sábado, 30 de junho de 2007

Amy Winehouse: Back To Black

NEGROS HÁBITOS





Quando começamos a ouvir "Back To Black", enquanto Amy Winehouse nos diz "They tried to make me go to rehab, I said no, no, no", percebemos que desde os tempos de "Frank", alguma coisa mudou. O que mais sobressai é a voz. A voz que se tornou mais grossa, mais rasgada, e, claro, mais forte. A matriz também mudou. Se em "Frank" encontrávamos traços de jazz com contaminações ligeiras de R&B, em "Back To Black", encontramos a música soul, raizada nos anos sessenta setenta, com a voz a deambular entre fantásticos arranjos de sopros.
Estamos, certamente, com um dos melhores álbuns de Soul dos últimos anos, ainda assim, o segundo álbum de Amy Winehouse não é irrepreensível. Algumas canções, como "He Can Only Hold Her" ou "Some Unholy War", por boas que sejam, ficam apagadas em comparação a outras, fortíssimas, como "Yolu Know I´m No Good", "Me and Mr. Jones" ou "Tears Dry On Their Own".
Abona também a favor da cantora londrina a atitude expedita que usa para escrever as suas letras. Enquanto poderia estar a escrever letras sobre o amor, ou a falta dele, Amy Winehouse conta-nos como engana o namorado com o ex, recusa-se a ir para a rehabilitação, chora e grita e sofre, etc, etc, etc, uma desgraça boa de ouvir, porque nos põe em contacto com as piores coisas que já fizémos.
Em vez de seguir uma linha fácil, de modernidade Alicia Keys ou Ciara, Winehouse vei eber influencias á soul de há muito tempo atrás, arranjos que lembram os de Nina Simone ou Aretha Franklin. Nada contra quem o faz, mas, enfrentemos as coisas, assim soa melhor. Canções como "Me and Mr Jones" no seu tom divertido e insultuoso, "Tears Dry On Their One" ainda a lembrar "In My Bed", ou o energético "Wake Up Alone" merecem, de certeza, os rios de tinta que têm corrido sobre Amy. Só é pena que a imprensa se distraia das canções refrescantemente boas, e se concentrem nos problemas com o álcool que a cantora tem.
Felizmente, vão longe os tempos de "Fuck Me Pumps" ou "Know You Now", que, mesmo sendo boas canções, não chegavam nem perto de "You Know I´m No Good" ou "Back To Black". Nota-se que Winehouse ainda não decidiu o que quer fazer, mas uma coisa é certa: fez dois álbuns em dois registos diferentes e não se saíu mal em nenhum. Veremos o que fará a seguir, mas se optar por seguir na linha de "Back To Black" não é uma má escolha.





Veredicto Final_ 18/20

Placebo: Creamfields Lisboa 2007



Não sei como aconteceu, mas esqueci-me de comentar o concerto dos Placebo no Creamfields, o que é esquisito, principalmente quando, após ler algumas notas sobre o concerto na Internet, percebi que a minha opinião vai contra a corrente.
Eu gostei daqueles cinquenta e cinco minutos em que os Placebo estiveram em cima do palco. Não vou dizer que fiquei muito feliz por o Brian ter perdido a voz... "Coisas que acontecem" pensei eu. Como disse, não fiquei radiante, mas, primeiro que tudo, cinquenta e cinco minutos é melhor do que nenhum, depois, o Brian não teve culpa, deve ter sido muito frustrante para ele, e eu próprio estava com frio, e terceiro, a parte que tocaram tocaram muito bem.
Quanto ao concerto em si, ele passou essencialmente pelo sexto álbum, "Meds", com "Infra Red", um delicioso "Drag", o fenomenal "Because I Want You To", "One Of a Kind", e, claro, "Song To Say Goodbye", além da versão em piano do tema-título.
Claro que o concerto não aconteceria sem retornos ao passado, e eles marcaram-se, claro. Passou-se por "Bionic", do primeiro e homónimo álbum, o obrigatório "Every You and Every Me" de "Without You I´m Nothing", o fortíssimo "Special K" de "Black Market Music" e ainda "Special Needs", "Sleeping With Ghosts (Soulmates Never Die)" e, a terminar, my personal favourite, "The Bitter End", num final que, infelizmente, foi mesmo bitter.
Entretanto, passei pela net e estive a ler comentários ao concerto, muito por alto, sem grande atenção, mas, no geral, toda a gente falava como se o Brian tivesse feito de propósito para ficar sem voz, ou como se fosse uma coisa que se resolvia com um rebuçado para a tosse, o que é falso. Em apenas 55 minutos, eles conseguiram ultrapassar em qualidade a hora e três quartos do ano passado no SBSR, uma vez que um ano de digressão os habituou ás canções, que aparecem transmutadas e melhoradas.
Lamentei muito quando descobri que para os encores estavam prontos "20 Years" e "Taste In Men", mas, principalmente, por "Running Up That Hill", de Kate Bush, cuja versão dos Placebo é comovente.
Enfim, c´est la vie. Terá que ficar para a próxima.
fotografia dos Placebo de www.blitz.pt

