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sábado, 27 de julho de 2013

OFFICE Kersten Geers & David van Severen (parte 2)

Jogos de Redefinição


pórtico

The earliest experience of art must have been that it was incantatory, magical; art was an instrument of ritual. (...) The earliest theory of art, that of the Greek philosophers, proposed that art was mimesis, imitation of reality. [SONTAG: 2009, 3]
com este apontamento inicia Susan Sontag um dos seus ensaios mais emblemáticos, 'Against Interpretation'. Colocando a problemática da arte enquanto elemento mágico versus arte enquanto imitação da vida, Sontag segue referindo Platão: Since he considered ordinary material things as themselves mimetic objects, imitations of trascendent forms or structures, even the best painting of a bed would be only an ''imitation of an imitation'' [SONTAG: 2009,3]
Esta ideia servirá para problematizar a arte figurativa, logo à partida, mas também será útil ao analisar, como Sontag argumenta no mesmo ensaio, a arte abstracta. A Arquitectura parece ficar de fora desta equação. Enquanto toda a Pintura e toda a Escultura provêm da necessidade figurativa, que encontramos desde a Arte Rupestre, a Arquitectura nunca teve essa função mimética: trata-se de um contentor de vida, não de uma imitação dela. Mas se atentarmos na ideia de Platão de que tudo o que existe concretamente é uma imitação de elementos transcendentes, concluiremos que a Arquitectura, não sendo uma ''imitação de uma imitação'', é pelo menos a primeira dessas imitações, a que opera a transição entre o transcendente e o real.
Tentar encontrar em qualquer obra de Arquitectura os elementos que imita é uma tarefa virtualmente impossível, talvez excepto ao próprio arquitecto. Por outro lado, qualquer obra de arte se torna independente da visão do artista a partir do momento em que deixa a esfera privada. Caberá ao observador supor, interpretar e propor uma ou várias leituras de uma obra, todas elas até certo ponto válidas.


1. primitivos flamengos e flamengos contemporâneos

Uma observação da História da cultura europeia mostrará que, artisticamente, a Flandres, território hoje em parte correspondente à Bélgica, conheceu o seu primeiro apogeu entre o final do séc. XIV e meados do século XV. No resto da Europa a pintura tardo-gótica conquistava o domínio da perspectiva na Pintura, mas mantinha a mesma tradição temática, quase sempre religiosa e nitidamente fantasiada, idealizada para aludir ao carácter místico das cenas representadas.
Os Primitivos Flamengos, como ficariam conhecidos os pintores tardo-góticos daquela região, muitos ensinados pela chamada Escola de Brugge, diferenciavam-se dos restantes artistas europeus porque não basearam aquele [naturalismo] na arte heróica e idealizada da Antiguidade, mas sim na observação do mundo real. Aceitaram as particularidades da natureza imperfeita e, ao pintar, reproduziram-nas com uma fidelidade meticulosa [POTTERTON: 1998,87].
Mais resumida será a descrição que Vasco Graça Moura nos deixa num poema sobre estes pintores: para os primitivos a/ felicidade estava na minúcia/ da transcrição do real:/(...)/ (...) e a/ alegria era a serena confiança/ de se estar no mundo, podendo// copiar estas aparências [MOURA: 1998,18]


De todos os Primitivos Flamengos, talvez o mais reconhecido seja Jan Van Eyck, autor do famoso Casamento dos Arnolfini. Trata-se de uma pintura onde encontramos as minúcias de que fala Graça Moura, a atenção ao detalhe, a obsessiva imitação do real. Mas nada é assim tão óbvio: ainda não se chegou a um consenso sobre qual verdadeiramente é o momento registado: trata-se de um casamento, de uma recriação simbólica do casamento, ou de um apelo à fertilidade, encomendado por um casal que não conseguia ter filhos? Mais ainda, uma observação atenta da pintura mostra-nos que na preparação desta cena, tudo é símbolo: as laranjas e a roupa escura são sinais de riqueza, a posição dos corpos mostra o papel social de cada um dos noivos, a colocação dos tamancos aponta para o quotidiano de um e de outro, o espelho reflecte as duas testemunhas do momento.
De repente, a imitação minuciosa do real nos Primitivos Flamengos torna-se um desafio mais complexo: a realidade é manipulada e teatralizada ao ponto de quase parecer ficcionada. Ao primeiro olhar tem um esplendor simples e luminoso, mas logo nos deixa desconcertados com a carga simbólica. E talvez percamos a convicção na imitação do real, em detrimento da experimentação sobre esse real.
Entre os Primtivos Flamengos e os OFFICE Kersten Geers David Van Severen, estão seis séculos de diferença, mas também um território comum, estão várias reestruturações políticas e geográficas, mas também uma herança cultural nunca abandonada. Que se encontre no trabalho destes arquitectos uma série de pontos comuns com o trabalho dos primeiros grandes artistas flamengos não será, portanto, inusitado. Mas não parecerá, ao mesmo tempo, o exercício mais evidente.
Na tendência regular, transparente, geometrizada e repetitiva dos edifícios dos Office KGDVS haverá lugar para alguma reminiscência da estética abundante, detalhada, minuciosa e plural que caracteriza muita da pintura tardo-gótica da Flandres? Enquanto o nosso olhar se prender com o domínio estético mais imediato dos edifícios destes arquitectos, certamente não encontraremos, mas se tivermos em conta que na obra desta firma what you see is not so much what you see as what you sense [OCKMAN: 2012, 18], quando nos movemos para lá do aspecto físico dos edifícios e os entendemos enquanto elementos geradores de uma determinada percepção do mundo, ou, na óptica de Platão, enquanto imitações de qualquer coisa inconcreta, as semelhanças entre os Primitivos Flamengos e estes flamengos contemporâneos começam a surgir-nos.


