quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Tarde Longa


Se eu for à casa do amor
Hei-de encontrar-te sentado
À espera que eu me dispa
Conforme foi combinado

E se a tarde for inteira
Essa pátria a que pertenço
Ficaremos abraçados
Estendidos como num lenço

Ah, quem me dera que os céus
Fossem mais largos, mais fundos,
Despidos somos de deus,
Vestidos somos do mundo

Mas de nós mesmos seremos
Se a tarde for tão comprida
Que o mesmo lenço se estenda
Ao longo de toda a vida

Lídia Jorge
no álbum ''Senhora da Noite'' de Mísia
2011
fotografia de Slava Mogutin



terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Bolero do Coronel Sensível que Fez Amor em Monsanto



Eu que me comovo
Por tudo e por nada
Deixei-te parada
Na berma da estrada
Usei o teu corpo
Paguei o teu preço
Esqueci o teu nome
Limpei-me com o lenço
Olhei-te a cintura
De pé no alcatrão
Levantei-te as saias
Deitei-te no banco
Num bosque de faias
De mala na mão
Nem sequer falaste
Nem sequer beijaste
Nem sequer gemeste,
Mordeste, abraçaste
Quinhentos escudos
Foi o que disseste
Tinhas quinze anos
Dezasseis, dezassete
Cheiravas a mato
À sopa dos pobres
A infância sem quarto
A suor, a chiclete
Saíste do carro
Alisando a blusa
Espiei da janela
Rosto de aguarela
Coxa em semifusa
Soltei o travão
Voltei para casa
De chaves na mão
Sobrancelha em asa
Disse: fiz serão
Ao filho e à mulher
Repeti a fruta
Acabei a ceia
Larguei o talher
Estendi-me na cama
De ouvido à escuta
E perna cruzada
Que de olhos em chama
Só tinha na ideia
Teu corpo parado
Na berma da estrada
Eu que me comovo
Por tudo e por nada


António Lobo Antunes
Letrinhas de Cantigas
2002, ed. Dom Quixote (edição limitada)
fotografia de Bob Coulter

Escrevo sobre um Muro


J'ecris sur un mur au fond du noir

GUILLEVIC


Escrevo e as portas não se abrem.
Os rios existem, e o mar da rua
existe. Escrevo. E o que espero?
Escrevo em apagados muros, na branca
superfície do muro. Escrevo.


São palavras, palavras. São
palavras.
Não respiram. Não falam.
São desertas.
Não rodam, não batem nos meus pulsos.
E escrevo. Como se esperasse.


Como. Se desertas abrissem.
Para. Para.
Uma vida outra aberta.
Esta e mais nenhuma, a que só temos
sem nunca tê-la, a que seria vida
o que é, e nos sem ela.


Escrevo no muro de palavras,
para respirar, quando não posso,
quando o desejo de viver se tornou ténue,
que não sinto senão na ténue página,
na brancura rara que me tenta,
na água sem jardins ao rés da página
ó sede à beira de nascer, ó água!


Escrevo palavras neste muro. Um muro.
Umas palavras. O mar da rua existe.
As portas não se abrem. E não espero.
Escrevo sobre o muro. Umas palavras.
São as palavras que escrevem esse muro.
São as palavras que escrevem esse muro.
O muro existe. Resiste É bem um muro.
As palavras saltam além do muro.

António Ramos Rosa
Estou Vivo e Escrevo Sol
1966, ed. Ulisseia
fotografia de Nelson d'Aires

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Parcimónia e Arte


Multiplicidade e Parcimónia

Em 1862, a editora londrina MacMillan & Co. publica 'Goblin Market and Other Poems', o livro de estreia de Christina Rossetti, que seria o primeiro livro de poesia bem-sucedido, em termos críticos, da irmandade Pré-Rafaelita. Ainda que Christina não fosse propriamente um membro a tempo inteiro da irmandade, a sua poesia é das mais representativas do movimento e o seu livro de estreia (Tal como o seguinte, de 1966, 'The Prince's Progress and Other Poems'.) é um marco importantíssimo para a História dos Pré-Rafaelitas pois, além dos poemas, conta com gravuras desenhadas por Dante Gabriel Rossetti, irmão de Christina e um dos fundadores da Irmandade.
O poema central deste livro, e que lhe dá também título, 'Goblin Market' conta-nos a história de duas irmãs que vivem nas imediações de um pomar onde um bando de duendes vende fruta amaldiçoada. Uma das irmãs, Laura, cede à tentação de ir comer algumas das frutas vendidas pelos duendes, depois adoece pela falta de mais, e a irmã, Lizzie, vai ela mesma ter com os duendes, de maneira a comprar alguma fruta para curar a irmã. Acaba por ser atacada pelos duendes, mas consegue salvar Laura através das polpas dos frutos que traz no corpo, resultado da agressão. A história é, essencialmente, uma história sobre cair na tentação e sobre a lealdade fraternal (que em certos momentos roça o homo-erótico), e sobre como essa lealdade é resposta para a adversidade. A narrativa desenrola-se, como não podia deixar de ser, em todo um processo poético e estilístico subtil, sensível, detalhado e quase excessivo, o que prova a afinidade entre Christina Rossetti e a Irmandade Pré-Rafaelita.


