Portugal não lhes dá grande atenção e é pena. A escrita dos diários não é rara entre escritores e artistas, a sua publicação é frequente nalguns países. Portugal, claro, não é um deles. Não só há poucos autores a publicarem os seus, como pouco se traduz dos diários publicados por autores estrangeiros.
Para mim, é de lamentar, visto que um diário, ou, pelo menos, um bom diário, pode ser uma forma de entender melhor a obra de um autor ou, mais importante ainda, de nos inteirarmos do seu pensamento, das suas motivações e da sua visão do mundo que, em última análise, é força motora de toda a obra.
Há autores portugueses cuja obra de poesia ou ficção é atravessada frequentemente por vislumbres autobiográficos mais amplos ou menos. É o caso de Irene Lisboa, na grande maioria dos seus livros, mas também de Luísa Dacosta e Maria Ondina Braga.
Na obra de Irene Lisboa é frequente que não consigamos distinguir o que é o ficcional do que é autobiográfico ou auto-representativo, partindo do princípio que Irene chegou a aceitar o ficcional como integrante da sua obra. Depois dos '13 Contarelos' (1926) para crianças, Irene publica dois livros de poesia, 'Um Dia e Outro Dia: Diário de uma Mulher' (1936) e 'Outono Havias de Vir, Latente e Triste' (1937). A designação de diário surge, inclusivamente, no título do primeiro e é, aliás, a relação desta poesia com o real e com o quotidiano que fará dela moderna e intemporal, anos-luz à frente do seu tempo. No que à prosa diz respeito, Irene escreve três livros que podemos considerar diários, e um outro ainda que, afastando-se do registo diarístico, se aproxima do relato autobiográfico, fazendo uma espécie de narrativa que começa na família, passa com intensidade pela infância e termina no tempo, mais ou menos, em que o texto está a ser escrito. Chama-se este livro 'Começa Uma Vida', e foi editado pela primeira vez em 1940, ou seja, um ano depois da primeira edição do emblemático 'Solidão'. 'Solidão: Notas do Punho de Uma Mulher', além das datações, aproxima-se assumidamente da escrita do diário, na sua tendência para o fragmentário e para a atenção minuciosa dada a pormenores do quotidano, que ajudam um 'eu' feminino (Importa apontá-lo quando o livro é assinado com o pseudónimo de João Falco.) que se encontra frequentemente numa tremenda solidão. Continuação deste registo e, até certo ponto, continuação deste livro, é 'Solidão II', de 1966, publicado, portanto, postumamente. 'Apontamentos', de 1943, constitui também uma espécie de diário, este especificamente orientado para a observação de aspectos do quotidiano principalmente citadino, contendo ainda preciosos apontamentos sobre a relação do 'eu' com o mundo e com o tempo, elemento essencial para a estruturação de um diário.
Na obra de Irene Lisboa é frequente que não consigamos distinguir o que é o ficcional do que é autobiográfico ou auto-representativo, partindo do princípio que Irene chegou a aceitar o ficcional como integrante da sua obra. Depois dos '13 Contarelos' (1926) para crianças, Irene publica dois livros de poesia, 'Um Dia e Outro Dia: Diário de uma Mulher' (1936) e 'Outono Havias de Vir, Latente e Triste' (1937). A designação de diário surge, inclusivamente, no título do primeiro e é, aliás, a relação desta poesia com o real e com o quotidiano que fará dela moderna e intemporal, anos-luz à frente do seu tempo. No que à prosa diz respeito, Irene escreve três livros que podemos considerar diários, e um outro ainda que, afastando-se do registo diarístico, se aproxima do relato autobiográfico, fazendo uma espécie de narrativa que começa na família, passa com intensidade pela infância e termina no tempo, mais ou menos, em que o texto está a ser escrito. Chama-se este livro 'Começa Uma Vida', e foi editado pela primeira vez em 1940, ou seja, um ano depois da primeira edição do emblemático 'Solidão'. 'Solidão: Notas do Punho de Uma Mulher', além das datações, aproxima-se assumidamente da escrita do diário, na sua tendência para o fragmentário e para a atenção minuciosa dada a pormenores do quotidano, que ajudam um 'eu' feminino (Importa apontá-lo quando o livro é assinado com o pseudónimo de João Falco.) que se encontra frequentemente numa tremenda solidão. Continuação deste registo e, até certo ponto, continuação deste livro, é 'Solidão II', de 1966, publicado, portanto, postumamente. 'Apontamentos', de 1943, constitui também uma espécie de diário, este especificamente orientado para a observação de aspectos do quotidiano principalmente citadino, contendo ainda preciosos apontamentos sobre a relação do 'eu' com o mundo e com o tempo, elemento essencial para a estruturação de um diário.