Um dos trabalhos mais interessantes para observar o pensamento de Kersten Geers e David Van Severen será a Villa Schor, que é, ao mesmo tempo, um dos seus trabalhos mais discretos a nível de imagem.
O objectivo da obra era aumentar uma casa de traçado neoclássico no limite de uma zona florestal de Bruxelas. A intervenção dos Office KGDVS passa pela criação de uma plataforma sob a casa original, que fica erguida ao lado esquerdo daquilo que é, agora, o seu palco. O branco das paredes exteriores da casa é prolongado pela frente em vidro e metal do acrescento que se distingue da fachada original, ainda que a integre. Tanto o posicionamento da plataforma face à casa como a solução dos materiais elevam, fisicamente e simbolicamente o edifício original, ostentam-no: ele representa uma realidade, neste caso, um tempo, e o novo elemento demarca-se dele para o elevar, por um lado, e por outro, está consciente de que a sua presença também o altera, confere-lhe uma nova leitura. Mais impressionante, no entanto, que a solução da fachada é o desenvolvimento do aumento em planta.  A maior parte do lote passa a estar ocupada por um edificado rectangular, com oito divisões, todas elas definidas por painéis de vidro e metal (à semelhança da fachada). O resultado é que cada divisão tem visibilidade sobre todas as outras.


De certa forma, o que os Office KGDVS encontram na Villa Schor é uma outra maneira de encenar o real. Nos Primitivos Flamengos, encontramos a escolha e colocação de vários elementos simbólicos, que acabavam por tornar a imagem representada numa espécie de metáfora que partia e sempre chegava ao quotidiano. Uma vez que a Arquitectura não lida com imagens estáticas mas com uma série de movimentos _a vida, no fundo _, não pode haver aqui o domínio sobre a imagem que há na Pintura. Assim, a maneira de encenar o real é colocá-lo verdadeiramente em cena. Da mesma forma que a elevação física da casa original sobre a plataforma é uma maneira de evidenciar uma realidade _a da passagem do tempo _, os painéis de vidro que abrem em volta dos compartimentos vários campos visuais, são uma forma de ostentar o quotidiano. O símbolo deixa de ser crucial para representar a realidade, porque o observador não está perante uma representação, está incluído no cenário e mais facilmente o entenderá.
Seja como for, a transparência de todo o acrescento da Villa Schor, que compreende os espaços mais devassados de uma casa (escritório, sala de jantar, cozinha, sala de estar), aponta para o prazer da realidade e do quotidiano e incita à apreciação deles. A realidade ganha assim a importância e a dignidade que lhes deram os Primitivos Flamengos quando recusaram o 'excesso heróico' da pintura que os precedia.


Mais ou menos contemporâneo de Jan van Eyck é Robert Campin, pintor a quem são atribuídas ao pintor desconhecido designado como Mestre de Flémalle. Uma das obras mais significativas deste pintor nascido em Tournai será a sua Madona:  Neste quadro, representa-se a Virgem como uma roliça e simples rapariga flamenga que alimenta o seu bebé. A pantalha de vime, por detrás da sua cabeça, actua visualmente como uma auréola. No banco, há uns leões esculpidos, os mesmos com que tradicionalmente se decorava o trono onde Salomão sentou a sua mãe Betsabé, simbologia que equivale a predizer a Coroação de Maria. Do lado de fora da janela, vê-se uma alta igreja gótica no meio dos edifícios. Na parte direita, acrescentou-se à pintura original a representação de um armário e de um cálice para realçar o facto de que, apesar do interior simples e doméstico, não se tratava de uma mãe e de um filho vulgares [POTTERTON: 1998,90]. Esta descrição reforça o papel redefinidor que o detalhe, enquanto símbolo, tem na Pintura dos Primitivos Flamengos. É importante compreender como aquela encenação do real de que se falou acima não é um mero gesto estilístico: nela, a cena quotidiana ascende à representação mística, e a cena mística desce à realidade. Este pode até ser um gesto algo revolucionário, o de trazer o sacro para o quotidiano, principalmente tendo em conta que estamos entre os séculos XIV e XV. É para anular essa distância entre os homens e a divindade que o pintor, neste caso Robert Campin, manipula escrupulosamente a composição das suas pinturas, experimenta os limites da realidade e constrói uma poderosa ponte entre dois mundos aparentemente opostos.