Em 1997, ou seja, 135 anos depois da primeira edição do livro de Christina Rossetti, os Morphine lançam o álbum 'Like Swimming'. Na última faixa, 'Swing it Low', Mark Sandman escreve uma letra sobre uma outra história de lealdade, usando ainda como símbolo da divagação a imagem dos pomares e das frutas. Independentemente da ideia de que Sandman tenha lido o poema de Christina, o que será difícil de apurar, a verdade é que os dois partilham uma pequena narrativa e também algumas imagens que servem essa narrativa.
Fazendo um contraponto entre os dois textos, é fácil constatar que onde o poema de Christina é minucioso e sempre tentando aproximar-se de uma visualidade extrema, a letra de Sandman é divagante, construída de frases contundentes, como se o texto fosse construído de fragmentos de um discurso feito de si para si.
Podemos considerar as várias diferenças entre a escrita de um poema e a escrita de uma letra de canção, mas atribuir a estas diferenças um papel demasiado decisivo seria negligenciar a ideia de que muitas vezes a escrita de letras utiliza muitas técnicas recorrentes na poesia, aproximando-se desta muitas vezes. A questão da época será talvez mais razoável para compreender por que, na segunda metade do século XIX uma narrativa era escrita liricamente de uma forma quase oposta a uma escrita no final do século XX.

Uma observação da História da Arte mostra-nos que, a partir do momento em que a invenção da fotografia liberta, de certa forma, a Pintura e a Escultura do compromisso de imitar o real, se desenvolvem uma série de complexas formas de expressão, sendo uma delas, o Suprematismo, aquela que irá simplificar a representação ao máximo, a partir dos dois momentos essenciais do trabalho de Kazemir Malevich - o 'Quadrado Negro Sobre Fundo Branco' (1915) e o 'Quadrado Branco Sobre Fundo Branco' (1918).

Na Arquitectura, estas transições de estéticas mais depuradas para outras mais complexas, para outras mais depuradas de novo, sente-se antes ainda de se sentir nas restantes artes plásticas. O Renascimento vem reconduzir a Arquitectura para as ideias de pureza, harmonia, proporção e ordem da Antiguidade Clássica; o Maneirismo reinventa as estruturas do Renascimento, conduzindo ao Barroco em que as mesmas estruturas se tornam complexas e ornamentadas ao fundirem-se com uma gramática fortemente decorativa, que será ainda mais exacerbada no Rococó. O Neoclássico trará de volta a simplicidade e a depuração do Renascimento, o Romântico recuperará os estilos medievais, valorizando-lhes a complexidade como forma de criação de uma ambiência poética e misteriosa, a Arte Nova e a Art-Deco valorizarão ainda mais o sentido decorativo, e o Modernismo irá, nalgumas das suas tendências, operar sobre a Arquitectura uma forma extrema de depuração, que será a do Minimalismo.
Não é difícil relacionar a tendência minimalista com a Teoria da Lei da Parcimónia, de William of Occam. Entia non sunt multiplicanda sine necessitate, ou seja, não usar a multiplicidade senão quando o seu uso for imperativo. Esta teoria, levada ontologicamente a um extremo, está, de certa forma, ligada ao cepticismo, uma vez que, no contexto dos seus ensaios teológicos e teosóficos, William of Occam chega, com esta teoria, à conclusão de que a única entidade necessária é deus, não sendo necessário qualquer outro elemento.

No entanto, o transporte desta ideia, directamente associada ou não a William of Occam, para as disciplinas artísticas, tem sido recorrente e, de certa forma, sobrevive sempre ao esquecimento e acaba por ser recuperada, talvez por se associar a uma forma menos artificial ou menos fantasiosa de olhar o mundo, pois, como enuncia lucidamente Agustina Bessa-Luís, A simplicidade é um aspecto superficial do complexo ou então a síntese duma estrutura difícil. A simplicidade adquire-se com a maturação do espírito; a sobriedade e a concisão obtêm-se por sistema de eliminação, e são obra duma intensa experiência.



A Farnsworth House de Mies Van Der Rohe


Mies Van Der Rohe, um dos percursores da Modernidade na Arquitectura, acreditava que a criação de um estilo arquitectónico poderia ser representativa do espírito filosófico da época em que é construído. Aos seus edifícios que ele definia como 'Pele e ossos', fica associada eternamente à máxima 'Less is more', que se coaduna perfeitamente com a Teoria da Lei da Parcimónia. Mies sentia particular apreço pela Arquitectura Gótica, não no sentido em que pretendia recriá-la, mas no sentido em que a via como uma manifestação perfeita do espírito da época, exactamente aquilo que Mies procurou fazer, principalmente no período seguinte à I Guerra Mundial apoiado tanto numa cultura arquitectónica como numa profunda cultura filosófica.