Luísa Dacosta, a par de uma obra onde o autobiográfico tem presença tutelar, publicou dois diários, 'Na Água do Tempo' (1990) e 'Um Olhar Naufragado' (2008) e são bons exemplos do que de melhor um diário pode oferecer. Além de apontamentos pessoais que não tocam um confessionalismo de mau-gosto, estes dois diários oferecem-nos textos que podem perfeitamente ser contos ou até poemas em prosa que, por várias razões, não tenham integrado os restantes livros da autora. Mais ainda, todas as preocupações da obra de Luísa têm grande presença nos diários, e estes textos vêm aumentar as dimensões literária, humana e sociológica que encontramos nos seus livros de contos e crónicas e no seu romance 'O Planeta Desconhecido e Romance da que fui Antes de Mim' (2002). O gosto pela observação minuciosa que se constrói dentro da tendência pelo fragmentário fica no diário mais do que clarificado e o conjunto desses dois livros está longe de ocupar um lugar secundário na bibliografia de Luísa Dacosta.
O caso de Maria Ondina Braga tem contornos diferentes. Maria Ondina nunca publicou um diário propriamente dito. No entanto, vários dos seus livros -penso em 'A Personagem' (1978) ou 'A Casa Suspensa' (1981)- ficcionam a escrita de um diário, ficando nessa ficção de certa forma esfumados os limites do autobiográfico. Ou seja, projectando-se numa personagem que escreve um diário, Maria Ondina escreve subliminarmente o seu próprio diário. Da sua bibliografia, destaca-se 'Estátua de Sal' (1969), um dos livros mais importantes de Maria Ondina, reeditado duas vezes (O que é interessante no caso de uma autora cuja maioria dos livros nunca conheceu reedição.) que se apresenta como uma 'autobiografia romanceada'. Esta designação, de certa forma, faz com que este livro ocupe um lugar especial entre os livros da autora bracarense. Não sendo necessariamente um diário, 'Estátua de Sal' cumpre muitos dos aspectos que um diário por norma cumpre. Ele centra-se na vida da autora enquanto plano narrativo, mas não abdica, em nome disso, de uma atenção dada ao lado literário, à inserção do texto final no conjunto de uma obra. Talvez mais do que qualquer outro livro de Maria Ondina, 'Estátua de Sal' dá-nos a dimensão do seu mundo interior, da sua solidão e dos assuntos que pautarão a sua obra desde 'Eu Vim Para Ver a Terra' (1965) e até dos dois livrinhos de poesia publicados na juventude, 'O Meu Sentir' (1949) e 'Almas e Rimas' (1952).
Bastante diferente é o caso de José Saramago, cuja escrita sempre recusou, de vários pontos de vista, o autobiográfico. Com o primeiro romance publicado em 1947, 'Terra do Pecado', e com um ritmo de publicação que só se torna frequente a partir de 1966, com 'Os Poemas Possíveis', a edição dos 'Cadernos de Lanzarote' começa apenas em 1994 e estende-se por cinco volumes. A perspectiva de escrita é a de que, nas palavras do próprio Saramago, um diário não passa de um modo incipiente de fazer ficção. De facto, a descrição de aspectos do quotidiano roça, nestes livros, a malha ficcional na forma como está feita; mas, quanto à parte do incipiente, permitam-nos discordar. De facto, estes 'Cadernos de Lanzarote' em muito nos dão a ver o pensamento literário e político de José Saramago, e muito do que neles é abordado de uma forma algo meditativa, está presente em vários dos romances, o que nos confirma estes diários como, eventualmente, uma maneira de, mais directamente, nos aproximarmos das motivações do autor.
