sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Agustina Bessa-Luís: Contos Impopulares

ENTRE O SER E O HUMANO: UMA CONSTRUÇÃO

Acontece muitas vezes que, depois de conhecermos a produção mais recente e maturada de um autor, nos surpreendamos com a produção mais inicial, que não raras vezes nos parece, nem que só por comparação, ainda um universo em construção, mais do que um universo desenvolvido densamente.


Não é esse o caso de Agustina Bessa-Luís. Estes 'Contos Impopulares' surgem entre 1951 e 1953 (É em 53 que são coligidos em volume.), ou seja, depois de publicadas as novelas 'Mundo Fechado' (1948) e 'Os Super-Homens' (1950), e um ano antes da publicação do romance que iria chamar a atenção sobre Agustina, 'A Sibila', de 1954.
De facto, se avaliarmos a publicação de Agustina, até ao último romance, 'A Ronda da Noite' de 2006, vemos que o seu registo essencial foi o romance, sendo raras as excepções para contos, crónicas, livros de memórias, teatro e biografias. É por isso ainda mais interessante ler estes contos, que, podemos perceber ao terminar o livro, mesmo sendo contos, muito têm a dizer sobre a estrutura da escrita de Agustina.
Em relação a este livro, conviria talvez analisarmos o seu título. 'Contos Impopulares' denuncia-nos, em primeiro lugar, o género literário do texto, ou textos, neste caso; e também uma posição, posição essa que se marca pela oposição a determinada tradição, que se pode pressupor ligada aos arquétipos  de determinado tipo de histórias. Os contos populares serão, à partida, histórias de um universo oralizado, ligado a determinadas morais, sendo por norma percursos dotados de alguma impessoalidade, uma vez que nessas narrativas o personagem é meramente um nome dado a alguém que faz um percurso que termina com o atingir de um status quo, um estado que é dado por definitivo e que dispensa sequer a imaginação do que se passa depois do desenlace. Será, penso, precisamente no contrário destas características que Agustina inscreve os seus 'Contos Impopulares', sendo que através deste título a autora não deixa de manifestar uma relação, neste caso pela oposição, aos contos populares.
Como dizia no início deste texto, o caso de Agustina não é um em que encontremos um universo ainda em construção nesta obra tão inicial. Sabemos que Agustina nos fala de pessoas, acima de tudo, e nos fala de ideias, através das pessoas. O caso dos 'Contos Impopulares' só é diferente dos romances de um certo ponto de vista muito imediato. Isto porque o que acontece é que o conjunto destes contos parece formar uma ideia bastante concisa e bastante direccionada, e que se prende com o percurso que vai entre o ser e o humano. Pode este livro não ser o percurso de um personagem, mas é certamente o percurso de uma ideia.
O conto de abre esta colectânea, O Búzio, é escrito com um certo piscar de olho a Kafka (Como, aliás, é referido na badana.), em que um personagem vive ouvindo dentro de casa o som de um piano, resgatado da infância, dentro da sua casa, como se habitasse um búzio em que um som longínquo se faz de novo ouvir. No fundo, a ideia essencial é a de um homem encerrado em si mesmo, através de uma memória quase traumática.
Aliás, destes 14 contos, é-nos possível quatro que são como pontos de viragem dentro dessa narrativa de uma ideia, no sentido em que é nesses quatro que é sintetizado todo um segmento do percurso, de modo a que se possa passar ao segmento seguinte. O primeiro é precisamente esse O Búzio, em que encontramos o Homem, Homem que, mesmo desdobrando-se em vários homens e mulheres, é o personagem essencial desta ideia, encerrado em si mesmo, encurralado dentro do búzio que é ele, e não o lugar onde realmente vive.
O quinto conto, A Pousada, parece-me ser a segunda viragem. Ajudado por uma mulher, um homem, feirante, procura uma pousada onde passar a noite, durante a estadia para trabalho numa localidade. É remetido de uma pousada a outra, sem nunca conseguir encontrar um lugar para ficar. Assim, esse Homem que, no primeiro conto, vive encerrado dentro de si mesmo e dos seus fantasmas, não consegue encontrar um lugar, o seu lugar.
O terceiro momento de viragem seria, a partir daqui, o oitavo conto, Espaço Para Sonhar. Este conto, pela sua extensão, resvala talvez um pouco para o registo de uma novela curta. Neste conto, que nos fala de Gil, um rapaz de descendência pouco clara no seio de uma burguesia decadente, encontramos precisamente a premissa para o novo segmento que neste ponto de livro se inaugura:

A simplicidade é um aspecto superficial do complexo, ou então a síntese duma estrutura difícil. A simplicidade adquire-se com a maturação do espírito; a sobriedade e a concisão obtêm-se por sistema de eliminação e são obra de uma intensa experiência. Mas aqueles cuja alma resta como um germe que não evoluiu, esses nunca serão simples.
(p.51)

ou seja, é nesta dualidade, entre os simples e os que não são simples, que estamos inscritos ao ler estes textos. Nele, Gil é forçado a descobrir que o armário dentro do qual dormia enquanto criança, e que era esconso e pobre, tinha, na verdade, espaço para sonhar, e que é a partir desse espaço que toda a vida se desenrola. E portanto, esse Homem que vivia encurralado em si mesmo e não encontrava o seu lugar, é forçado agora a encontrar uma nova forma de percepcionar a sua vida, e a partir dessa nova percepção, vivê-la.
O décimo primeiro conto, Fetos em Álcool, vem então apresentar-nos esta interessante teoria:

o homem não é o mais alto expoente do humano. Admirando o homem, adorando-o na sua integridade, querendo suster a sua marcha, porque o acreditamos já digno de entronização como significado supremo do humano, o que fazemos é atrofiá-lo ou consentir a sua conservação de feto, gérmen de seres normais, fruindo uma morte parcial encerrados em bocetas de álcool.
(p.125)

e aqui chegamos ao essencial da ideia destes 'Contos Impopulares', a de que é necessária uma construção para que o homem, o ser, se torne humano e, aí sim, sujeito digno da adoração devida àqueles que atingem esse mais alto expoente. É de uma construção que nos fala o conjunto destes textos, e, de certa forma, ele encaminha-se não direi para uma moral, mas certamente para uma ética. Poderemos então dizer que assim este livro se aproxima dos contos populares, contradizendo então o título? Eu continuo a achar que não. Isto porque, em primeiro lugar, essa ética, essa mensagem, atinge-se com a leitura de todos os contos; mas cada um deles prodigaliza, de certa forma, um aspecto fragmentário, dando-nos um momento de uma mensagem, mas não a sua totalidade, ficando determinadas questões em aberto, ou então retomadas de outra forma nos contos seguintes. E, por outro lado, ao contrário dos contos populares, mesmo entendendo os textos deste volume como um todo, eles não atingem um status quo e, bem pelo contrário,tudo fica em aberto a partir do fim. Isto porque de um caos vago e insciente, o Homem atinge uma espécie de conhecimento suficiente de si mesmo para se tornar uma espécie de tábua rasa: o seu destino está para começar a ser escrito, começará a partir daqui, em vez de aqui terminar.


Já por várias vezes neste blog me referi à questão dos contos e das novelas e até dos diários como sendo vistas pela generalidade do público e muitas vezes dos críticos como trabalhos menores num contexto que conhece momentos que, por serem romances, são automaticamente mais relevantes. Agustina é mais um escritor que contraria esta ideia, sendo que estes 'Contos Impopulares' ocupam perfeitamente um lugar muito importante na obra total, enquanto elemento de certa forma fundador, mas também como elemento já conseguido e já consequente.
Estilisticamente, este livro está bastante longe daquilo que são os livros mais recentes de Agustina. Nestes contos sente-se muito uma imagética mais obsessiva e detalhada, com descrições generosas e complexas; aspectos que conheceriam uma acentuada depuração nos livros posteriores.
Mas há que considerar este livro enquanto livro publicado em determinado contexto. É certo que Agustina sempre esteve distanciada de compromissos com correntes literárias ou até políticas. No entanto, Agustina não é independente de um tempo, e muito menos estes 'Contos Impopulares' estão independentes do seu tempo. Mais importante do que estes contos surgirem ao mesmo tempo, mais ou menos, que surge a literatura neo-realista, é importante o facto deste livro aparecer pouco depois do fim da II Guerra Mundial, quando parece realmente essencial para os artistas, onde se incluem os escritores, pensar o que é o Homem, o que é o Humano e quais as suas possibilidades. E é aliás esse o motor principal daquilo que seria a literatura neo-realista, e o engajamento político de muitos dos seus autores foi precisamente o que os distraiu desse propósito e, assim, os levou a deitar a perder a própria obra.
Não é o caso de Agustina. Da mesma forma que, na década de 50, há vários autores a questionar vários aspectos da situação em que a Humanidade é deixada depois das atrocidades da guerra (Impossível não pensar no caso de Ilse Losa, com o seu 'O Mundo em que Vivi' de 1948, que se apoia justamente na questão da II Guerra Mundial.), também Agustina se encaminha para pensar o que é o Homem e o que é a Humanidade. E fá-lo da maneira prodigiosa que ao seu nome ficaria sempre associado.

[As indicações de página são da 4ª edição, da Guimarães editores, 1984]

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