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domingo, 13 de outubro de 2013

13 de Fevereiro de 1979, terça (fragmento)

 

 
No dia 7, morte da prima Leonor. Era alguém pequeno e delicado, com pesado cabelo, que me manifestava muita amizade, e que me ofereceu um saiote de renda antiga  um castiçal que hoje acendi para iluminar o que ela desconhece da morte.
Hoje, a Françoise telefonou de manhã a pedir que o Zé lhe levasse alguns legumes; o Marc veio encontrar-se com a mulher do Mottoule, que precisa de um cozinheiro para o restaurante que vai abrir, e almoçou connosco. Vivo com animais, mas quanto a pessoas sinto-me numa ilha deserta. Falando da Françoise, e do Marc, é como se dissesse: hoje fiz sinais para um barco, hoje um veleiro passou pelo porto.
Evidentemente que não gosto menos do silêncio, mas gostaria de poder abordar naturalmente os outros, trocar com eles alguns fósforos, já não digo velas, para iluminar este caminho de implicações imprevisíveis e desconhecidas que a prima Leonor, que tinha um rosto cantante, deixou com oitenta anos, há dias.
Conversa com o Augusto sobre o impasse.
 
Maria Gabriela Llansol
Numerosas Linhas / Livro de Horas III
2013, ed. Assírio e Alvim
pintura de Georges de la Tour

domingo, 13 de janeiro de 2013

[Um fragmento]


    Sentada
no adro, vejo a igreja de São Martinho aberta,
mas tão aberta
que a Física explode. O ar é puro. O ar é raro. De uma grande raridade humana por entre as árvores de que preciso saber os nomes. O lápis corre rápido com o que tem a dizer ao espaço vazio que lá dentro guarda o segredo do humano
escreve rápido, pede-lhe o ar

bem-aventurados os alucinados, porque deles será o real
bem-aventurados os desiludidos, porque neles o pensamento se fará humano
bem-aventurados os corpos que morrem, porque deles será a sensualidade do invisível
bem-aventurados os desesperados, porque deles será a restante esperança
bem-aventurado sejas tu, ó texto, porque nos abres a geografia dos mundos
bem-aventurada sejas tu, ó Terra, porque tua será a explosão que levará o vivo a todo o Universo.

   Imóvel, fico-vos a olhar, Teresa, ou Hadewijch,
mas vós não vos inquietais,
correis sobre o vivo _e arrastando o vivo que vos investe.
Peixes, no rio do tempo.
    A figura intermédia, pelo ler saudada,

é o vosso Joshua.

Maria Gabriela Llansol
Ardente Texto Joshua
1998, ed. Relógio d'Água
pintura de El Greco

quinta-feira, 12 de abril de 2012

[Um fragmento]



Teresa, teresa,
Quem me fala?
Sou eu, a tua companheira
É ele quem te manda?
Pousa a cabeça nos meus braços, teresa                sem medo
ouve,
hoje foi a enterrar no texto um dos meus gatos
escrevi que não me cansarei de escrever que os animais crêem em nós
como se chamava
Farófia
que nome estranho para um gato
o que é estranho é ter um nome, teresa


repara
está branco no interior do armário de Joshua.
Sem nada; rien condiziria melhor com a realidade, conduziria melhor o armário, através do corredor, até à porta. Está descendo as escadas, compassadamente. Sem gritos.
não para me entregar, mas para ser um só com o teu caminho no horizonte, para lá deste claustro, recortam-se as árvores, talvez choupos e chorões
porque a manhã é rara
sobre para além da manhã e alcança-me
irrompe subitamente na tristeza que se apresta a invadir-me
não permitas que eu soçobre
pergunta-me
faz-me perguntas
pergunta-me que sonho tive no texto da noite
pergunta-me se sofro porque tudo abrasas
os móveis da nossa morada, imagens, bibelots, cartas, rendas, livros
tudo e a madeira de que eram feitos
quando voltei já não se encontravam


pergunta-me se o vazio me faz sofrer
se a curva das árvores me aproxima de ti
rosto pouco a pouco conhecido

Maria Gabriela Llansol
Ardente Texto Joshua
1998, ed. Relógio d'Água
gravura de J.B. Greuze

domingo, 11 de março de 2012

20 de Março de 1977, domingo


Há muito tempo que não falo a Hadewijch, mas ela está sempre presente diante da minha boca.
O som da água corre abundantemente. A que filho te darás neste momento? Reúno as recordações mais antigas, as vagas e as precisas, sua silhueta se recorta no ponto mais íntimo da casa. Müntzer dorme, e recolhemos nosso espírito no que dizemos,
e no ciciar breve que não nos abandona. Pergunto-te o que não sei:
_Tinha-te dado uma haste metálica, igual a uma que comprara para mim. Com uma flor na ponta.
_Impressionou-me o sentido do presente. Julguei que desejavas que eu morresse.
_Como pudeste pensar...

