatural. No entanto, o maior logro da sua música tem sido, desde o início, a sua seriedade em assumir que se trata de um universo fantasioso e supérfluo, não se esconde atrás de supostos sofrimentos. O seu primeiro single, Tik Tok falava de um saída louca à noite, tal como o segundo, Blah Blah Blah e o quarto, Take it Off. Pelo caminho, fica Your Love is My Drug, uma canção de amor descomplexada e festiva, que, em termos de som, não se afasta nada das restantes. Os dois singles do EP são também sobre grandes saídas a bares, We R Who We R e Blow, sendo que, neste último, Ke$ha apresenta um videoclip efabulado que não faz, declaradamente, sentido nenhum: apenas tenta (e consegue, sejamos sinceros) ser divertido. Em 'Warrior', regressamos aos grandes temas da festa com Die Young, C'Mon e Crazy Kids, contando a segunda com a participação de Iggy Pop.
A sua música tem qualquer coisa de opiáceo enquanto música dançável, a sua mensagem é completamente oca. O facto de uma mensagem assim chegar a tanta gente só nos mostra precisamente que a festa é a grande preocupação do público-alvo, no fundo. Isto porque Ke$ha não tem sequer a faceta erotizada que Madonna tinha: pelo contrário, a questão do erotismo não tem grande presença nesta música, a figura de Ke$ha é mais fantasista do que sexualizada. Trata-se de uma ideia de sair e divertir-se, com a diferença de que isto se faz todos os dias ou, pelo menos, em todas as canções.
Argumente-se ainda que o último álbum se afasta em termos sonoros em direcção a uma electrónica irregular, que lhe dá realmente uma roupagem um tanto hipster. Ainda assim, a mensagem mantém-se.
Bem diferente é a proposta de Christina Aguilera, que muitos apontam como a única digna sucessora de Mandonna, esse espectro eterno. Concordo. Isto porque Aguilera não só se revela uma artista de uma versatilidade impressionante, como é das poucas artistas pop que mostra uma inteligência e uma sensibilidade acima da média.
O primeiro álbum, homónimo, de Christina Aguilera foi editado em 1999 e valeu-lhe o Grammy para Melhor Artista Revelação. Depois de gravar uma versão desse álbum em castelhano, 'Mi Reflejo' (2000), Aguilera optou por uma polémica cisão com os seus primeiros trabalhos. Escolheu novos produtores, recusou-se a continuar a interpretar canções escritas por outros compositores e passou a ter controlo sobre a sua imagem, essa questão tão preponderante na pop. Por assim dizer, tomou as rédeas da sua própria carreira. Quem ouve 'Stripped' (2002) não reconhece a Christina dos primeiros álbuns. O som é maturado, as letras têm uma qualidade surpreendente e a colaboração de nomes como Linda Perry, Lil'Kim ou Floria Sigismondi fazem uma certa diferença. Mas o que mais impressiona em 'Stripped' é a voz fortíssima de Aguilera que é finalmente valorizada. Na pop actual não há voz como a dela, e talvez nem mesmo na história da pop tenha havido voz mais intensa. Ouvi-la em canções como Fighter, Cruz ou Beautiful é entender como efectivamente estamos perante uma cantora a sério, com uma voz matizada perfeitamente capaz de fazer sentir, essa capacidade tão pouco importante para a pop. E em Can't Hold Us Down, Christina assume também uma faceta mais politizada, quando mostra que as mulheres, de facto, ainda não conquistaram a sua plena liberdade na sociedade. Fá-lo de forma simples e directa, mas vale enquanto gesto minimamente consciente.
Após um hiato de quatro anos, Christina mostra uma vez mais a sua versatilidade quando lança 'Back to Basics', um álbum onde assume as suas influências, ligadas ao jazz e à soul. Não caiu bem ao público, o álbum foi dos menos vendidos da sua carreira, mas ficou provada a cultura de Aguilera e a sua capacidade para trazer novos sons ao pop, como vemos por Ain't no Other Man e Hurt, uma canção que contraria precisamente a tendência básica da pop para não ser específica em nada. Trata-se de uma canção dedicada ao pai, com quem Christina tinha uma relação conflituosa. Por volta da mesma altura, Kelly Clarkson lançou uma canção, Because of You, que, pelo vídeo, percebíamos tratar-se de uma queixa familiar. A diferença é que Christina fala dos seus fantasmas com uma sinceridade desarmante, ao passo que a canção de Clarkson podia perfeitamente ser dirigida a um namorado maldoso.