O caso de Maria Gabriela Llansol apresenta-se-nos, como sempre, desafiante. Ao contrário do que acontece com José Saramago ou Luísa Dacosta (Ou outros casos aqui não referidos, como os de Vergílio Ferreira ou José Régio.), foi bastante cedo que Llansol preparou uma edição de um diário. Em 1985, data em que é editado 'Um Falcão no Punho', a escritora contava com dois livros praticamente invisíveis ('Os Pregos na Erva', 1962, e 'Depois de Os Pregos na Erva', 1973.), com a trilogia da 'Geografia de Rebeldes', e com 'Causa Amante' (1984), que seria o primeiro volume da trilogia 'O Litoral do Mundo'. À data da primeira edição do primeiro diário de Llansol, ela não era ainda uma escritora com um longo percurso. Por isso, o facto de editar um diário não deixa de constituir uma certa surpresa. Isto, até percebermos o que é, para Llansol, um diário. Nada tem a ver com a descrição do quotidiano e, por vezes, parece nem sequer ter a ver com uma representação auto-biográfica. Para entender o contexto deste diário, bem como do segundo volume, 'Finita' (1987), é preciso compreender que, em muito, os textos diarísticos não se distinguem daqueles que integram os romances, e que, quando deles divergem, se deslocam no sentido do pensamento sobre a escrita. A dissolução dos limites entre géneros de escrita pode muito bem explicar alguns aspectos da estranha natureza da escrita de Llansol, e os diários ajudam a compreender as regras, que constantemente se alteram, dessa dissolução. 'Inquérito às Quatro Confidências' (1996) ocupa, de certa forma, um lugar àparte nos diários de Llansol, uma vez que é escrito para Vergílio Ferreira, no sentido de estabelecer com ele uma espécie de diálogo, sem, no entanto se afastar da natureza reflexiva dos dois diários anteriormente publicados. Até à publicação do último romance de Maria Gabriela, 'Os Cantores de Leitura' (2007), não temos mais diários. Nos últimos meses de vida, no entanto, a escritora parece ter decidido regressar ao diário. A edição da série dos cadernos de escrita, com o título genérico de 'Livros de Horas', vai já no segundo volume, e, de certa forma, vem dar continuação àquilo que os três diários editados em vida nos mostravam: não só o pensamento constante que sempre desagua no pensamento sobre a escrita, como também a obsessão de Maria Gabriela com a vida, uma vez que o texto se torna o lugar onde tudo está num estado vivo e actuante, desde as pessoas fisicamente vivas ou mortas, às plantas, aos animais, aos objectos.
Apesar da sua actividade literária ter começado bastante antes, o polémico Luiz Pacheco só se apresenta a título individual em 1958, com a 'Carta Sincera a José Gomes Ferreira com Uma Nota do Autor por Causa da Província'. Pacheco sempre escreveu textos curtos que podem, na melhor das hipóteses, ser considerados contos. Estas curtos textos raramente se inclinam para a ficção, tendendo todos eles para uma carga, no mínimo, auto-representativa. Textos como a 'Comunidade' (1964) são exemplo de como a escrita de Pacheco reflecte uma realidade bastante concreta e que, sabemos, era a da sua atribulada vida. Em 2005 é editado o 'Diário Remendado 1971-1975', um diário propriamente dito, que acompanha Pacheco nas suas meditações sobre o desejo de ser escritor profissionalmente, e nas dificuldades que isso causa, a vários níveis. Como sempre, a escrita de Luiz Pacheco surge-nos despudorada e directa, perfeitamente adequada para o texto diarístico, a que não falta uma profundidade que os desvia da vulgaridade.
São alguns casos de diários em prosa publicados em Portugal, onde o diário é um género literário quase inexistente e ao qual não se dedicam estudos em número suficiente para deles se entender a verdadeira dimensão.
Isto afecta ainda as traduções, sendo muito raro encontrarmos em português diários traduzidos. A título de exemplo, cito 'Odeio-me e Quero Morrer', a recolha de fragmentos autobiográficos de Kurt Cobain e 'Antologia de Páginas Íntimas', que selecciona páginas do 'Diário', das 'Meditações' e da 'Carta ao Pai' de Franz Kafka.