Um dos exemplos mais eminentes do pensamento de Mies é a Farnsworth House (1946-51). Construída como uma casa de fim-de-semana nas imediações de Chicago para uma médica, a dra. Edith Farnsworth, esta casa tinha como materiais básicos o vidro e o aço e Mies consegue trabalhar de uma forma tão intensa com eles e com o espaço florestal envolvente que, provavelmente, o estudioso de Arquitectura Lord Peter Palumbo, segundo proprietário desta casa, não exagera quando diz que esta casa é um poema, uma qualidade de luz, uma expiação, uma maneira de ser, uma nostalgia, um sonho [tradução livre]. No mesmo texto, Palumbo descreve ainda, adequadamente, uma espécie de elo romântico que a casa cria com o espaço em que está inserida, sendo que a transparência a que a casa está sujeita faz com que qualquer alteração na paisagem, como a marca da passagem das estações, tenha um impacto no próprio interior da casa, que, podemos depreender pelas descrições de Palumbo, escritas da perspectiva de quem habitou a casa, parece ser uma espécie de miradouro sobre elementos como a luz, o passar do dia ou o passar do tempo, fazendo com que o isolamento geográfico da casa seja anulado pela sensação de que estamos não retirados do mundo, mas mais próximos daquilo que nele é essencial.
Todo o 'poder' que a casa parece conter, a sua extrema força enquanto entidade capaz de criar determinadas percepções e determinadas emoções, é, no entanto, conseguida com uma simplicidade que pode bem ser um exemplo para corroborar a ideia de Mies de que 'menos é mais'. O crítico Arthur Drexler descreveu a Farnsworth House, na altura em que foi concluída, da seguinte maneira: um terraço, um chão e um tecto. Soldadas às bordas de cada plano estão colunas de aço que os mantêm suspensas no ar. Porque não se apoiam nas colunas, mas apenas passam nelas, estes elementos horizontais parecem ser sustentados por magnetismo. Chão e tecto aparecem como planos opacos definindo o topo e o fundo de um volume cujos lados são simplesmente grandes painéis de vidro. A Farnsworth House é, de facto, uma quantidade de ar entre um tecto e um chão. [tradução livre]

A descrição, sucinta, mostra-nos exactamente a quantidade reduzida de elementos a que Mies recorreu para projectar a Farnsworth House e os relatos de um dos seus habitantes mostra-nos que, com tão poucos elementos como os que Drexler aponta, é possível criar-se uma obra arquitectónica que potencia o espaço de tal forma que quase nos 'dissolve' nele, o que nos leva a crer que, efectivamente, a multiplicidade não fez aqui falta.
Para que Mies pudesse projectar uma casa desta natureza, terá contribuído o facto de se tratar de uma habitação temporária que, à partida, seria utilizada como lugar de relaxamento, e também o facto da propriedade de Edith Farnsworth estar bastante isolada. De acordo com isso, havia uma série de questões que Mies não tinha que ponderar, uma vez que, à partida, elas não teriam ali lugar: a necessidade de resguardar a privacidade, o acumular de património, ou a desordem do dia-a-dia.


Hoje em dia, a Farnsworth House é considerada não só uma das obras mais importantes e mais representativas de Mies, como também uma das percursoras do chamado Estilo Internacional, apesar dos vários aspectos 'folclóricos' que a história da casa apresenta, com os processos judiciais entre Mies e Edith Farnsworth, com os depoimentos depreciativos da primeira proprietária da casa,e do rumor de uma relação amorosa entre os dois, cujo fim aziago teria sido a verdadeira causa dos desentendimentos entre os dois.
Uma das acusações que Farnsworth faria mais frequentemente ao projecto de Mies, seria o de que era difícil viver dentro dele, pois a todo o momento estava exposta, e também a de que o vidro embaciava com o frio, anulando os pressupostos de que os limites entre exterior e interior seriam translúcidos. A preferência de Mies pelo vidro já se fazia sentir desde o início da sua carreira como arquitecto, quando projectara a Haus Lange (1930). O cliente recusou o projecto inicial, com grandes áreas em vidro e, contrariamente ao que aconteceria com a Farnsworth House, Mies cedeu. Posteriormente, ignoraria a Haus Lange, referindo-se a ela sempre vagamente e como trabalho menos conseguido.





A Fundação Calouste Gulbenkian de Ruy Athouguia


Os valores do Modernismo chegam a Portugal cerca da década de 30, mas a sua difusão é, de certo ponto de vista, minoritária, em parte devido ao regime ditatorial que na Arquitectura teve um impacto considerável. A inclinação para um certo tradicionalismo fez-se sentir ao longo da década de 40, tanto por causa das imposições do regime político vigente, como também pela falta de trabalho crítico e estudioso sobre, principalmente, a Arquitectura moderna que, noutros países da Europa, desenvolvia novos valores e novas formas de conceber o espaço. Como parece ter sido a tendência de todos os países em regime de ditadura, em Portugal procurou-se um retorno ao neoclássico, por aquilo que o classicismo simbolizava, em termos de ordem, monumentalidade, hierarquia e também enquanto clarificação do Poder. O 'estilo' que ficaria conhecido como 'Português Suave' partia precisamente desta preferência pelo classicismo, associado ao uso de materiais como o betão e o aço.
A meio da década de 40, no entanto, ficou claro que o 'Português Suave' era insuficiente para satisfazer as exigências que eram feitas à Arquitectura, enquanto resposta para uma série de questões de ordem cultural e social. Assim, um estilo conservador de Arquitectura dá, nos anos 50, lugar a uma nova chegada dos valores da Modernidade à Arquitectura portuguesa, impulsionada por arquitectos interessados em construir de acordo com as necessidades do tempo presente, o que, em muitos aspectos, representou uma espécie de forma de resistência ao regime fechado.
Em 1946 surge em Lisboa o grupo ICAT (Iniciativas Culturais de Arte e Técnica), dirigido por Keil do Amaral, e que reúne vários arquitectos, interessados em discutir e reinventar a Arquitectura para Portugal, e muitas das suas conclusões teóricas seriam publicadas na segunda série da revista 'Arquitectura'. No Porto, Carlos Ramos vai-se destacando como dinamizador, e, do seu trabalho junto de vários arquitectos resulta o ODAM (Organização dos Arquitectos Modernos) em 1947.
O 1º Congresso Anual dos Arquitectos em 1948 vem, em muitos aspectos, conciliar o que se estava a fazer tanto em Lisboa como no Porto, e, com os primeiros grandes debates sobre o contexto social e económico da Arquitectura. A união geral dos Arquitectos contra o 'Português Suave' é decisiva para que, mesmo da parte do Governo, seja mais ou menos aceite a entrada dos valores da Modernidade em Portugal.
O arquitecto Ruy Athouguia foi um dos expoentes máximos da Modernidade em Portugal, no entanto, não estava presente nesse 1º Congresso. Como relembra Souto de Moura, quando perguntaram a Athouguia porquê, o arquitecto respondeu: 'Não influenciou o que eu estava a fazer porque eu já o estava a fazer'.