'Bionic' (2010) e 'Lotus' (2012) são um regresso a uma pop mais ligeira, que mesmo assim se expressa com garra, com canções como Not Myself Tonight e Your Body. Mais ainda, em termos de imagem, Christina apresenta-nos videoclips de muita qualidade, bem coreografados e, no caso de Your Body, um dos melhores videoclips pop alguma vez realizados, com uma ironia e uma subtileza assinaláveis.
Num lado diferente da pop encontramos Adele, com os seus dois álbuns '19' (2008) e '21' (2011). O grande ponto de vantagem de Adele foi sempre a voz, que tornou grandes sucessos canções de amor que não eram dançáveis nem minimamente upbeat, como Chasing Pavements, Rolling in the Deep, Someone Like You ou Set Fire to the Rain. Quase todas as canções de Adele falam de amores mal vividos, mas os temas da separação e do desgosto são aqui abordados com uma crueza que nos atinge. Sendo de certa forma uma estrela pop, será igualmente verdade que Adele é vendável porque tem uma espécie de público que a tem como cantora de culto, e esse público está tanto nos ouvintes de pop como em não ouvintes de pop. A sua música consegue atravessar essa fronteira, porque é tão simples e forte que acaba por se demarcar das piores facetas da pop, que a tornam detestável aos olhos de muitos.
Outra coisa que impressiona no caso de Adele é o problema da imagem. Apesar de bonita, Adele é gorda, veste-se quase sempre com um mau-gosto que impressiona e nos seus videoclips apresenta-se tal como é, sem grandes produções e sem omissões. Isto já lhe valeu algumas polémicas, das quais sai quase sempre vencedora, como aconteceu com os infelizes comentários de Lady Gaga, que a criticou por ter excesso de peso. Mas o que Adele conseguiu é uma vitória astronómica, como o foi o sucesso que uma mulher latina como Jennifer Lopez conseguiu mal lançou 'On The 6' (1999). Adele destruiu a ideia de que uma cantora só se consegue tornar estrela pop se tiver um corpo escultural e uma apresentação provocante. Ela é a diva wagneriana de conservatório que decidiu experimentar a pop, assume o seu desencaixe e é admirada por isso. Com Adele, a questão do corpo voltou à ribalta e a música foi o que verdadeiramente triunfou: é idiota rejeitar uma cantora cujas canções são tão boas apenas porque é gorda. Mais do que ser um preconceito, o excesso de peso é um verdadeiro pecado social, uma falha imperdoável. Quem melhor que uma artista pop brutalmente bem-sucedida para vir pôr essa ideia em causa? Tendo eu, até aos 13 anos, sofrido de um grande excesso de peso, admiro mais ainda a personalidade de Adele. Ela quebrou o tabu do peso, forçou o público a admirá-la pelo seu talento enquanto cantora e compositora em vez de a desprezar pela sua imagem. Não estou certo que tenhamos encontrado maior desafio desde que Madonna impôs a mulher como ser sexual.
4. as raízes e as influências
Acima falei de Jennifer Lopez, cujo primeiro álbum, editado em 1999, lhe granjeou um reconhecimento e um estatuto absolutamente à-parte de tudo o resto. Até aos dias de hoje, J.Lo continua a ser uma das mais respeitadas artistas pop, por mais que mude de estilo visual e sonoro, continua a chamar a atenção, produz clássico pop atrás de clássico pop e abriu o caminho a uma série de latinas e latinos na grande indústria pop dos Estados Unidos. Antes dela, talvez só Gloria Estefan tivesse conseguido este tipo de reconhecimento, mas é preciso lembrar que a pop propriamente dita, nunca interessou a Gloria.