Maria Gabriela Llansol
Um Arco Singular, Livro de Horas II
2010, ed. Assírio e Alvim
pormenor de pintura de Rogier van der Weyden

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Textos de Maria Gabriela Llansol, escritos na Bélgica


Jodoigne, 17 de Maio de 1975

Nunca falei directamente sobre a nova casa em que vivo, no fundo de um pátio para carruagens e cavalos; num jardim difícil, numa porta grande de ferro, com ornatos, e fachada. Esta é Jodoigne. Hoje, se vier alguém do exterior, pode ser recebido como um estranho.
Pensamentos contíguos/ não suporto a palavra História e, no entanto, há centros de irradiação, tramas sólidas de geografias espirituais, lugares de recorrência, humanos duradouros e perduráveis; tudo o que entrar aqui será imperceptivelmente belo, ou tornar-se-á belo.

Finita - Diário 2

25 de Janeiro de 1976, domingo

Neva. Bebo um café e como um «babá» na pastelaria feminina de Jodoigne. O convívio, a vida de grupo, continua a parecer-me um problema insolúvel, mas deixei de ouvir a frase que o exprimia, quando me levantei esta manhã. Aos homens escapam muito mais coisas do que aos animais e às plantas________
Não gosto de ver nevar quando estou sozinha. Ouço uma música adequada à neve. Como já disse, a pastelaria é feminina.
A Quinta, o pão, absorve todo o tempo. São sempre os mais pobres que trabalham, que trabalham no tempo até o abolirem.
As crianças imaginam que a vida dos adultos, quando estão com elas, é sempre um prazer.
Limpar a casa, ver o chão brilhar e espelhar o que imagino, e é real, fazer almofadas trabalhando o tecido para o repouso, acender a luz quando faz noite, e olhar e olhar-me sob outra perspectiva, são já belos motivos para viver.
Mas nada escapa a esta tristeza doce que é também provocada pela minha existência limitada do tempo.
Volto para casa, fazer croquetes. Mas antes leio uma frase de Histoire de l'idée de nature:
*«Mas a natureza não é assunto de um só sábio.»*

Uma Data em Cada Mão- Livro de Horas I

18 de Agosto de 1977, quinta

Há três dias que chove sobre Antuérpia como se chovesse sobre o mundo; a chuva tornou-se inimiga,
e no meu saber e espírito a frota de Lisboa ocupa o porto, com mil cheiros marítimos; num momento de meus [dias], quando era criança, por ali passei e lembro-me de que meu pai me levava pela mão, ao longo de um grande cais que estremecia de movimento; o rio não era o Escalda, chamava-se Tejo, e o mar cercava-o, o cerco de Lisboa
e foi nesse momento que eu decidi ser béguine e voltar ao meu país.
Depois veio a inundação. Por volta do meio-dia ouço mais um rumor de água na cave.



21 de Agosto de 1977, domingo

Volto às béguines, e à projectada nova viagem a Anvers, por Anvers, e para colher apontamentos e comprar a brochura sobre a casa de Plantin-Moretus.

Já de manhã estava a estudar a forma rectangular da página branca, sobreposta à forma rectangular densa do texto, que pode ser fragmentado ou não em colunas e glosas.

*Acontece ainda que o livro medieval corresponde muitas vezes a um único tipo de utilização, a uma leitura sequencial*; apareceu a página com o título, rara e puramente decorativa, nos manuscritos.

Barroco:
*A ideia de que o livro é um espaço fechado, ao mesmo tempo morada e monumento cujo limiar deve ser engrandecido por formas figuradas, já está presente no livro manuscrito.

A alegoria_ escolha de objectos que servem para representar uma coisa diferente daquilo que são. A alegoria significa o conteúdo do volume. 


Um Arco Singular- Livro de Horas II


Herbais, 23 de Janeiro de 1981

Herbais:    a ilha para onde nos dirigimos tinha sido riscada do mapa; a não ser que o lugar onde nos encontrávamos, desprendendo-se dos prados firmes, nos levasse para ela.

Os dias já não são o que eram; nunca havíamos suposto que seria necessário recorrer à escrita:

                                                «si l'on pousse assez loin dans la 
                                                language, on se trouve pris dans 
                                                l'etreinte de la pensée.»

a perda do mar pela areia é inevitável; da vela que arde à folha que respira, o seu rosto permanecia sempre latente; e qualquer objecto estava sempre a ser rodeado por ela.

Um Falcão no Punho- Diário 1

fotografias de Jodoigne, Antuérpia (Estação Central) e Herbais

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

2 de Junho de 1972



Leitmotiv para um texto (dia em que recomecei  a segunda metade da minha psic[análise].)


Amor por Lourenço de Médicis


Tem na mão o dinheiro que faz que a terra verde
não precise mais de ser comprida:
tem na mão a pintura para ser feita
o livro para ser escrito
e a música para ser imaginada
tem na mão o dinheiro para que a máquina
seja em homem transformada
tem na mão o dinheiro para que o amor
da inculpa seja reparado
tem na mão o dinheiro para que a morte
seja esperança em nada
tem na mão o dinheiro
para que toda a riqueza
seja, enfim, consumada.