De facto, mesmo não tendo estado presente nestes movimentos, o seu trabalho lida não raras vezes com questões que muito preocuparam os arquitectos europeus do Modernismo. Tal como Mies, Athouguia dá preferência à pureza das formas e dos elementos, em detrimento das tendências para o orgânico que encontramos em, por exemplo, Alvar Aalto. A sua preferência pela regularidade permitiu-lhe trabalhar não só os espaços em si, como também a relação de uns edifícios para os outros, sendo exemplos disso os vários prédios da sua autoria em Alvalade (Lisboa), representando estes, portanto, algumas concepções urbanísticas de Athouguia.
Outro exemplo da preferência de Ruy Athouguia pela pureza dos volumes é o edifício da Fundação Calouste Gulbenkian. Tendo sido a última encomenda para edifícios públicos que o arquitecto recebeu, em 1969, esta obra é representativa de uma série de outras questões importantes. É o caso da relação entre interior e exterior, que é também muito importante para Mies, conseguida também por grandes painéis de vidro, colocados de maneira a que, em determinados espaços interiores do edifício, possamos perceber que estamos rodeados pelos jardins, ou, num caso específico, para podermos observar, desse ponto de vista, a escultura do arquitecto Artur Rosa (de 1968); o que significa que também do exterior nos é possível perceber o espaço interior. Outra questão importante neste edifício é a materialidade. Trata-se de um edifício de aspecto sóbrio, que, em termos de composição usa, no fundo, poucos e discretos elementos, conseguindo então essa sobriedade tanto pela regularidade harmoniosa com que está desenhado, mas também dado o uso do betão armado e do betão pré-esforçado. A textura algo rude destes materiais parece criar uma relação, essa sim, quase orgânica, entre aquilo que é o material de construção e os vários elementos naturais que o circundam e que, em certos casos, o tocam ou mesmo crescem nele, como é o caso de várias heras. Por útlimo, o edifício Calouste Gulbenkian é pensado de maneira a integrar-se no espaço dos jardins. Esta integração, subtil e delicada (o que poderia parecer quase impossível num edifício tão maciço), faz o edifício, em muitos momentos, desaparecer entre a vegetação, dividindo, noutros, o protagonismo com ela, ao passo que, durante o inverno, o edifício ganha um destaque maior entre as árvores sem folhas.

Assim, um pouco como acontecia com a Farnsworth House de Mies, mas de uma forma bastante diferente, o edifício Calouste Gulbenkian também tece relações sensíveis e fortes entre espaço interior e espaço exterior, e entre  edifício e paisagem, deixando também vislumbrar aquilo que Mies procurou no seu projecto: os elementos impalpáveis como a luz ou a passagem do tempo.












Bibliografia

BESSA-LUÍS, Agustina: Contos Impopulares, Guimarães editores, Lisboa, 3a edição, 1984
GRAÇA MOURA, Vasco: Sobre a Escrita de Letras, in 'JL- Jornal de Letras, Artes e Ideias', nº1073, Novembro de 2011
KLEINMEN, Kent e VAN DUZER, Leslie: Mies Van Der Rohe, The Krefeld Villas, Princeton Architectural Press, New York, 2005
RIBEIRO, Helena Sofia da Silva Nunes Jales: Outras Casas Portuguesas (Dissertação de Mestrado), FCTUC, Coimbra, 2010
ROSSETTI, Christina: Selected Poems, introd. & org. Katherine McGowran, Wordsworth Poetry Library ed., Londres, 1999
ROSSETTI, Christina: O Mercado dos Duendes e Outros Poemas, org. Ana Rosa Nobre, trad. Margarida Vale de Gato, ed. Relógio d'Água, Lisboa, 2006
SOUTO DE MOURA, Eduardo: Prefácio a 'Ruy d'Athouguia: A Mordernidade em Aberto' de Graça Correia, ed. Caleidoscópio, Lisboa, 2008
VANDENBERG, Maritz: Farnsworth House, Ludwig Mies Van Der Rohe, Phaidon Press, Londres, 2003