Shakira era já uma cantora conceituada na América Latina quando gravou o seu primeiro álbum em inglês. Na bagagem trazia já dois álbuns de originais, dois álbuns de adolescência rejeitados e um álbum ao vivo que lhe valera o Grammy Latino de Melhor Álbum do Ano. Não era uma principiante quando 'Laudry Service' viu a luz do dia em 2001 e se tornou um dos maiores sucessos pop de todos os tempos. Esta rapariga que se apresentava fora da América Latina com Whenever Wherever era tudo menos vulgar. A sua música, mesmo cantada em inglês com letras simples mas não de todo desprezíveis, era declaradamente de raiz latina, os seus videoclips tinham pouquíssimo artifício, não se apresentava com bailarinos nem com grandes coreografias: sozinha, com o seu corpo bonito mas frágil, parecendo dançar instintivamente, ela tinha uma sensualidade que dispensava uma grande produção, era cativante e autêntica. Os singles seguintes, Underneath Your Clothes, Objection (Tango) e The One ajudaram a assimilar o sucesso do primeiro álbum, e a eles seguiu-se um single em castelhano, Que Me Quedes Tu, uma balada belíssima, que anunciava aquilo que o álbum seguinte confirmaria: que o sucesso em inglês não fez Shakira abdicar das suas origens latinas. Pelo contrário, desde 2001, Shakira lançou mais dois álbuns em inglês e outros dois em castelhano. E terão sido precisamente as suas raízes latinas e o facto dela misturar muitas vezes as duas línguas até nas suas canções mais badaladas, que lhe garantiram um lugar muito especial dentro do pop. Ela é reconhecida como autora e intérprete de boas canções pop, comunica determinadas emoções entre a balada e a música dançável, e é igualmente competente em ambos os estilos e em ambas as línguas. Mesmo sem ter voltado a atingir o pico de vendas que foi 'Laudry Service', Shakira, sabemo-lo hoje, é uma artista de culto para um público bastante alargado que admira a sua naturalidade e entende a sua necessidade de liberdade linguística e de sonoridade.
O caso de Rihanna, nascida nos Barbados, não é exactamente o mesmo. O seu começo, com os álbuns 'Music of the Sun' (2005) e 'A Girl Like Me' (2006) não faziam prever uma artista pop particularmente diferente. Ainda que em S.O.S., single do segundo álbum, ela parecesse ter qualquer coisa de original, nada nela fazia prever mais que um sucesso temporário para Rihanna. 'Good Girl Gone Bad' (2007), por mais que tenha sido bem-sucedido, era um trabalho absolutamente aborrecido que não nos mostrava que Rihanna fosse cantora alguma de especial. O álbum seguinte, 'Rated R' (2009), ainda que se tivesse apresentado com um single interessante, Russian Roulette, acabava por falhar redondamente em produzir mais alguma canção interessante. Parecia que Rihanna nunca seria uma cantora pop minimamente surpreendente quando, em 2010, ela lança 'Loud'. Neste álbum, Rihanna aceitava uma série de influências, afro e jamaicanas, que a tornavam de certa forma invulgar. Mais ainda, é neste álbum que consegue, pela primeira vez, chocar. Depois dos singles Only Girl (In the World), a sua primeira canção verdadeiramente boa, e What's My Name, Rihanna vê o video de S&M censurado por apresentar referências explícitas a práticas sadomasoquistas. A canção, em si, continuava a linha do primeiro single, era uma canção pop obscura e no entanto bastante animada e violenta. As polémicas continuariam com o vídeo de Man Down onde Rihanna aparece a alvejar um homem que a havia violado. Nesta canção, a referência jamaicana traz um som estranho mas contagiante, que Lil'Kim soube aproveitar numa versão que faz desta canção, Cheating.
No seu trabalho de 2011, 'Talk That Talk' Rihanna regressa às polémicas com o vídeo de We Found Love, uma das suas melhores canções, produzida por Calvin Harris. Sendo uma canção de discoteca, acaba por soar extremamente bem, a letra triste contrapõe-se com suavidade ao ritmo acelerado e Rihanna mostra, uma vez mais, a sua capacidade para as canções estranhas. Do mesmo álbum, merece referência Where Have You Been, onde a electrónica encontra um ritmo afro que cabe muito bem à voz anasalada de Rihanna, que continua a ser um dos seus maiores pontos de interesse.