O caso de Maria Gabriela Llansol apresenta-se-nos, como sempre, desafiante. Ao contrário do que acontece com José Saramago ou Luísa Dacosta (Ou outros casos aqui não referidos, como os de Vergílio Ferreira ou José Régio.), foi bastante cedo que Llansol preparou uma edição de um diário. Em 1985, data em que é editado 'Um Falcão no Punho', a escritora contava com dois livros praticamente invisíveis ('Os Pregos na Erva', 1962, e 'Depois de Os Pregos na Erva', 1973.), com a trilogia da 'Geografia de Rebeldes', e com 'Causa Amante' (1984), que seria o primeiro volume da trilogia 'O Litoral do Mundo'. À data da primeira edição do primeiro diário de Llansol, ela não era ainda uma escritora com um longo percurso. Por isso, o facto de editar um diário não deixa de constituir uma certa surpresa. Isto, até percebermos o que é, para Llansol, um diário. Nada tem a ver com a descrição do quotidiano e, por vezes, parece nem sequer ter a ver com uma representação auto-biográfica. Para entender o contexto deste diário, bem como do segundo volume, 'Finita' (1987), é preciso compreender que, em muito, os textos diarísticos não se distinguem daqueles que integram os romances, e que, quando deles divergem, se deslocam no sentido do pensamento sobre a escrita. A dissolução dos limites entre géneros de escrita pode muito bem explicar alguns aspectos da estranha natureza da escrita de Llansol, e os diários ajudam a compreender as regras, que constantemente se alteram, dessa dissolução. 'Inquérito às Quatro Confidências' (1996) ocupa, de certa forma, um lugar àparte nos diários de Llansol, uma vez que é escrito para Vergílio Ferreira, no sentido de estabelecer com ele uma espécie de diálogo, sem, no entanto se afastar da natureza reflexiva dos dois diários anteriormente publicados. Até à publicação do último romance de Maria Gabriela, 'Os Cantores de Leitura' (2007), não temos mais diários. Nos últimos meses de vida, no entanto, a escritora parece ter decidido regressar ao diário. A edição da série dos cadernos de escrita, com o título genérico de 'Livros de Horas', vai já no segundo volume, e, de certa forma, vem dar continuação àquilo que os três diários editados em vida nos mostravam: não só o pensamento constante que sempre desagua no pensamento sobre a escrita, como também a obsessão de Maria Gabriela com a vida, uma vez que o texto se torna o lugar onde tudo está num estado vivo e actuante, desde as pessoas fisicamente vivas ou mortas, às plantas, aos animais, aos objectos.
Apesar da sua actividade literária ter começado bastante antes, o polémico Luiz Pacheco só se apresenta a título individual em 1958, com a 'Carta Sincera a José Gomes Ferreira com Uma Nota do Autor por Causa da Província'. Pacheco sempre escreveu textos curtos que podem, na melhor das hipóteses, ser considerados contos. Estas curtos textos raramente se inclinam para a ficção, tendendo todos eles para uma carga, no mínimo, auto-representativa. Textos como a 'Comunidade' (1964) são exemplo de como a escrita de Pacheco reflecte uma realidade bastante concreta e que, sabemos, era a da sua atribulada vida. Em 2005 é editado o 'Diário Remendado 1971-1975', um diário propriamente dito, que acompanha Pacheco nas suas meditações sobre o desejo de ser escritor profissionalmente, e nas dificuldades que isso causa, a vários níveis. Como sempre, a escrita de Luiz Pacheco surge-nos despudorada e directa, perfeitamente adequada para o texto diarístico, a que não falta uma profundidade que os desvia da vulgaridade.
São alguns casos de diários em prosa publicados em Portugal, onde o diário é um género literário quase inexistente e ao qual não se dedicam estudos em número suficiente para deles se entender a verdadeira dimensão.
Isto afecta ainda as traduções, sendo muito raro encontrarmos em português diários traduzidos. A título de exemplo, cito 'Odeio-me e Quero Morrer', a recolha de fragmentos autobiográficos de Kurt Cobain e 'Antologia de Páginas Íntimas', que selecciona páginas do 'Diário', das 'Meditações' e da 'Carta ao Pai' de Franz Kafka.
Sem comentários:
Enviar um comentário