Todd Haynes: Velvet Goldmine

VERMELHO E NEGRO






A certa altura, em "Velvet Goldmine", Jonathan Rys-Meyers, no papel de Brian Slade, diz a um jornalista
"_O rock é uma prostituta. Tem que parecer vamp e produzida."
e temos aqui a explicação das quase duas horas do filme de Todd Haynes, que estreou em Cannes em 1998.
Oscar Wilde é aqui apontado como o progenitor de todo o estilo que se viria a chamar glam rock. Jack Fairy, o primeiro personagem que encontramos, ainda criança, encontra uma joia que pertencera ao escritor gay, e, a partir dessa joia, cria todo o seu estilo, andrógino e sonhador. Como Toni Collette, perfeita no papel de Mandy Slade, explica mais tarde:
"_Todos roubavam do Jack."
Tudo começa quando em 1974, Brian Slade, o rei do glam rock, forja o seu próprio abatimento em palco. A farsa é descoberta, e a carreira e a vida de Slade começa a declinar, até não ter, aparentemente, retorno.
Dez anos depois, Arthur Struart (Christian Bale) é pago para fazer uma reportagem com o título "O Que Aconteceu a Brian Slade", porque estava presente no concerto que pôs fim ao artista.
O Arthur que encontramos é uma criatura melancólica e pouco comunicativa, chegando a ser inerte, pelo que se percebe porque associa a sua adolescência a outra pessoa qualquer.
Fala primeiro com Cecil (Michael Feast), o primeiro manager de Slade, que o descobriu quando tocava no bar da mulher, Mandy Slade (Toni Collette), e que o conduziu nos primeiros e conturbados tempos da sua carreira.
As explicações de Cecil terminam quando Jerry Divine (Eddie Izzard) descobre Slade e o transforma numa estrela.
É pela voz de Mandy quye ouvimos a vida da estrela de Brian Slade (Rhys-Meyers), dono de uma voz interessante, de um talento peculiar, de um estilo libertino, bissexual, e polémico cada vez que abre a boca.
A sua maior influencia seria o músico Curt Wild (Ewan McGregor), gay, (Aparentemente.) esquizofrénico e viciado em vários tipos de droga. É também por ele que se apaixonará, quando o conhece pessoalmente.
Com os relatos destas pessoas, Arthur acabará por descobrir mesmo o que aconteceu a Brian Slade, ainda que se perceba que essa é uma questão mais pessoal do que profissional, na medida em que a influencia de Slade e Wild na vida do jornalista foi mais do que seria de esperar.
A história, apesar de ser contada cronológicamente, parece dar várias reviravoltas, sem se tornar confusa. O filme é bom, mas é pouco claro se a crónica do glam rock se faz através da música ou através da estética.
São notórias certas referências que, ainda que coerentes, seria preferível não estarem tão expostas: Curt Wild é uma personalidade que relembra Iggy Pop, visulamente, Kurt Cobain, e o nome próprio idem aspas- Kurt, Curt... Brian Slade- Brian Molko, e até fisicamente são parecidos, ainda que Slade contenha ainda as referências da praxe a Bowie e Lou Reed.
Os actores são, ainda assim, a melhor parte do filme, sendo de Toni Collette a melhor interpretação, não desfazendo a de Christian Bale, com particular á-vontade para papéis mais melancólicos, Rhys-Meyes que surpreende por encaixar tão bem em Slade, Ewan McGregor que, aparte de todas as mudanças visuais, consegue fazer esquecer as referências que carrega em si.
E não podia deixar de realçar a participação de Brian Molko, dos Placebo, num papel curtinho, mas cómico. Muito bem.