Maria Gabriela Llansol
Uma Data em Cada Mão- Livro de Horas I
2009, ed. Assírio e Alvim
retrato de Lorenzo Medici por pintor desconhecido

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Diários e outras representações do eu (Prosa)

Portugal não lhes dá grande atenção e é pena. A escrita dos diários não é rara entre escritores e artistas, a sua publicação é frequente nalguns países. Portugal, claro, não é um deles. Não só há poucos autores a publicarem os seus, como pouco se traduz dos diários publicados por autores estrangeiros.
Para mim, é de lamentar, visto que um diário, ou, pelo menos, um bom diário, pode ser uma forma de entender melhor a obra de um autor ou, mais importante ainda, de nos inteirarmos do seu pensamento, das suas motivações e da sua visão do mundo que, em última análise, é força motora de toda a obra.
Há autores portugueses cuja obra de poesia ou ficção é atravessada frequentemente por vislumbres autobiográficos mais amplos ou menos. É o caso de Irene Lisboa, na grande maioria dos seus livros, mas também de Luísa Dacosta e Maria Ondina Braga.
Na obra de Irene Lisboa é frequente que não consigamos distinguir o que é o ficcional do que é autobiográfico ou auto-representativo, partindo do princípio que Irene chegou a aceitar o ficcional como integrante da sua obra.  Depois dos '13 Contarelos' (1926) para crianças, Irene publica dois livros de poesia, 'Um Dia e Outro Dia: Diário de uma Mulher' (1936) e 'Outono Havias de Vir, Latente e Triste' (1937). A designação de diário surge, inclusivamente, no título do primeiro e é, aliás, a relação desta poesia com o real e com o quotidiano que fará dela moderna e intemporal, anos-luz à frente do seu tempo. No que à prosa diz respeito, Irene escreve três livros que podemos considerar diários, e um outro ainda que, afastando-se do registo diarístico, se aproxima do relato autobiográfico, fazendo uma espécie de narrativa que começa na família, passa com intensidade pela infância e termina no tempo, mais ou menos, em que o texto está a ser escrito. Chama-se este livro 'Começa Uma Vida', e foi editado pela primeira vez em 1940, ou seja, um ano depois da primeira edição do emblemático 'Solidão'. 'Solidão: Notas do Punho de Uma Mulher', além das datações, aproxima-se assumidamente da escrita do diário, na sua tendência para o fragmentário e para a atenção minuciosa dada a pormenores do quotidano, que ajudam um 'eu' feminino (Importa apontá-lo quando o livro é assinado com o pseudónimo de João Falco.) que se encontra frequentemente numa tremenda solidão. Continuação deste registo e, até certo ponto, continuação deste livro, é 'Solidão II', de 1966, publicado, portanto, postumamente. 'Apontamentos', de 1943, constitui também uma espécie de diário, este especificamente orientado para a observação de aspectos do quotidiano principalmente citadino, contendo ainda preciosos apontamentos sobre a relação do 'eu' com o mundo e com o tempo, elemento essencial para a estruturação de um diário.
Luísa Dacosta, a par de uma obra onde o autobiográfico tem presença tutelar, publicou dois diários, 'Na Água do Tempo' (1990) e 'Um Olhar Naufragado' (2008) e são bons exemplos do que de melhor um diário pode oferecer. Além de apontamentos pessoais que não tocam um confessionalismo de mau-gosto, estes dois diários oferecem-nos textos que podem perfeitamente ser contos ou até poemas em prosa que, por várias razões, não tenham integrado os restantes livros da autora. Mais ainda, todas as preocupações da obra de Luísa têm grande presença nos diários, e estes textos vêm aumentar as dimensões literária, humana e sociológica que encontramos nos seus livros de contos e crónicas e no seu romance 'O Planeta Desconhecido e Romance da que fui Antes de Mim' (2002). O gosto pela observação minuciosa que se constrói dentro da tendência pelo fragmentário fica no diário mais do que clarificado e o conjunto desses dois livros está longe de ocupar um lugar secundário na bibliografia de Luísa Dacosta.
O caso de Maria Ondina Braga tem contornos diferentes. Maria Ondina nunca publicou um diário propriamente dito. No entanto, vários dos seus livros -penso em 'A Personagem' (1978) ou 'A Casa Suspensa' (1981)- ficcionam a escrita de um diário, ficando nessa ficção de certa forma esfumados os limites do autobiográfico. Ou seja, projectando-se numa personagem que escreve um diário, Maria Ondina escreve subliminarmente o seu próprio diário. Da sua bibliografia, destaca-se 'Estátua de Sal' (1969), um dos livros mais importantes de Maria Ondina, reeditado duas vezes (O que é interessante no caso de uma autora cuja maioria dos livros nunca conheceu reedição.) que se apresenta como uma 'autobiografia romanceada'. Esta designação, de certa forma, faz com que este livro ocupe um lugar especial entre os livros da autora bracarense. Não sendo necessariamente um diário, 'Estátua de Sal' cumpre muitos dos aspectos que um diário por norma cumpre. Ele centra-se na vida da autora enquanto plano narrativo, mas não abdica, em nome disso, de uma atenção dada ao lado literário, à inserção do texto final no conjunto de uma obra. Talvez mais do que qualquer outro livro de Maria Ondina, 'Estátua de Sal' dá-nos a dimensão do seu mundo interior, da sua solidão e dos assuntos que pautarão a sua obra desde 'Eu Vim Para Ver a Terra' (1965) e até dos dois livrinhos de poesia publicados na juventude, 'O Meu Sentir' (1949) e 'Almas e Rimas' (1952).