Canção para o dia de hoje



We Are The Ocean: Trouble is Temporary, Time is Tonic (Do álbum 'Go Now and Live', 2011)

sábado, 24 de dezembro de 2011

Muriel



Às vezes se te lembras procurava-te
retinha-te esgotava-te e se te não perdia
era só por haver-te já perdido ao encontrar-te
Nada no fundo tinha que dizer-te
e para ver-te verdadeiramente
e na tua visão me comprazer
indispensável era evitar ter-te
Era tudo tão simples quando te esperava
tão disponível como então eu estava
Mas hoje há os papéis há as voltas dar
há gente à minha volta há a gravata
Misturei muitas coisas com a tua imagem
Tu és a mesma mas nem imaginas
como mudou aquele que te esperava
Tu sabes como era se soubesses como é
Numa vida tão curta mudei tanto
que é com certo espanto que no espelho da manhã
distraído diviso a cara que me resta
depois de tudo quanto o tempo me levou
Eu tinha uma cidade tinha o nome de madrid
havia as ruas as pessoas o anonimato
os bares os cinemas os museus
um dia vi-te e desde então madrid
se porventura tem ainda para mim sentido
é ser solidão que te rodeia a ti
Mas o preço que pago por te ter
é ter-te apenas quanto poder ver-te
e ao ver-te saber que vou deixar de ver-te
Sou muito pobre tenho só por mim
no meio destas ruas e do pão e dos jornais
este sol de Janeiro e alguns amigos mais
Mesmo agora te vejo e mesmo ao ver-te não te vejo
pois sei que dentro em pouco deixarei de ver-te
Eu aprendi a ver a minha infância
vim a saber mais tarde a importância desse verbo para os gregos
e penso que se bach hoje nascesse
em vez de ter composto aquele prelúdio e fuga em ré maior
que esta mesma tarde num concerto ouvi
teria concebido aqueles sweet hunters
que esta noite vi no cinema rosales
Vejo-te agora vi-te ontem e anteontem
E penso que se nunca a bem dizer te vejo
se fosse além de ver-te sem remédio te perdia
Mas eu dizia que te via aqui e acolá
e quando te não via dependia
do momento marcado para ver-te
Eu chegava primeiro e tinha de esperar-te
e antes de chegares já lá estavas
naquele preciso sítio combinado
onde sempre chegavas sempre tarde
ainda que antes mesmo de chegares lá estivesses
se ausente mais presente pela expectativa
por isso mais te via do que ao ter-te à minha frente
Mas sabia e sei que um dia não virás
que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
ou até se exististe ou se eu mesmo existi
pois na dúvida tenho a única certeza
Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?
Aquela hora certa aquele lugar?
À força de o pensar penso que não
Na melhor das hipóteses estou longe
qualquer de nós terá talvez morrido
No fundo quem nos visse àquela hora
à saída do metro de serrano
sensivelmente em frente daquele bar
poderia pensar que éramos reais
pontos materiais de referência
como as árvores ou os candeeiros
Talvez pensasse que naqueles encontro
sem que talvez no fundo procurássemos
o encontro profundo com nós mesmos
haveria entre nós um verdadeiro encontro
como o que apenas temos nos encontros
que vemos entre os outros onde só afinal somos felizes
Isso era por exemplo o que me acontecia
quando há anos nas manhãs de roma
entre os pinheiros ainda indecisos
do meu perdido parque de villa borghese
eu via essa mulher e esse homem
que naqueles encontros pontuais
Decerto não seriam tão felizes como neles eu
pois a felicidade para nós possível
é sempre a que sonhamos que há nos outros
Até que certo dia não sei bem
Ou não passei por lá ou eles não foram
nunca mais foram nunca mais passei por lá
Passamos como tudo sem remédio passa
e um dia decerto mesmo duvidamos
dia não tão distante como nós pensamos
se estivemos ali se madrid existiu
Se portanto chegares tu primeiro porventura
alguma vez daqui a alguns anosjunto de califórnia vinte e um
que não te admires se olhares e me não vires
Estarei longe talvez tenha envelhecido
Terei até talvez mesmo morrido
Não te deixes ficar sequer à minha espera
não telefones não marques o número
ele terá mudado a casa será outra
Nada penses ou faças vai-te embora
tu serás nessa altura jovem como agora
tu serás sempre a mesma fresca jovem pura
que alaga de luz todos os olhos
que exibe o sossego dos antigos templos
e que resiste ao tempo como a pedra
que vê passar os dias um por um
que contempla a sucessão de escuridão e luz
e assiste ao assalto pelo sol
daquele poder que pertencia à lua
que transfigura em luxo o próprio lixo
que tão de leve vive que nem dão por ela
as parcas implacáveis para os outros
que embora tudo mude nunca muda
ou se mudar que se não lembre de morrer
ou que enfim morra mas que não me desiluda
Dizia que ao chegar se olhares e não me vires
nada penses ou faças vai-te embora
eu não te faço falta e não tem sentido
esperares por quem talvez tenha morrido
ou nem sequer talvez tenha existido

Ruy Belo
Toda a Terra
1976, ed. Moraes
imagem de Lourdes Castro


quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

A Birthday



My heart is like a singing bird 
Whose nest is in a watered shoot; 
My heart is like an apple tree 
Whose boughs are bent with thickset fruit; 
My heart is like a rainbow shell 
That paddles in a halcyon sea; 
My heart is gladder than all these 
Because my love is come to me. 