Veredicto final_ 16/20

Tori Amos: American Doll Posse

BONECA INTELIGENTE


Tem o brilhante nome de "American Doll Posse" o novo e décimo álbum de originais de Tori Amos, que é também, senão o melhor, o melhor de todos. Seguindo a lógica de "The Beekeeper", "American Doll Posse" está dividido, neste caso, em quatro partes, representando cada uma uma mulher que é uma das facetas de Tori Amos.
São elas: Clyde, Isabel, Santa e Pip, além da própria Tori.
Clyde, baseada em Persephone, dá voz a "Bouncing Off Clouds", "Girl Dissapearing", "Rusterspoor Brige" e "Beauty Of Speed", pertencem-lhe as letras mais idealizadas e utópicas, as que procuram a lado bom das coisas e das pessoas. Quanto ás músicas, o sentido estético e a procura da harmonia são óbvias, por exemplo em "Bouncing Off Clouds".
Isabel, baseada em Artemisa, é uma fotógrafa que alega documentar aquilo que vê, e dá voz a "Yo George", "Mr Bad Man", "Devils And Gods", "Almoust Rosey" e "The Dark Side Of The Sun; ou seja, o lado mais político (Anti-Bush.) e inetrventivo do álbum. As suas músicas são patenteadas de uma sonoridade mais agressiva, mas com um certo tom irónico. A simplicidade e crueza são também características desta artista.
Santa, a partir de Afrodite, representa o lado mais sensual, e interpreta "You Can Bring Your Dog", "Secret Spell", "Body And Soul", "Porgrammable Soda" e "Dragon"; sendo-lhe entregues as composições mais ligadas ao aspecto exterior do mundo, e á sensualidade. Assim sendo, é só coeso que as suas composições sejam as mais conseguidas e complexas em termos de ritmo, onde se procura algo de corporal, mas ao mesmo tempo de sedutor, sem ser sexual.
Pip é Atenas, uma gerreira, e é dela a voz de "Teenage Hustling", "Fat Slut", "Velvet Revolution", "Smokey Joe" e ainda acompanha Santa em "Body and Soul". As suas letras são as mais demarcadas pela ideia de luta e de resistência. As composições são as mais sorumbáticas, mas ao mesmo tempo pesadas e agressivas.
Para Tori, sobram "Big Wheel", "Digital Ghost", "Father´s Son", "Code Red" e "Posse Bonus", que parecem por vezes ser uma visão de Tori sobre si mesma, mas como se se tratasse de outra pessoa. São as letras mais ligadas ao stroytelling, e as melodias mais eclécticas, por exemplo, o ritmo de "Big Wheel" marcado pelo piano, faz uma interessante exploração dos potenciais do piano.
O álbum começa a desenhar-se-nos perfeito quando tomamos consciência de que não se trata só de música, mas também de uma coerente e fenomenal mise-en-scene em que cada personagem interfere no tempo certo, com as palavras, os ritmos e as melodias certas.
Torna-se genial quando, a tudo isto, acrescentamos composições que podem muito bem ser das melhores que esta senhora já fez para piano, os arranjos minimalistas mas certeiros, a escolha do alinhamento, coerente, e todo o imaginário do álbum, suportado pela excelente direcção de arte. Um único defeito em "American Doll Posse"- é muito longo. Ainda que algumas faixas mal ultrapassem o primeiro minuto, vinte e três faixas é uma álbum muito comprido.
Depois, musicalmente, o que há são canções simples, quase solos, como "Yo George" ou o fantástico "Devils and Gods"; canções que procuram uma estética mais profunda, como o belíssimo "Bouncing Off Clouds" ou "Secret Spell"; e registos mais rock e agressivos como o contagiante "Teenage Hustle", ou o isaltado "Body And Soul".
Como é que no décimo primeiro álbum Tori conseguirá manter a fasquia de qualidade que ela mesma colocou com "American Doll Posse", não sei. Mas acredito dela. Depois disto...