5. o problema do renascimento
Uma das capacidades cruciais para a pop é a sua capacidade de reinvenção. A maneira mais eficaz de manter o público interessado em alguém é que esse alguém seja camaleónico, e seja capaz de ser o mesmo, nunca sendo igual. Quem via Justin Timberlake nos seus tempos dos 'Nsync, uma boys-band de sucesso na primeira vaga de boys-bands e girls-bands (a segunda está a ser agora, com os One Direction e os The Wanted), nunca diria que, mais tarde, ele se tornaria um grande músico pop. Ainda que 'Justified' (2002) fosse ainda inteiramente refém da experiência com os 'Nsync, no seu segundo álbum, 'FutureSex/ LoveSounds' (2006) Timberlake revela-se bastante competente enquanto performer e até, por que não dizê-lo?, enquanto autor de canções com série qualidade pop. Com canções como Sexyback ou What Goes Around Comes Around, onde a sensualidade masculina é assumida e louvada e a voz algo andrógina de Justin encontra a perspectiva certa, ele torna-se o derradeiro artista pop masculino, justifica com mais do que o seu aspecto físico o estatuto de sex-symbol e demonstra-se oportuno e inteligente naquilo que faz. O mais recente 'The 20/20 Experience' (2013) confirma precisamente tudo isto, é um álbum discreto, ligado à soul e a um sexy-hip-hop, influências que paralelamente estão sendo exploradas, com resultados mais interessantes ou menos, por outros como Bruno Mars e Chris Brown.
E, de facto, Timberlake consegue fazer aquilo que outros, na mesma situação, não conseguiram. Basta pensarmos em Nick Carter, Melanie C, Duncan James, Lee Ryan ou Geri Halliwell, e veremos que as bandas a que pertenciam, sendo projectos inócuos e com prazo de validade, mais do que não os ajudarem em carreiras a solo, inclusivamente os prejudicaram, pois ficariam sempre associados à experiência fútil e infértil das boys-bands e girls-bands. Justin Timberlake será, por isso, o caso mais extraordinário da reabilitação de uma imagem, de adolescente azeiteiro a homem maduro e sensível às exigências do pop.
E em canções como Sexyback ou Mirrors, não estamos perante nada que não sejam boas canções pop, o que é também importante.
6. haja algum folclore em tudo isto
Para vender música pop, a música não se basta. Isto, porque a pop não está só na música, não está sequer principalmente na música. Toda uma indústria de associações de publicidade, de revistas de mexericos contribuem para interessar o público nos artistas que este deve consumir, com os quais, tenta-se, ele poderá identificar-se, sobre o qual poderá debater. Mas ser-se role-model está fora de moda. O célebre chavão de que as meninas boas vão para o céu e as más para todo o lado é a lei da arena pop. Se o rock foi o primeiro a mitificar os comportamentos amorais, ou revolucionariamente imorais dos seus ídolos, como Kurt Cobain, Janis Joplin ou Jim Morrison, cedo o pop percebeu que o choque tem um valor tremendo e que ser um ultraje é vendável, até porque, no pop, não existe má publicidade.
Sem uma estratégia centrada numa persona pública irreverente e instável, não teria tanto sucesso alguém como Nicki Minaj. Minaj impôs-se logo a partir do seu primeiro trabalho, 'Pink Friday' (2010), principalmente por causa das suas altercações com a veterana Lil Kim.
Tudo começou porque Kim acusou Minaj de utilizar gravações inéditas suas para várias canções, particularmente Automatic. A troca de insultos, com mais ou menos classe, por parte de ambas, cedo passou das entrevistas para a música. Na sua mixtape 'Black Friday' (2011), Lil Kim não só escreve uma música directamente sobre o facto de Minaj lhe ter roubado canções e toda uma imagem, como ainda usa um sampler de Did it on 'em de Minaj para cantar a letra absolutamente degradante de Pissin' on 'em. E se Minaj já havia deixado uma mensagem indirecta com o seu Roman's Revenge, no segundo álbum, 'Pink Friday: Roman Reloaded' (2012) responde às canções de Lil Kim com Stupid Hoe.
No meio de tudo isto, a música de Minaj foi o que menos interessou. O que é natural, porque trata-se de um projecto musical que nem sabe o que quer ser: apresenta-se como rap, mas não só Minaj é incapaz de fazer uma rima decente, como parece convencida de que fazer rap é dizer palavrões e ser ultrajante gratuitamente. As suas canções valem essencialmente pelos refrãos orelhudos que, de facto, ficam no ouvido. E o que se torna mais irónico é que a única canção de Nicki Minaj que até aos dias de hoje consegue ser quase boa é Automatic, precisamente aquela que plagiou de Lil Kim. Mas a verdade é que Kim não precisava de se ter preocupado tanto. Não há maneira de algum dia uma estrela meramente folclórica como Minaj conseguir ser aquilo que, no pop, é a cantora de 'La Bela Mafia'.