Raise me a dais of silk and down; 
Hang it with vair and purple dyes; 
Carve it in doves, and pomegranates, 
And peacocks with a hundred eyes; 
Work it in gold and silver grapes, 
In leaves, and silver fleurs-de-lys; 
Because the birthday of my life 
Is come, my love is come to me.


Christina Rossetti
Goblin Market and Other Poems
1862, ed. MacMillan &Co, Londres
desenho de Júlio Resende

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Sátrapa



Olhos e ouvidos do rei
comedor de aranhas
irmão dos faquires


vê um ex-ditador
(todo de estrangeiro
sobre um dicionário)
a lamber os pires


De sono e silêncio
a boca fechada


a cria do pobre
inventa-se em cio
come-se à dentada


Sátrapa
Babilónia é rica
e Lisboa tem
cem muros de sombra


olhos e ouvidos do rei
escuta


Luiza Neto Jorge
Terra Imóvel
1964, Portugália  editora
pintura de Francis Bacon

Canção para o dia de hoje...



Morphine: Early to Bed (Do álbum 'Like Swimming', 1997)

Autobiografia



Lembro-me que houve um tempo
em que escrevia coisas.
Um tempo em que fechava portas e janelas
e saía de mim
e percorria o espaço cerebral.
Lembro-me que mais tarde
tudo me correu mal.
Foi como se tivesse morrido nas palavras
tão carinhosamente
tão cuidadosamente escolhidas
entre as outras palavras.
Lembro-me que houve noites de insónia
e de lua
e de passeios em branco pela rua
com uma vontade doida de chorar
subindo na garganta.
Lembro-me de não poder falar
e de sentir saudades perseguidas
do primeiro tempo
em que escrevia coisas.
Saudades.
Então fui ter com elas.
Estranhas damas de dentro
que não saem de casa
estranhas damas sentadas
em cadeiras mentais
fui ter com elas
porque em verdade lembro-me
que não podia mais
e tinha de as matar.
Para começar sentei-me
numa cadeira ao lado.
Falei do tempo
e do espaço
e do momento marcado
no relógio.
Depois disso agarrei no ponteiro das horas.
Uma pancada seca na cabeça.
Fim.
Lembro-me ainda que saí
deixando a porta aberta
atrás de mim.

Yvette K. Centeno
O Barco na Cidade
1965, ed. Guimarães
imagem de Hans Bellmer

Dia 22, Quinta-feira

às 22 horas, no Porto, está marcado um ''encontro ao mais baixo nível'' para o lançamento de um livro/caixa de Regina Guimarães, Saguenail e Alberto Péssimo
OUTREBLEU / OUTREMER 
será lançado no atlier de Alberto Péssimo, Rua de São Vítor, nº 26.
Abaixo recordo um poema de Regina e um outro de Saguenail.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Bailado Básico



paralisadaranha da paixão
desfazendo as costuras dos Universo
como o vestido de caxemira da noite
no mais ébrio dos encontros.
provérbio da pedra.


os macambúzios animais parecidos ficaram por baixo
no púbis purpurado de coisas doentiamente diferentes
taberna tenebra galáctica
o belo dálmata cego no coração da água.
ululando o luxo (corações ao alto)
e as lulas luminosas da lua.
a bijuteria dos humanos para estragar muitas festas.


equitação no leito de soluço
o oblongo sabugo da almofada
sifão serial.


epílogos paralelos como as caudas paralelas de lagarto no bilhar da pradaria tautológica.
em cada haste da erva.

Regina Guimarães
Abaixo da Banalidade, Abastança
1980, ed. Hélastre
pintura de Victor Brauner

Face au Mur dos Au Mur




Attendre sans espoir
User ses forces à résister
à la meule des jours
au laminoir des nuits
User les corps à forcer
les portes du ciel
hermétiques cadenassées
User ses ailes à échapper
à la trappe béante
affamée
de la terre
Appeler
en sachant que le ciel est muet
et la terre capitonnée
Étouffer
les cris
en travers de la gorge


Devenir son propre éteignoir

Saguenail
Il n'y a Pas des Saisons en Enfer
2007, ed. Hélastre
pintura de Felix Labisse

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Pela Mão de Alguém



Olham pela vigia. Parados nas nuvens.
Atados a uma cadeira presa ao chão.
O tempo sobe com o aroma do café,
rodopia na colher que os vai adoçando.
Turbulência, cintos apertados.
Dez horas a passarem nas vozes em surdina.
Se eu soubesse, se pudesse saber tudo o que levam
nas malas. Mas também eu vou no porão.
Hei-de rolar no tapete até que peguem em mim.
Como um livro de bolso vou espreitar a cidade
pela mão de alguém. Tenho um segredo,
digo, uma combinação. Tenho os órgãos
espalhados pela cama de um quarto de hotel.
Mãos viajantes fecham-me os pulmões.
A cidade retalhada pelo clique da máquina
será deles por uns dias. Resta-me a tumba
do armário até à próxima reencarnação.