Da esquerda para a direita, Santa, Clyde, Isabel, Tori e Pip



Veredicto Final_ 20/20

domingo, 24 de junho de 2007

Katia Guerreiro: Tudo Ou Nada

CANTO DA FANTASIA




Sendo uma das mais brilhantes fadistas da corrente do chamado "novo fado" iniciada em 1990 por Mísia, Katia Guerreiro começou por "Fado Maior" e, com o timbre e a força da sua voz, acabou por chamar a atenção do público, que lhe deu toda a atenção, não só em Portugal, como no estrangeiro. A "Fado Maior" sucedeu-se "Nas Mãos Do Fado", onde interpreta António Lobo Antunes e Sophia de Mello Breyner da forma que podíamos imaginar tais escritores cantarem os seus poemas que, á partida, são os seus sentimentos.
Em "Tudo Ou Nada", Katia faz uma ponte entre o universo do fado mais contemporâneo, e o fado mais antigo, um com a utilização de letras mais eruditas, outra pela utilização de poemas mais populares. Nada contra.
O álbum inicia com "Disse-te Adeus Á Partida, O Mar Acaba A Teu Lado", com poema de António Lobo Antunes. O título diz tudo. A melancolia da letra fica perfeitamente enquadrada no fado tradicional em que foi colocada, e a voz de Katia adapta-se com toda a perfeicção a essa mesma melancolia. O tema de abertura é também, provavelmente, o de maior beleza de todos os temas. No lado oposto temos "Ser Tudo Ou Nada", que é provavelmente o pior tema de todo o disco.
De parabéns está também Dulce Pontes, autora de "Dulce Caravela", outro dos momentos de ouro do terceiro álbum de Katia Guerreiro, onde esta brilha. Bernardo Sassetti surge em "Minha Senhora das Dores", outro dos momentos cruciais. No total, eles são quatro, sendo o último "Menina do Alto da Serra" de Tonicha, surpreendentemente interessante na versão da fadista açoreana.
Ainda digno de referência são "Quando", "Canto da Fantasia" e "Talvez Não Saibas", quer pelas letras, quer pelas músicas e pelas interpretações. "Saudades do Brasil Em Portugal", de Antonio Carlos Jobim, pode parecer, á primeira vista, incongruente com o restante alinhamento, mas é uma canção tão boa que essa descontextualização acaba por se perder.
A terminar "Tenho Uma Saia Rodada" é possivelmente o tema mais alegre de todo o álbum, numa tonalidade mais folclórica.
É difícil dizer se "Tudo Ou Nada" consegue ultrapassar "Nas Mãos Do Fado", mas, sem dúvida, é uma mudança de terreno, o que, só por si, já vale a audição repetida de mais este álbum.




Juízo Final_ 17/20

Woody Allen: Match Point

CRIME E CASTIGO




Woody Allen é sem sombra para dúvidas um dos cineastas mais influentes da actualidade. Goste-se ou não se goste, todos sabemos pronunciar o seu nome, e todos sabemos o que faz. Os filmes mais recentes, sem serem maus, estão longe de poder igualar obras-primas como "Toda a Gente Diz Que Te Amo" ou "Balas Sobre a Broadway". Isto, até que chegamos a "Match Point". A história começa com uma sequência em que Jonathan Rhys-Meyers surge como voz-off, e que parece, á primeira vista, ser meramente introdutória. Isso é falso. A sequência de abertura diz provavelmente mais sobre o filme do que qualquer outra.
Chris Wilton (Rhys-Meyers) é o protagonista, um simples professor de ténis, que largou as competições, e que, através de um aluno, acaba por socializar regularmente com a rica e importante família Hewitt, acabando por casar com a filha destes, e irmã do seu aluno, Tom. O aluno, interpretado por Matthew Goode, tem um namoro quase de circunstância com uma actriz jovem e bonita, mas já falhada, Nola Rice, interpretada, claro está, por Scarlett Johansson. É por Nola que, em breve, Wilton se apaixonará, enquanto, graças ao seu casamento com Chloe Hewitt, vai ascendendo na empresa da família.
O affair começa, e assim, a obsessão de Chris por Nola vai-se tornando no oposto, ou seja, a obsessão de Nola por Chris, e as consequentes exigências de um divórcio rápido. Não vale a pena continuar a revelar pormenores, até porque isso seria contar a história.
"Match Point" parece não contar, á primeira vista, com uma história inédita, mas é os contornos que Allen lhe desenha que tornam o filme numa referência obrigatória na sua filmografia.
Quanto aos actores, eles estão, claro, muito bem. Jonathan Rys-Meyers acaba por, com ou sem intenção, lembrar o seu próprio papel em "Velvet Goldmine", principalmente nas primeiras sequências em que o vemos. Consegue, de resto, uma excelente performance. Johansson, apesar de não ter uma má interpretação, não deixa de ter a seu cargo um papel previsível, que parece ter sido feito para ela, mais do que parece ter sido ela a adaptar-se a ele. Emily Mortimer é também impressionante, e foi claramente escolhida a dedo para o papel de Chloe: o seu ar frágil e suspectível vai perfeitamente de encontro á personagem que encarna.
Allen, como de costume, conduz-nos na sua história através de pormenores discretos, conduz-nos ou engana-nos, e, pelo meio, acrescenta marcas da sua própria cultura, como nos habitou desde sempre.