Mas este tipo de folclore faz falta ao pop. Outro exemplo recente disso mesmo foi o de Lana del Rey. Não foi tanto por insultar ninguém que se destacou, mas a menina de 'Born to Die' (2012), cuja música está longe de ser má, foi um sucesso inesperado: não dança, não costuma aparecer seminua, não tem, de resto, uma postura particularmente erotizada, as letras parecem ser mais rock do que pop. Mas Lana del Rey tem fama de ser incapaz de cantar mal ao vivo, está nitidamente pouco à vontade quer no palco quer nos videoclips, e teve algumas prestações desastrosas em programas de televisão onde foi cantar ao vivo.
O facto é que criou um público que lhe é fervorasamente fiel, e, independentemente daquilo que possam ser as suas performances, a música tem, de facto, bastante qualidade. Soa ao que soaria Brintey Spears, se Britney Spears fosse cantora. E talvez isso explique por que a sua música, mesmo sendo apenas remotamente pop, a transformou numa mega-estrela pop. Canções como Born to Die, Blue Jeans, ou Summertime Sadness, particularmente na versão remisturada por Cedric Gervais, demonstram que, pop ou não, Lana del Rey consegue ser mais do que fogo de vista.
7. a falta de cultura
Mas ninguém tem sido, provavelmente, um fenómeno pop tão grande como Lady Gaga, desde Madonna. Camille Paglia, a pensadora mais avançada e arguta no pensamento sobre os fenómenos pop escreveu um artigo brilhante em que explica detalhadamente por que Lady Gaga representa a morte do sexo, mas também a morte de tudo o que o pop foi desde Madonna. Que Gaga seja a morte do erotismo, não apresenta dúvidas. A sua figura artificial e fabricada é um delírio kitsch e camp, além de um acumular de dejá-vues, e a sexualidade não convive pacificamente com estas características.
Lady Gaga será sempre uma das artistas mais importantes em toda a indústria musical. Importante porque ela marca o fim do valor argumentativo e contestatário da pop, marca a definitiva falta de inteligência ao produzir música que será consumida por grandes públicos, assinala a nítida ausência de cultura musical num público mais jovem que ouve música pop mas não lhe conhece sequer a história mais recente. Gaga é, de facto, tão desinteressante, tão ridícula, tão vazia e tão inculta como o público que a ouve e que ela representa.
Quem é este público? Trata-se um largo conjunto de jovens que cresceu estando continuamente perante a televisão mas que, paradoxalmente, foi incapaz de assimilar qualquer referência da cultura popular (pop); uma geração que não teve a necessidade de uma verdadeira luta social e que se desviou, ou foi desviada através de uma educação sobreprotectora, de qualquer sugestão de uma luta tal; que substituiu a conversa, enquanto exercício primeiro do pensamento, pelas trocas de palavras lacónicas pelo telemóvel e pela internet; e que não foi bem preparada para as relações humanas, que aprendeu a viver sempre através de um qualquer aparelho tecnológico. A tecnologia sabotou, começamos agora a percebê-lo, o modo de estar da sociedade. A geração das revoluções dos anos 70, do Woodstock, do Flower-Power não asseguraram a subsistência dos valores que defendiam: o yuppie surge da rápida conversão às promessas do capital dessas comunidades histéricas que não procuravam mudar a sociedade, apenas fazer uma birra perante os pais. Se há geração verdadeiramente digna de desprezo, é a dos hippies do Woodstock, precisamente aquela que não incutiu nos seus descendentes senão o oposto daquilo que haviam defendido para si.
Daí a frieza cultural e ideológica do público de Gaga. Quando ouvem aquela figura teatral, artificial, estilizada e aberrativa, sentem-se a exercer uma espécie de liberdade de expressão. Que ela tenha dado voz a tanta gente só mostra como as revoluções dos anos 70 trouxeram tudo menos liberdade e pluralidade. É precisa uma pop-star forçada e idiótica mas astuta para que alguém possa assumir-se diferente e enfrentar as consequências de ser diferente, ainda que não passe, bem vistas as coisas, de uma cópia do seu ídolo. Ou seja, não só esse público é inculto e ignorante, como, o que é mais grave, profundamente inseguro.
O que distingue Gaga do seu público não é senão esse sentido de oportunidade: ela percebeu a crise de consciências que marca a actualidade e soube aproveitar-se dele para granjear sucesso. Essa é a sua importância para a música. Isso faz dela um ídolo, ainda que um ídolo com pés de barro.
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