Bastante diferente é o caso de José Saramago, cuja escrita sempre recusou, de vários pontos de vista, o autobiográfico. Com o primeiro romance publicado em 1947, 'Terra do Pecado', e com um ritmo de publicação que só se torna frequente a partir de 1966, com 'Os Poemas Possíveis', a edição dos 'Cadernos de Lanzarote' começa apenas em 1994 e estende-se por cinco volumes.  A perspectiva de escrita é a de que, nas palavras do próprio Saramago, um diário não passa de um modo incipiente de fazer ficção. De facto, a descrição de aspectos do quotidiano roça, nestes livros, a malha ficcional na forma como está feita; mas, quanto à parte do incipiente, permitam-nos discordar. De facto, estes 'Cadernos de Lanzarote' em muito nos dão a ver o pensamento literário e político de José Saramago, e muito do que neles é abordado de uma forma algo meditativa, está presente em vários dos romances, o que nos confirma estes diários como, eventualmente, uma maneira de, mais directamente, nos aproximarmos das motivações do autor.
O caso de Maria Gabriela Llansol apresenta-se-nos, como sempre, desafiante. Ao contrário do que acontece com José Saramago ou Luísa Dacosta (Ou outros casos aqui não referidos, como os de Vergílio Ferreira ou José Régio.), foi bastante cedo que Llansol preparou uma edição de um diário. Em 1985, data em que é editado 'Um Falcão no Punho', a escritora contava com dois livros praticamente invisíveis ('Os Pregos na Erva', 1962, e 'Depois de Os Pregos na Erva', 1973.), com a trilogia da 'Geografia de Rebeldes', e com 'Causa Amante' (1984), que seria o primeiro volume da trilogia 'O Litoral do Mundo'. À data da primeira edição do primeiro diário de Llansol, ela não era ainda uma escritora com um longo percurso. Por isso, o facto de editar um diário não deixa de constituir uma certa surpresa. Isto, até percebermos o que é, para Llansol, um diário. Nada tem a ver com a descrição do quotidiano e, por vezes, parece nem sequer ter a ver com uma representação auto-biográfica. Para entender o contexto deste diário, bem como do segundo volume, 'Finita' (1987), é preciso compreender que, em muito, os textos diarísticos não se distinguem daqueles que integram os romances, e que, quando deles divergem, se deslocam no sentido do pensamento sobre a escrita. A dissolução dos limites entre géneros de escrita pode muito bem explicar alguns aspectos da estranha natureza da escrita de Llansol, e os diários ajudam a compreender as regras, que constantemente se alteram, dessa dissolução. 'Inquérito às Quatro Confidências' (1996) ocupa, de certa forma, um lugar àparte nos diários de Llansol, uma vez que é escrito para Vergílio Ferreira, no sentido de estabelecer com ele uma espécie de diálogo, sem, no entanto se afastar da natureza reflexiva dos dois diários anteriormente publicados. Até à publicação do último romance de Maria Gabriela, 'Os Cantores de Leitura' (2007), não temos mais diários. Nos últimos meses de vida, no entanto, a escritora parece ter decidido regressar ao diário. A edição da série dos cadernos de escrita, com o título genérico de 'Livros de Horas', vai já no segundo volume, e, de certa forma, vem dar continuação àquilo que os três diários editados em vida nos mostravam: não só o pensamento constante que sempre desagua no pensamento sobre a escrita, como também a obsessão de Maria Gabriela com a vida, uma vez que o texto se torna o lugar onde tudo está num estado vivo e actuante, desde as pessoas fisicamente vivas ou mortas, às plantas, aos animais, aos objectos.
Apesar da sua actividade literária ter começado bastante antes, o polémico Luiz Pacheco só se apresenta a título individual em 1958, com a 'Carta Sincera a José Gomes Ferreira com Uma Nota do Autor por Causa da Província'. Pacheco sempre escreveu textos curtos que podem, na melhor das hipóteses, ser considerados contos. Estas curtos textos raramente se inclinam para a ficção, tendendo todos eles para uma carga, no mínimo, auto-representativa. Textos como a 'Comunidade' (1964) são exemplo de como a escrita de Pacheco reflecte uma realidade bastante concreta e que, sabemos, era a da sua atribulada vida. Em 2005 é editado o 'Diário Remendado 1971-1975', um diário propriamente dito, que acompanha Pacheco nas suas meditações sobre o desejo de ser escritor profissionalmente, e nas dificuldades que isso causa, a vários níveis. Como sempre, a escrita de Luiz Pacheco surge-nos despudorada e directa, perfeitamente adequada para o texto diarístico, a que não falta uma profundidade que os desvia da vulgaridade.
São alguns casos de diários em prosa publicados em Portugal, onde o diário é um género literário quase inexistente e ao qual não se dedicam estudos em número suficiente para deles se entender a verdadeira dimensão.
Isto afecta ainda as traduções, sendo muito raro encontrarmos em português diários traduzidos. A título de exemplo, cito 'Odeio-me e Quero Morrer', a recolha de fragmentos autobiográficos de Kurt Cobain e 'Antologia de Páginas Íntimas', que selecciona páginas do 'Diário', das 'Meditações' e da 'Carta ao Pai' de Franz Kafka.