Uma nota muito positiva para a cena em que Nola e Chris se conhecem, na casa dos Hewitt. Apesar dos planos serem simplificados, a interacção entre Rhys-Meyers e Johansson, e o respectivo diálogo é assinalável.



Juízo Final_ 19/20

sábado, 9 de junho de 2007

Lídia Jorge: Combateremos a Sombra

SALA DE PÂNICO




A capa do nono romance de Lídia Jorge, “Combateremos a Sombra” coloca-nos defronte um homem vestido de preto, segurando um ramo de rosas vermelhas em riste para uma cidade cinzenta. Em riste como quem tenta fazer proliferar a cor no incolor, a luz na sombra. Nada mais apropriado. Logo nas primeiras páginas, somos apresentados a Osvaldo Campos, psicanalista de Lisboa, e é sobre ele que monologarão não só o próprio, como também Maria London Loureiro, psicanalisanda a que o protagonista se refere como “A Paciente Magnífica”, Ana Fausta, a secretária, e Rossiana de Jesus Inácio, que se tornará a namorada.
A genialidade de Lídia Jorge começa logo aqui: como contar uma história usando as personalidades de quatro pessoas tão heterogenias? A escritora algarvia, de 60 anos, sabe, e muito bem. Cada um interfere e é referido no momento certo, de maneira que a história se desenvolve sem o recurso a lugares-comuns e aos habituais truques para criar suspense no leitor.
E se se fala em brilhante, há que referir também a maneira como, em particular pela presença de Maria London Loureiro, o protagonismo gradualmente deixa a psicanálise e passa para o esquema de tráfico humano e de droga que Osvaldo descortina: o professor Campos que encontramos no início, completamente absorvido pelos delírios dos seus pacientes e sem tempo para si mesmo, não é o mesmo que encontramos já nos últimos capítulos, que mal tem tempo para a psicanálise, de tanto querer salvar o Mundo, de tanto querer combater a sombra…
Por atender certos pacientes, sem lhes cobrar (Os “miserabilus”.), Osvaldo Campos acaba por ter, deitados no seu divã, os personagens-tipo da sociedade actual portuguesa, e, ainda por cima, entregando-lhe tudo, até o subconsciente. O Eça não faria melhor. Mas mais que expor a sociedade á psicanálise, Lídia Jorge deixa Osvaldo Campos em frente a um esquema de tráfico que passa pelo Prédio Goldoni, onde o psicanalista tem o seu consultório. É através deste esquema que os personagens se entrelaçam como um novelo, e que a escritora retrata aqueles que são dois dos maiores podres desta sociedade em que vivemos: a inércia e o comodismo.
“Não suportamos enfrentar a cara do culpado” diz Lídia Jorge, em entrevista ao Ípsilon. Não, não suportamos, e este livro mostra-nos isso, e sem nos deixar espaço para tentar negar ou ignorar que assim é. Todos os dias, andamos na rua, e cruzamo-nos com o Arquitecto London Loureiro, com José Maria Adolfo, e com Junô d´Almeida, vemo-los e sabemos exactamente o que fazem, e, no entanto, não suportamos dizer que são culpados. Nisto, esquecemo-nos que, ao negarmos a existência de um culpado, somos nós mesmos culpados, de ignorar, de não querer saber. Deixamos que a consciência seja apenas uma visita da noite (Como Maria London Loureiro era a visita da noite do seu psicanalista.) e não pensamos com ela durante o dia.
Posto isto, é muito grave, muito perigoso, que este romance seja realmente realista, mas é. É realista, uma crónica dos nossos dias, uma metáfora fenomenal, e, indubitavelmente, o melhor romance de Lídia Jorge.