Rosa Alice Branco
O Mundo Não Acaba no Frio dos Teus Ossos
2009, ed. Quasi
desenho de Adam Dant

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Canção para o dia de hoje



Mastodon: March of the Fire Ants (do álbum 'Remission', 2002)

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Diários e outras representações do eu (Prosa)

Portugal não lhes dá grande atenção e é pena. A escrita dos diários não é rara entre escritores e artistas, a sua publicação é frequente nalguns países. Portugal, claro, não é um deles. Não só há poucos autores a publicarem os seus, como pouco se traduz dos diários publicados por autores estrangeiros.
Para mim, é de lamentar, visto que um diário, ou, pelo menos, um bom diário, pode ser uma forma de entender melhor a obra de um autor ou, mais importante ainda, de nos inteirarmos do seu pensamento, das suas motivações e da sua visão do mundo que, em última análise, é força motora de toda a obra.
Há autores portugueses cuja obra de poesia ou ficção é atravessada frequentemente por vislumbres autobiográficos mais amplos ou menos. É o caso de Irene Lisboa, na grande maioria dos seus livros, mas também de Luísa Dacosta e Maria Ondina Braga.
Na obra de Irene Lisboa é frequente que não consigamos distinguir o que é o ficcional do que é autobiográfico ou auto-representativo, partindo do princípio que Irene chegou a aceitar o ficcional como integrante da sua obra.  Depois dos '13 Contarelos' (1926) para crianças, Irene publica dois livros de poesia, 'Um Dia e Outro Dia: Diário de uma Mulher' (1936) e 'Outono Havias de Vir, Latente e Triste' (1937). A designação de diário surge, inclusivamente, no título do primeiro e é, aliás, a relação desta poesia com o real e com o quotidiano que fará dela moderna e intemporal, anos-luz à frente do seu tempo. No que à prosa diz respeito, Irene escreve três livros que podemos considerar diários, e um outro ainda que, afastando-se do registo diarístico, se aproxima do relato autobiográfico, fazendo uma espécie de narrativa que começa na família, passa com intensidade pela infância e termina no tempo, mais ou menos, em que o texto está a ser escrito. Chama-se este livro 'Começa Uma Vida', e foi editado pela primeira vez em 1940, ou seja, um ano depois da primeira edição do emblemático 'Solidão'. 'Solidão: Notas do Punho de Uma Mulher', além das datações, aproxima-se assumidamente da escrita do diário, na sua tendência para o fragmentário e para a atenção minuciosa dada a pormenores do quotidano, que ajudam um 'eu' feminino (Importa apontá-lo quando o livro é assinado com o pseudónimo de João Falco.) que se encontra frequentemente numa tremenda solidão. Continuação deste registo e, até certo ponto, continuação deste livro, é 'Solidão II', de 1966, publicado, portanto, postumamente. 'Apontamentos', de 1943, constitui também uma espécie de diário, este especificamente orientado para a observação de aspectos do quotidiano principalmente citadino, contendo ainda preciosos apontamentos sobre a relação do 'eu' com o mundo e com o tempo, elemento essencial para a estruturação de um diário.
Luísa Dacosta, a par de uma obra onde o autobiográfico tem presença tutelar, publicou dois diários, 'Na Água do Tempo' (1990) e 'Um Olhar Naufragado' (2008) e são bons exemplos do que de melhor um diário pode oferecer. Além de apontamentos pessoais que não tocam um confessionalismo de mau-gosto, estes dois diários oferecem-nos textos que podem perfeitamente ser contos ou até poemas em prosa que, por várias razões, não tenham integrado os restantes livros da autora. Mais ainda, todas as preocupações da obra de Luísa têm grande presença nos diários, e estes textos vêm aumentar as dimensões literária, humana e sociológica que encontramos nos seus livros de contos e crónicas e no seu romance 'O Planeta Desconhecido e Romance da que fui Antes de Mim' (2002). O gosto pela observação minuciosa que se constrói dentro da tendência pelo fragmentário fica no diário mais do que clarificado e o conjunto desses dois livros está longe de ocupar um lugar secundário na bibliografia de Luísa Dacosta.
O caso de Maria Ondina Braga tem contornos diferentes. Maria Ondina nunca publicou um diário propriamente dito. No entanto, vários dos seus livros -penso em 'A Personagem' (1978) ou 'A Casa Suspensa' (1981)- ficcionam a escrita de um diário, ficando nessa ficção de certa forma esfumados os limites do autobiográfico. Ou seja, projectando-se numa personagem que escreve um diário, Maria Ondina escreve subliminarmente o seu próprio diário. Da sua bibliografia, destaca-se 'Estátua de Sal' (1969), um dos livros mais importantes de Maria Ondina, reeditado duas vezes (O que é interessante no caso de uma autora cuja maioria dos livros nunca conheceu reedição.) que se apresenta como uma 'autobiografia romanceada'. Esta designação, de certa forma, faz com que este livro ocupe um lugar especial entre os livros da autora bracarense. Não sendo necessariamente um diário, 'Estátua de Sal' cumpre muitos dos aspectos que um diário por norma cumpre. Ele centra-se na vida da autora enquanto plano narrativo, mas não abdica, em nome disso, de uma atenção dada ao lado literário, à inserção do texto final no conjunto de uma obra. Talvez mais do que qualquer outro livro de Maria Ondina, 'Estátua de Sal' dá-nos a dimensão do seu mundo interior, da sua solidão e dos assuntos que pautarão a sua obra desde 'Eu Vim Para Ver a Terra' (1965) e até dos dois livrinhos de poesia publicados na juventude, 'O Meu Sentir' (1949) e 'Almas e Rimas' (1952).