sábado, 22 de outubro de 2011

Maria Gabriela Llansol: Um Arco Singular, Livro de Horas II

SINGULARIDADES DE UMA RAPARIGA A ESCREVER


Maria Gabriela Llansol não é uma autora de fácil leitura. Seria interessante quantificar o trabalho crítico já desenvolvido sobre os seus livros (1). Não me presto a este trabalho, mas as críticas e ensaios com que ocasionalmente me tenho cruzado, mostram que as leituras possíveis de Llansol são tantas quantos leitores houver, ou até mais, porque o mesmo leitor não consegue ter apenas uma leitura desta obra. Acontece assim com toda a grande literatura, mas a natureza do texto Llansoliano é particularmente incitante a esta situação.
Falecida a autora em 2008, livros inéditos continuam e, esperemos, continuarão, a ser publicados. É importante que assim seja, pois cada novo livro é mais uma porta para um universo que pode ser fechado, mas não é blindado, e nele podemos penetrar através da leitura.
O projecto da série de Livros de Horas foi o último da autora, sendo o primeiro destes, 'Uma Data em Cada Mão' (2009), o livro pensado por Llansol para suceder a 'Os Cantores de Leitura' (2007).

O presente 'Um Arco Singular: Livro de Horas II' é pois o segundo volume desta série, cobrindo os anos de 1977 e 1978, passados em Jodoigne.
É com bastante pertinência que João Barrento e Maria Etelvina Santos assinalam na introdução algumas distinções entre os dois Livros de Horas até agora publicados. Por um lado predominam registos tendencialmente mais pessoais (por vezes mesmo íntimos) do que no primeiro volume. (...) Por outro lado, põe-se mais à vista  a oficina de Llansol, sobretudo no que se refere ao trabalho de entrosamento da experiência com a narração e a escrita (pags 14,15).
Dois livros se encontram aqui em formação: 'A Restante Vida' (1982) e 'Na Casa de Julho e Agosto' (1984), segundo e terceiro volumes da trilogia Geografia de Rebeldes.
'Um Arco Singular' será, e aqui retorno à ideia da abertura do mundo fechado, uma excelente leitura a fazer paralelamente à destes livros, em particular de 'Na Casa de Julho e Agosto'. Aqui encontramos diversos registos das pesquisas de Llansol sobre as beguinas e a alquimia -dois universos que em muito definem o livro de 1984 -e também a aproximação, que se dá a nível de uma intimidade reflexiva, às personagens que integram os livros -caso de Luís M., das Damas do Amor Completo e de Hadewijch. A informação que temos aqui sobre estes assuntos menos comuns, pelo menos na cultura portuguesa, e as aproximações de Llansol às suas figuras podem, portante, ser boas formas de acedermos à génese dos livros que a escritora desenvolvia à data, e também uma forma de perceber a sua origem -o momento em que estas figuras e estes universos chegam à escrita de Maria Gabriela Llansol (2).
Os processos são complexos e por vezes demorados, mas -por isso mesmo -extremamente fiéis ao que terá sido a dinâmica de escrita dos livros. Tão fiéis que, não raras vezes, a fulgurância destes escritos diarísticos é capaz de nos surpreender, de nos comover.
É aqui que entra outra característica que me parece crucial nestes Livros de Horas e que é o seu valor enquanto texto isolado. Ou seja, se bem que a leitura de 'Um Arco Singular' seja um bom paralelo aos dois livros cuja escrita acompanha, é importante que não se pense que a leitura do diário é mero complemento. Pelo contrário, estes textos demonstram-se auto-suficientes e, na maior parte das vezes, acabados. Ainda que a escrita llansoliana tenha sido sempre pródiga em assumir o fragmentário e dele aproveitar as melhores potencialidades, muitos destes textos são realmente textos acabados, dispensando qualquer outro apoio para a leitura.
Voltando ao adequado apontamento dos introdutores, 'Um Arco Singular' também dá uma visão da vida pessoal de Maria Gabriela Llansol. São raros os textos realmente íntimos, mas muito menos raros são os textos que nos dão uma perspectiva do quotidiano da escritora. Não se trata de textos confessionais, mas, na maioria dos casos, de textos bastante analíticos sobre as condição em que, à data, viviam Llansol e o marido, Augusto Joaquim. Dentro deste tema encontramos as dificuldades económicas, os crescentes problemas na Quinta de Jacob, as pesquisas de Llansol sobre a sua família, e ainda alguns trabalhos, como cozer o pão ou costurar. E se em 'Uma Data em Cada Mão' a situação editorial de Llansol não lhe merecia grandes comentários, 'Um Arco Singular' contraria essa tendência. Recorde-se que o diário anterior inicia em 1972, um ano antes da edição de 'Depois de Os Pregos na Erva', e a ausência de anotações sobre ela pode causar alguma estranheza (Além de Llansol ter assegurado os custos da edição na Afrontamento, representa também o encontrar de um editor após onze anos sem publicar.), talvez isso se possa explicar pelo facto de Llansol não ter dado particular importância a esse livro -dos três textos que o compõem, apenas um foi reeditado.
Neste segundo livro, encontramos já em fase de edição 'O Livro das Comunidades' (1977), e com a edição, não só análises da situação editorial como até cartas ao editor, a antologiadores, a amigos, família e críticos; e ainda algumas notas sobre reacções ao livro, particularmente a primeira de duas críticas de João Gaspar Simões.

