segunda-feira, 28 de outubro de 2013

os nus e os esfarrapados

Será verdadeiramente possível desligarmos um objecto artístico do seu contexto? Esta é uma pergunta que interessa fazer, principalmente quando estamos perante um objecto que precisamente se afirma como político, opinativo e polémico. É precisamente este o caso de ‘’I’m M’’ (2013) do realizador alemão Christian Von Borries, um documentário dividido em cinco partes sobre o México. 
Há uma vertente nitidamente política neste trabalho de Von Borries, que começa, no primeiro capítulo do filme, com a questão da educação para as forças armadas e termina em acusações crassas de capitalismo, e dos seus perigos e artimanhas que prejudicam e destroem a vida moderna. 
‘’I’m M’’ apresenta-se como um documentário de ficção científica. E a referência ao scy-fy não se esgota no subtítulo. Ao longo do filme, há freeze-frames em que lemos pequenos aforismos sobre o capitalismo, escritos num lettring bastante típico dos primeiros grandes filmes de scy-fy e, ao mesmo tempo, nota-se que Von Borries quis, nitidamente, tornar a realidade que documenta de tal forma incrível que ela quase se apresenta como ficção, uma espécie de ficção de mau gosto a tender para o folhetim. 


Por este filme, passam telenovelas, a telescola, as paradas militares, os bares e as festas, os telemóveis, a promessa da tecnologia, o emprego precário, etc, etc, etc. 
As imagens são toscas e por vezes têm qualquer coisa de amador, mas esse efeito não condiz mal com os objectivos do filme, que constantemente é interrompido por separadores e citações, tornando-se quase uma espécie de jogo interactivo transformado em filme. Mas há um problema grave com ‘’I’m M’’ que não se prende essencialmente com o filme em si. 
O facto de ser um documentário, como Regina Guimarães e Saguenail muito bem viram em ‘’Documentira’’, não o torna necessariamente imparcial. Devemos partir do princípio que também o documentário explora um ponto-de-vista sobre um assunto, não o assunto por si só. Assim, o documentário não é insento, ele tem uma opinião, e faz-se para arguir essa opinião, é exercício crítico. 
Mas ‘’I’m M’’ não é o exercício de uma crítica, é o exercício de um julgamento. É de tal forma tendencioso na forma como mostra o México, que é impossível entendê-lo como crítica. Este filme aponta o dedo aos mexicanos, acusando-os de capitalistas e não deixa sequer a sugestão de que possa haver mais México do que aquele que é mostrado. 
Uma atitude tão tendenciosa pode não ser a mais ética, mas certamente não é tão insultuosa quanto isso. 
O que é então insultuoso em ‘’I’m M’’? Precisamente o seu contexto. Reconheçamos, neste ano de 2013, a ironia de um realizador alemão, da Alemanha da chanceler Merkl, realizar um filme em que a acusa os mexicanos de serem capitalistas. 
O objectivo era fazer um filme sobre capitalismo, sobre os seus perigos? Que boa notícia que exista um alemão consciente desses perigos. Mas se queria fazer um filme sobre esse assunto, teria encontrado muito melhor material no seu próprio país. Mas como pode um alemão, no momento em que a Alemanha se faz valer das dívidas do sul da Europa que administra com uma rigidez ditatorial, acusar os mexicanos de uma política capitalista? Como pode um alemão, cujo país tem manipulado a Europa de tal forma que os países mais pobres que os habitantes destes não conseguem senão trabalho precário, apontar o dedo ao subemprego mexicano? Como pode um alemão, cujo país contribuiu para transformar o projecto da União Europeia num projecto financeiro sem nenhuma preocupação cultural, gozar tão abertamente com o díptico telenovela/telescola? 
Não se poderia, claro, proibir Christian Von Borries de fazer este filme. A Arte deve ser livre, o mais livre possível. Mas deve ser igualmente consciente. Torna-se impossível não encarar ‘’I’m M’’ como um julgamento insidioso directamente apontado aos mexicanos, só porque sim. 
Von Borries está tão alheado da realidade europeia que não vê que o país perfeito para realizar o seu filme teria sido a própria Alemanha? Não parece credível. Cede então a alguma pressão algo ditatorial? Ou os defeitos dum país estrangeiro são menos defeitos se o país for o seu? 
E esta falta de ética, esta amarga ironia, seria desculpável se o filme fosse, ao menos, muito bom. Mas o filme de Von Borries poderia desviar-se de certos clichés sobre o capitalismo e não o faz. Nos seus piores momentos, este filme roça o discurso do hippie charrado que critica a sociedade capitalista que integra quando lhe é conveniente. 
Há uma anedota bastante conhecida, sobre um homem nu que diz a um que usa roupas esfarrapadas: ‘’Falta-te um botão!’’ O caso de ‘’I’m M’’ parece ser precisamente esse.

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