Veredicto Final:
20/20

Arcade Fire: Neon Bible

A DECIFRAÇÃO


Serve de epígrafe ao romance “O Homem Duplicado” de José Saramago uma frase do “Livro dos Contrários” que diz que “O caos é uma ordem por decifrar”. E não, não me enganei. Este início pertence a um texto sobre o segundo LP dos canadianos Árcade Fire.
Há quatro anos atrás, os nomes de Win Butler ou de Régine Chassagne não diziam nada a ninguém, mas hoje, eles são líderes de uma das bandas mais importantes da cena musical contemporânea, não só pela indiscutível qualidade da sua música, como pelo burburinho que se gerou á volta do septeto.
O álbum “Funeral” (2004), em dez canções, conseguiu fazer correr oceanos de tinta pela imprensa da especialidade, e moveu um sem-número de fãs.


Eis que, em 2007, se dá o aguardado regresso. Chama-se “Neon Bible”. Ao ouvir, sabemos que é Árcade Fire, sabemos que é bom, que é muito bom, sabemos que a pior música de “Néon Bible” consegue ser melhor que a melhor música de muita gente, mas, ao mesmo tempo, sabemos, sem equívoco, que alguma coisa mudou, e que não foi para melhor.


Aquilo que fazia de “Funeral” indefinível, a sonoridade variada, solta, libertina, todo aquele caos, perdeu-se. É triste e cortante, mas é assim mesmo. “Néon Bible” é a decifração do caos de “Funeral”, e isso não é bom, porque, em certos momentos, por exemplo na faixa que dá nome ao álbum, ficamos com a noção de que os Árcade Fire estão perto de se tornar catalogáveis.
Como objecto individual, este segundo álbum não tem quase nada de negativo. Com a excepção de algumas canções mais previsíveis (“Néon Bible”, “The Well and the Lighthouse”.), o som é maximalista, grandioso (“Intervention”.), enérgico (“No Cars Go”.), fluido (“Windowsill”.) e, sem dúvida, agradável. É, por vezes, demasiado composto, não há muitos solos, e pouquíssimas mudanças repentinas de ritmo (Como víamos acontecer em “Crown Of Love”, por exemplo.). Win Butler cai também no erro de variar menos a tonalidade em que canta.
As comparações com o predecessor são inevitáveis, é a natureza humana: sente-se a falta do caos, da rebelião. Agora, tem-se um caos decifrado, que ainda não é ordem, mas está mais perto do que seria desejável. No entanto, não deixa (Mesmo.) de ter grandes canções, que nos rasgam alguma coisa lá dentro: como ficar indiferente a “My Body Is a Cage”, a “No Cars Go” ou a “Intervention”?

Veredicto final: 19/20

Annie Lennox: Bare

A IDADE ADULTA





Não vão assim tantos anos, Annie Lennox era metade dos Eurythmics. Depois, ela lançou-se a solo. “No More I Love You´s” foi, injustamente, o seu tema com mais projecção. Injustamente, porque outros há que mereciam tanta ou mais projecção, e não a tiveram. Mas, enfim, ninguém disse que ao que é bom todos dão atenção, e ainda bem, porque se alguém dissesse estaria a mentir.
“Bare” é a prova disso: lançado em 2003, ao longo de quatro anos, foi-lhe dada pouca importância. E em 4 anos, chegámos ao cúmulo de o Robbie Williams e os Da Weasel serem capa do Blitz, e nem uma palavra sobre Annie Lennox. Mas esqueçamos as injustiças da indústria musical, e passemos ao álbum em concreto: não se trata de um álbum feito ao acaso, longe disso. Bem pelo contrário: a evidente ausência de arestas mal limadas, e o perfeccionismo técnico de cada faixa confirma aquilo que a própria Annie escreve na contracapa do álbum, “I am not a young artist in their early twenties. I am a mature woman…” e eu acrescentaria “mature musicien”. Autora das onze canções, Lennox consegue com elas as suas melhores composições: além das letras escritas com mestria, boas não só por serem claramente intimistas, como também por estarem bem feitas, formalmente; também nas músicas Annie Lennox atinge em pleno uma característica que procurava desde “Medusa”: mesclar a sonoridade dos 80´s com métodos de produção mais actuais. E se, por um lado, os arranjos nos soam perfeitamente a 2003, os ritmos, muitas vezes, levam-nos a 83(+-). “A Thousand Beautiful Things”, “Oh God (Prayer)” ou “Loneliness” são exemplos claros da sonoridade dos anos 90 a impor-se, ao passo que outras como “Honestly”, “Wonderful” ou “Bitter Pill” vivem mais no passado. Nada contra. Bem pelo contrário.
É, enfim, um regresso em grande, que não é por ter sido ignorado que é menos bom. Um destaque também para a capa, com uma foto da autoria de Allan Martin: um grafismo perfeito. Equilíbrio!!!