Um outro assunto recorrente neste Livro de Horas é o das leituras de Llansol. Talvez este assunto possa ser um meio-termo entre a escrita e o quotidiano da autora. Porque se a leitura preenche uma considerável parte do dia-a-dia de que o livro dá conta, a leitura muitas vezes é fonte de reflexão -que pode ou não ter parte nos romances em formação  -e também recolha de informação necessária para a escrita. Assim encontramos autores que não têm uma relação especial com os livros que Llansol escrevia, caso de Katherine Mansfield ou Virginia Woolf; e também outros que são procurados pela informação que fornecem, caso de Henri Corbin, Regine Pernoud, Julius Evola, entre muitos outros.
A escrita deste diário é também em parte paralela a 'Finita' (1987), segundo diário publicado em vida pela autora, que cobre os anos de 1974 a 1977. Uma comparação nem muito profunda entre os dois livros, partindo do princípio que 'Finita' é um conjunto seleccionado por Llansol de cadernos como os que dão origem à nova série, pode elucidar-nos sobre as diferenças entre os três diários editados em vida e estes, que se prendem essencialmente com a questão do texto acabado. De certa forma, 'Finita' tem também uma certa presença em 'Um Arco Singular'.
Acima de tudo, este livro dá-nos a observar uma mulher que luta pela sua escrita -por descobri-la, por formulá-la, por solidificá-la. E daí nos fica também a consciência de que foi essa a ocupação e a preocupação de Maria Gabriela Llansol. O título deste volume, seleccionado pelos organizadores, é sugerido a Llansol pela leitura de Rilke. Porém, a mim fez-me pensar na famosa Arte Poética II de Sophia de Mello Breyner Andresen: O verso é denso, tenso como um arco, exactamente dito, porque os dias foram densos, tensos como arcos, exactamente vividos (3). O mesmo podemos dizer do texto de Maria Gabriela Llansol.


NOTAS:
(1) O presente texto tem data de 8 de Outubro de 2010. Nas Terceiras Jornadas Llansolianas, em Sintra, a 24 e 25 de Setembro de 2011, foi editado um 'Caderno de Leituras' (ed. Mariposa Azual) que recolhe alguns textos críticos publicados sobre a autora, particularmente nos livros em que está presente a temática da Europa.
(2) Também nas Terceiras Jornadas Llansolianas foi lançado o livro/álbum 'Europa em Sobreimpressão: Llansol e as Dobras da História' (ed. Assírio e Alvim) em que esta questão, entre outras, tem lugar.
(3) Poema publicado pela primeira vez na revista Távola Redonda em Janeiro de 1963; e depois coligido no livro 'Geografia' (ed. Moraes), de 1967.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Maria Gabriela Llansol: Um Beijo Dado Mais Tarde

O LIVRO DOS PODERES DA CASA

No primeiro Livro de Horas publicado de Maria Gabriela Llansol, 'Uma Data em Cada Mão' (2009), lemos que, originalmente, a escritora tinha pensado como título 'O Livro dos Poderes do Livro' para o livro que acabou por chamar-se 'A Restante Vida' (1982).

