domingo, 12 de fevereiro de 2012

Textos de Maria Gabriela Llansol, escritos na Bélgica


Jodoigne, 17 de Maio de 1975

Nunca falei directamente sobre a nova casa em que vivo, no fundo de um pátio para carruagens e cavalos; num jardim difícil, numa porta grande de ferro, com ornatos, e fachada. Esta é Jodoigne. Hoje, se vier alguém do exterior, pode ser recebido como um estranho.
Pensamentos contíguos/ não suporto a palavra História e, no entanto, há centros de irradiação, tramas sólidas de geografias espirituais, lugares de recorrência, humanos duradouros e perduráveis; tudo o que entrar aqui será imperceptivelmente belo, ou tornar-se-á belo.

Finita - Diário 2

25 de Janeiro de 1976, domingo

Neva. Bebo um café e como um «babá» na pastelaria feminina de Jodoigne. O convívio, a vida de grupo, continua a parecer-me um problema insolúvel, mas deixei de ouvir a frase que o exprimia, quando me levantei esta manhã. Aos homens escapam muito mais coisas do que aos animais e às plantas________
Não gosto de ver nevar quando estou sozinha. Ouço uma música adequada à neve. Como já disse, a pastelaria é feminina.
A Quinta, o pão, absorve todo o tempo. São sempre os mais pobres que trabalham, que trabalham no tempo até o abolirem.
As crianças imaginam que a vida dos adultos, quando estão com elas, é sempre um prazer.
Limpar a casa, ver o chão brilhar e espelhar o que imagino, e é real, fazer almofadas trabalhando o tecido para o repouso, acender a luz quando faz noite, e olhar e olhar-me sob outra perspectiva, são já belos motivos para viver.
Mas nada escapa a esta tristeza doce que é também provocada pela minha existência limitada do tempo.
Volto para casa, fazer croquetes. Mas antes leio uma frase de Histoire de l'idée de nature:
*«Mas a natureza não é assunto de um só sábio.»*

Uma Data em Cada Mão- Livro de Horas I

18 de Agosto de 1977, quinta

Há três dias que chove sobre Antuérpia como se chovesse sobre o mundo; a chuva tornou-se inimiga,
e no meu saber e espírito a frota de Lisboa ocupa o porto, com mil cheiros marítimos; num momento de meus [dias], quando era criança, por ali passei e lembro-me de que meu pai me levava pela mão, ao longo de um grande cais que estremecia de movimento; o rio não era o Escalda, chamava-se Tejo, e o mar cercava-o, o cerco de Lisboa
e foi nesse momento que eu decidi ser béguine e voltar ao meu país.
Depois veio a inundação. Por volta do meio-dia ouço mais um rumor de água na cave.



21 de Agosto de 1977, domingo

Volto às béguines, e à projectada nova viagem a Anvers, por Anvers, e para colher apontamentos e comprar a brochura sobre a casa de Plantin-Moretus.

Já de manhã estava a estudar a forma rectangular da página branca, sobreposta à forma rectangular densa do texto, que pode ser fragmentado ou não em colunas e glosas.

*Acontece ainda que o livro medieval corresponde muitas vezes a um único tipo de utilização, a uma leitura sequencial*; apareceu a página com o título, rara e puramente decorativa, nos manuscritos.

Barroco:
*A ideia de que o livro é um espaço fechado, ao mesmo tempo morada e monumento cujo limiar deve ser engrandecido por formas figuradas, já está presente no livro manuscrito.

A alegoria_ escolha de objectos que servem para representar uma coisa diferente daquilo que são. A alegoria significa o conteúdo do volume. 


Um Arco Singular- Livro de Horas II


Herbais, 23 de Janeiro de 1981

Herbais:    a ilha para onde nos dirigimos tinha sido riscada do mapa; a não ser que o lugar onde nos encontrávamos, desprendendo-se dos prados firmes, nos levasse para ela.

Os dias já não são o que eram; nunca havíamos suposto que seria necessário recorrer à escrita:

                                                «si l'on pousse assez loin dans la 
                                                language, on se trouve pris dans 
                                                l'etreinte de la pensée.»

a perda do mar pela areia é inevitável; da vela que arde à folha que respira, o seu rosto permanecia sempre latente; e qualquer objecto estava sempre a ser rodeado por ela.

Um Falcão no Punho- Diário 1

fotografias de Jodoigne, Antuérpia (Estação Central) e Herbais

1 comentário:

Pedro Magalhães disse...

Simplesmente genial, como é tão próprio da escrita de Llansol.