Bastante diferente é o caso de José Saramago, cuja escrita sempre recusou, de vários pontos de vista, o autobiográfico. Com o primeiro romance publicado em 1947, 'Terra do Pecado', e com um ritmo de publicação que só se torna frequente a partir de 1966, com 'Os Poemas Possíveis', a edição dos 'Cadernos de Lanzarote' começa apenas em 1994 e estende-se por cinco volumes.  A perspectiva de escrita é a de que, nas palavras do próprio Saramago, um diário não passa de um modo incipiente de fazer ficção. De facto, a descrição de aspectos do quotidiano roça, nestes livros, a malha ficcional na forma como está feita; mas, quanto à parte do incipiente, permitam-nos discordar. De facto, estes 'Cadernos de Lanzarote' em muito nos dão a ver o pensamento literário e político de José Saramago, e muito do que neles é abordado de uma forma algo meditativa, está presente em vários dos romances, o que nos confirma estes diários como, eventualmente, uma maneira de, mais directamente, nos aproximarmos das motivações do autor.
O caso de Maria Gabriela Llansol apresenta-se-nos, como sempre, desafiante. Ao contrário do que acontece com José Saramago ou Luísa Dacosta (Ou outros casos aqui não referidos, como os de Vergílio Ferreira ou José Régio.), foi bastante cedo que Llansol preparou uma edição de um diário. Em 1985, data em que é editado 'Um Falcão no Punho', a escritora contava com dois livros praticamente invisíveis ('Os Pregos na Erva', 1962, e 'Depois de Os Pregos na Erva', 1973.), com a trilogia da 'Geografia de Rebeldes', e com 'Causa Amante' (1984), que seria o primeiro volume da trilogia 'O Litoral do Mundo'. À data da primeira edição do primeiro diário de Llansol, ela não era ainda uma escritora com um longo percurso. Por isso, o facto de editar um diário não deixa de constituir uma certa surpresa. Isto, até percebermos o que é, para Llansol, um diário. Nada tem a ver com a descrição do quotidiano e, por vezes, parece nem sequer ter a ver com uma representação auto-biográfica. Para entender o contexto deste diário, bem como do segundo volume, 'Finita' (1987), é preciso compreender que, em muito, os textos diarísticos não se distinguem daqueles que integram os romances, e que, quando deles divergem, se deslocam no sentido do pensamento sobre a escrita. A dissolução dos limites entre géneros de escrita pode muito bem explicar alguns aspectos da estranha natureza da escrita de Llansol, e os diários ajudam a compreender as regras, que constantemente se alteram, dessa dissolução. 'Inquérito às Quatro Confidências' (1996) ocupa, de certa forma, um lugar àparte nos diários de Llansol, uma vez que é escrito para Vergílio Ferreira, no sentido de estabelecer com ele uma espécie de diálogo, sem, no entanto se afastar da natureza reflexiva dos dois diários anteriormente publicados. Até à publicação do último romance de Maria Gabriela, 'Os Cantores de Leitura' (2007), não temos mais diários. Nos últimos meses de vida, no entanto, a escritora parece ter decidido regressar ao diário. A edição da série dos cadernos de escrita, com o título genérico de 'Livros de Horas', vai já no segundo volume, e, de certa forma, vem dar continuação àquilo que os três diários editados em vida nos mostravam: não só o pensamento constante que sempre desagua no pensamento sobre a escrita, como também a obsessão de Maria Gabriela com a vida, uma vez que o texto se torna o lugar onde tudo está num estado vivo e actuante, desde as pessoas fisicamente vivas ou mortas, às plantas, aos animais, aos objectos.
Apesar da sua actividade literária ter começado bastante antes, o polémico Luiz Pacheco só se apresenta a título individual em 1958, com a 'Carta Sincera a José Gomes Ferreira com Uma Nota do Autor por Causa da Província'. Pacheco sempre escreveu textos curtos que podem, na melhor das hipóteses, ser considerados contos. Estas curtos textos raramente se inclinam para a ficção, tendendo todos eles para uma carga, no mínimo, auto-representativa. Textos como a 'Comunidade' (1964) são exemplo de como a escrita de Pacheco reflecte uma realidade bastante concreta e que, sabemos, era a da sua atribulada vida. Em 2005 é editado o 'Diário Remendado 1971-1975', um diário propriamente dito, que acompanha Pacheco nas suas meditações sobre o desejo de ser escritor profissionalmente, e nas dificuldades que isso causa, a vários níveis. Como sempre, a escrita de Luiz Pacheco surge-nos despudorada e directa, perfeitamente adequada para o texto diarístico, a que não falta uma profundidade que os desvia da vulgaridade.
São alguns casos de diários em prosa publicados em Portugal, onde o diário é um género literário quase inexistente e ao qual não se dedicam estudos em número suficiente para deles se entender a verdadeira dimensão.
Isto afecta ainda as traduções, sendo muito raro encontrarmos em português diários traduzidos. A título de exemplo, cito 'Odeio-me e Quero Morrer', a recolha de fragmentos autobiográficos de Kurt Cobain e 'Antologia de Páginas Íntimas', que selecciona páginas do 'Diário', das 'Meditações' e da 'Carta ao Pai' de Franz Kafka.