Aquele título ocorreu-me ao terminar, pela segunda vez, 'Um Beijo Dado Mais Tarde' (1990), que poderia muito bem ser uma espécie de livro sobre os poderes da Casa. Entre 1977 e 1988, Maria Gabriela publicou seis livros essenciais da sua bibliografia, que compõem duas trilogias ligadas entre si: 'Geografia de Rebeldes' ('O Livro das Comunidades', 1977, 'A Restante Vida', 1982 e 'Na Casa de Julho e Agosto', 1984.) e 'O Litoral do Mundo' ('Causa Amante', 1984, 'Contos do Mal Errante', 1986 e 'Da Sebe ao Ser', 1988.). No entanto, se eu tivesse que relacionar 'Um Beijo Dado Mais Tarde' com livros anteriores de Maria Gabriela Llansol, talvez eu o relacionasse mais com os dois diários publicados até aí, 'Um Falcão no Punho' (1985) e 'Finita' (1987): talvez porque, neste romance, mais do que em qualquer outro dos até aí editados, sentimos muito profundamente uma presença da própria Maria Gabriela, que, desta vez, escreve sobre alguns episódios da sua infância, relacionados acima de tudo com a família. Pode parecer demasiado simplista ver assim este livro, no entanto, talvez estejamos na altura de não olhar mais a obra de Llansol como encriptada, e de começarmos a compreender a simplicidade que está depois da compreensão das regras e desvios da sua escrita.
O tema da família de Llansol não surge aqui pela primeira vez. Vale a pena recordar 'E Que Não Escrevia', um dos 'livros' que formava o segundo volume publicado da autora, em 1972, 'Depois de Os Pregos na Erva'. Em 'E Que Não Escrevia', encontramos já aquelas que serão as figuras matriciais para ler 'Um Beijo Dado Mais Tarde': a criança, que será uma projecção de Maria Gabriela, a criada Maria Adélia, o pai e a filha que o pai terá tido com essa criada, e que não chegou a nascer, que, no livro de 1972, se chama 'a irmã uterina'. Não sei se será muito adequado dizer que este livro é uma reescrita do de 1972, mas, sendo que a história é, de alguma forma, partilhada pelos dois, será impossível não notar que os quase vinte anos que separam estes dois textos são relevantes para aquilo que é 'Um Beijo Dado Mais Tarde', no que toca a uma outra fluidez do discurso escrito e a uma maior riqueza de imaginário que também se faz sentir: por assim dizer, 'Um Beijo Dado Mais Tarde' tem mais elementos do que 'E Que Não Escrevia' e, no entanto, é escrito com maior clareza e maior simplicidade.
Este livro começa com uma imagem deveras violenta e grotesca. Uma cabra é presa a um castanheiro e, de seguida, o homem vem e corta-lhe a língua:

mais nenhum ruído atravessou o nosso sossego, mas uma segunda língua, com parte no céu-da-boca, principiou a nascer-lhe,      e ela foi a voz.
(p.7)

A violência do corte da língua física é seguida do nascimento de uma segunda língua que, aqui, é também linguagem. Deste momento, surgem duas figuras tutelares para a restante obra de Llansol, Aossê (Que é Fernando Pessoa.) e a rapariga que temia a impostura da língua, Témia. 
A imagem inicial da morte e renascimento da língua é continuado durante a morte de Assafora, tia da narradora, cujo aproximar da morte a leva de volta para a casa da infância, na Rua Domingos Sequeira, em Lisboa. E assim, depois da morte de Assafora, a casa tem sobre a narradora, enquanto eu central, o poder de lhe devolver o tempo passado e, mais importante ainda, o tempo antes dela nascer. A casa vai sendo esvaziada dos seus móveis e dos seus objectos, alguns que a narradora leva para a sua casa actual, outros que vende em dois lugares distintos, e é no espaço que ali fica que a narradora descobre a sua própria história. Podemos relembrar Gaston Bachelard, que, no seu 'A Poética do Espaço' nos fala do espaço da casa como centros do devaneio que são meios de comunicação entre os homens do sonho. Mais ou menos assim poderíamos ver a casa da Rua Domingos Sequeira. Ela é o meio de comunicação entre o eu que nos conta a história e as figuras que orientarão, de certa forma, essa história. Há várias figuras presentes: Aossê, Johann (Bach), Infausta, Anna Magdalena e também a Jovem Vestindo o Seu Jardim (Que aqui surge pela primeira vez.), entre outras. No entanto, as figuras essenciais para esta história são mesmo Témia e Ana ensiando a ler a Myriam, a Estátua da Leitura.
Isto porque as relações essenciais entre a narradora e as dois elementos do seu passado, Maria Adélia e o pai, são expressas através do ensinar a ler, do aprender da língua, que se desenrola ao mesmo tempo que o medo da impostura dessa língua. E estes dois planos são também uma ponte para o nascimento da própria escrita, que, por si só, parece representar uma voz diferente, quase como uma segunda língua de características específicas

_Com voz mais baixa do que ler.
_Com a voz de escrever.
(p.59)

Assim, a aprendizagem dessas vozes, de ler e de escrever, é o nascimento de um mundo, que se deseja, mas que, ao mesmo tempo se teme. Os objectos da casa, de alguma forma, acabam por responder à questão da escrita, ora aderindo a ela ou ora parecendo alinhar-se com o medo dela

um grande carneiro deitado, que eu julgava paralítico (...) move-se para ler
(p.25)

Palonsa Gazela (...) Ela era, finalmente, o corredor que, no meu quarto quieto, desorientava, nas suas voltas, o meu coração e o meu texto
(p.102)

Enquanto Ana ensina a ler a Myriam, a narradora vai escrevendo a sua casa, e o texto escrito é onde a casa se torna um espaço de confluência de tempos e de episódios, reunindo assim os homens do sonho de que Bachelard falava. A figura do pai, como Quimera ou Filipe, é uma espécie de figura que da sombra irradiasse, trazendo consigo toda a sorte de fantasmas já que, no fundo, todo este livro é construído precisamente em torno desses fantasmas, o que nos leva, de certa forma, de volta ao violento início deste livro.