Veredicto Final: 17/20

António Lobo Antunes: Ontem Não Te Vi Em Babilónia

TERRA DE NINGUÉM



Há 28 anos atrás, António Lobo Antunes era um novo escritor, a publicar (No mesmo ano.) os dois primeiros romances, “Memória de Elefante” e “Os Cus de Judas” (1979). A escrita, aparentemente sem influencias, fez deste psiquiatra não só uma das mais importantes e originais vozes da literatura do pós-25 de Abril, como um dos cronistas mais credíveis da transição do Portugal da época da ditadura, até ao actual, usando com particular incidência os horrores da Guerra Colonial, onde o escritor esteve durante dois anos.
28 anos depois (Visto eu ter gostado do filme “28 Dias Depois”.), com todas as inevitáveis (E ainda bem.) evoluções, a escrita de António Lobo Antunes é uma das mais importantes e apreciadas quer no contexto da literatura portuguesa, quer no contexto da literatura mundial.
“Ontem Não Te Vi Em Babilónia” é o romance mais recente do autor. Nas entrevistas, Lobo Antunes afirma não querer contar histórias, mas sim vidas, e foi o que fez, no seu 18º romance: ele conta as vidas destas pessoas, e entrelaça essas vidas, mas sem criar um enredo, colocando-as a deambular por uma terra sem dono.
Uma noite, estas pessoas não adormecem, têm insónias. Deitadas na cama, revisitam o seu passado, relatam-no, comentam-no, descobrem-no e por vezes, inventam-no. Nem todos os personagens falam o mesmo número de vezes, havendo quatro que se destacam, e essas quatro têm em comum o facto de terem sido testemunhas do suicídio de uma rapariga, que se enforcou numa macieira.
São encontros e desencontros, mas há sempre uma tremenda melancolia, em cada linha, em cada frase que se repete como um eco (Característica muito lobo-antuniana.), há o sofrimento de quatro pessoas vítimas de si mesmas e das suas escolhas. Todas têm um segredo. E vão revelando o seu segredo, sem pressa, aos poucos.
A força do livro é impressionante. É honesto e realista, chegando por vezes a ser agressivo ou a atingir quem lê (O exemplo de uma das personagens que acusa quem lê de ir esquecer-se dela quando terminar a leitura do livro.), revelando-se, no fim, um texto que ultrapassa as potencialidades reais que tem: aquilo que o livro é, na realidade, não oferece muitas possibilidades de este ser um romance assinalavelmente bom, nem sequer no contexto da obra do seu autor; mas a verdade é que é tão bem conduzido, e de uma forma tão pouco enganadora, que acaba por contornar essa condenação prévia.
Ao fim de 479 páginas (Algumas a menos, ainda assim, não seriam fatais.), Lobo Antunes afirma que o que escreve pode ler-se no escuro. E pode. Infiltra-se e morde de tal forma o leitor, que pode ser lido no escuro, talvez seja melhor que nos morda no escuro.
“Ontem Não Te Vi Em Babilónia” é obviamente incapaz de ultrapassar a grandiosidade do magma de romances como “Eu Hei-de Amar Uma Pedra” ou “O Manual dos Inquisidores”, mas é igualmente óbvio que é um dos melhores livros do ano.

Veredicto final: 18/20