__________ o homem só vulto esteve aqui hoje, com a sua imagem infeliz. (...) Quando o olho, no íntimo de mim mesma, e no seu lugar objectivo, não tenho pensamento. Ele traz às costas um saco onde vai deitando todos os restos de misericórdia que há por aqui, incluindo a misericórdia por nós que brota de uma  fonte algures, ignore onde. (...) Há-de voltar esta noite, enquanto eu dormir, para entrar no meu sonho. Transporta também o que for intimamente nosso, e que lhe tivermos entregue, por bem.
(pp 97,98)

À medida que a história vai sendo escrita, percebemos que a relação essencial dela, e que, na verdade, se transpõe pela imagem da Estátua da Leitura, é aquela entre a criança e a criada, em que o amor da segunda pela primeira, espécie de compensação pelo bastardo perdido que é projectado na criança legítima, é compensado pela primeira através do ensinar a ler. E a leitura toma o lugar do amor, ou torna-se um veículo deste. 
Quase no final do livro, Ana parte da Estátua da Leitura, e esta torna-se vazia. O tempo de abandonar de vez a casa que testemunha toda a história aproxima-se e, deslocando-se nos vários tempos que estão a ser escritos, a narradora recolhe os últimos objectos que quererá guardar para si, e este momento parece trazer de volta a descoberta da figura do homem como iniciador do Universo, mas também como origem da perturbação, uma vez mais questões que são explicadas através da imagem da casa

Sob o olhar masculino, girava uma casa dentro de outra -um princípio do Universo onde estava em vias de expandir-se o verde inicial. Ele só podia ser teu companheiro filosófico e meu amante.
Nesta atmosfera verde, de possibilidades de outras cores infinitas,
descubro o afecto do negro.
(p.107)

e, mais à frente, esse afecto do negro que pode ser símbolo de uma espécie de sofrimento, parece ser especificado por um dos últimos símbolos da história da casa, o lenço da noite:

Apanho lenço contemplando o sangue e as lágrimas que se esboçam nas dobras e secam sob o calor da noite,     que a noite exala. Sob o lenço da noite, sei que me oriento para o círculo do beijo que a jovem deposita na testa de meu pai___________ um Rei qualquer de papel.
_______________ e sofro, com receio de que o vento sopre, e leve o lenço onde eu me destino a ser semente de um outro Eu que ninguém delimita ou guarda.
(p.111)

como vemos, desafiando a percepção do tempo, a história termina quando o Eu está para nascer naquela casa.

Quase no final do livro, encontramos ainda um surpreendente texto, que surge de uma forma muito orgânica a todas as questões do livro, e que se prende com a própria escrita.
Grande parte dos poetas escrevem, a certa altura, a sua "arte poética", que é a sua explicação de como escrevem, de como fazem a sua poesia. Os prosadores também o fazem, senão nos próprios livros, muitas vezes em entrevista.
Este texto será uma das mais belas, mais complexas e mais completas explicações de como nasce e se transforma o texto de Maria Gabriela Llansol, em que as regras são constantemente redefinidas, tornando-se esse desvio uma nova regra:


Cada vez está mais vento, com mutações de Sol excessivas para os meus olhos que agora, com o ar, o sol e a cor, se fatigam. Eu explico. Trabalho muito com eles, fixando intensamente um ponto-paisagem antes de começar a escrever; depois, o decurso do texto depende do que essa concentração, num lugar vazio, permite. O olhar atento vai voltando a si mesmo e, então, o queeu consigo ouvir são as ondulações vibratórias entre esses dois pontos. Os meus olhos recebem, num ponto-voraz, as linhas que sustentam o espaço, feixes incidentes paralelos, raios que se afastam progressivamente, termos geométricos.
Lá onde estás, deve ser assim.
Nunca olhes o bordos de um texto. Tens que começar numa palavra. Numa palavra qualquer se conta. Mas, no ponto-voraz, surgem fugazes as imagens. Também lhes chamo figuras. Não ligues excessivamente ao sentido. A maior parte das vezes, é impostura da língua. Vou, finalmente, soletrar-te as imagens deste texto, antes que meus olhos se fatiguem. O milionésimo sentido da voz, "tiro o lápis da mão", o gesto de partir a luz, o pensamento de uma criança, cópias da noite, passeio nocturno, "era um dia verde", o afecto do negro, sob o lenço da noite. O indizível é feito de mim mesma, Gabi, agarrada ao silêncio que elas representam.
(pp. 112,113)

Algumas figuras de 'Um Beijo Dado Mais Tarde' (1990) de Maria Gabriela Llansol


'Jovem Vestindo o Seu Jardim'


'Témia'


'A Estátua de Leitura' (Ana ensinando a ler a Myriam)

sábado, 3 de setembro de 2011