Uma atitude assim pressupõe uma postura: a de que a realidade não é um elemento rígido que limita, mas sim uma matéria diversificada que pode ser trabalhada de forma a obter determinado resultado.
No seu projecto para a loja informática de Tielt (Flandres Ocidental), que inclui ainda a casa dos proprietários da loja, os Office KGDVS optam por criar dois corpos paralelepipédicos semelhantes, que se enfrentam um ao outro através de um pátio exterior. Exteriormente, os volumes são construídos através de estruturas de ferro e paredes de tijolo, material frequentemente utilizado na construção na Bélgica. Sendo que a fachada do corpo de frente se eleva a partir do plano definido pelo muro que acompanha a rua, ela dá a impressão de não ter interrompido o muro para inserir a entrada para a loja, mas de apenas ter subido um segmento desse muro à altura de um piso. A entrada desenha uma diagonal em relação ao passeio, e é a partir dessa diagonal que os dois corpos vão organizar-se. Tanto os dois volumes como o pátio estão circundados por um muro branco, que se desenha e redesenha de área para área. Resulta daqui que, por exemplo, no piso térreo não haja muita visibilidade para o exterior, ao passo que no segundo piso, a maior parte dos compartimentos tem vista para o envolvente. As aberturas de luz em ambos os volumes estão localizadas de forma a que tenham visibilidade um sobre o outro, e ambos sobre o pátio, mas não para os lados.

















 Um dos aspectos mais discutidos na obra dos Office KGDVS (como se pode confirmar lendo os ensaios na 2G nº 63, a eles dedicada) é a sua relação com o exterior, com a paisagem natural e construída da Flandres.
Esta paisagem é, de facto, a realidade, a contingência prévia que é impossível remover para construir um novo edifício.
Mas a postura dos arquitectos parece ser um tanto semelhante à de Robert Campin na sua Madona. Em vez de se tornar uma entidade limitativa que tem que ser ou regularmente escondida ou regularmente revelada, os Office KGDVS transformam essa realidade prévia num jogo de manipulações e experimentações. A relação entre edifício e envolvente ora se assume, ora é anulada. Não se trata apenas de tentar equiparar duas realidades distantes, como na pintura de Campin, mas sim de estabelecer um sistema de relações diversas com uma entidade inamovível.
A casa, situada no primeiro piso do volume da frente, abre num painel de vidro para o pátio, permitindo visibilidade ainda sobre todo o volume das traseiras. No entanto, o campo visual abre-se também sobre a paisagem (de um lado, um campo e arvoredo, e do a Felix D'Hoopstraat, uma uma transversal com casas baixas de arquitectura caracteristicamente belga), o que tem muito mais sentido para a casa do que para a loja. O primeiro piso do edifício nas traseiras tem uma série de oficinas, que abrem apenas para o pátio e para o volume da frente, não havendo tanta necessidade de aproximação entre o interior e a paisagem. Neste jogo, existe sempre lugar para a surpresa, para a redefinição da casa através da sua relação com os muros exteriores e essa surpresa será sempre resultado de uma experimentação. E é essa experimentação sobre o real que, em última análise, une mais fortemente artistas como Jan van Eyck e Robert Campin ao universo arquitectónico dos Office KGDVS.



2. para uma sensualidade arquitectónica


Voltando a 'Against Interpretation', nele, Susan Sontag afirma peremptoriamente: What we decidedly do not need now is further to assimilate Art into Thought, or (worse yet) Art into Culture [SONTAG, 2009:13]. Em contrapartida, Josep Maria Montaner, num texto em que define o ensaio e a sua importância para a formação de um pensamento crítico, afirma que o ensaio consiste numa reflexão aberta (...) que lhe permite orientar-se na direcção de uma concepção multidisciplinar do conhecimento humano, de uma compreensão da cultura e da arte como um todo, inter-relacionado (...) entrelaçando referências dos mais diversos campos da cultura: pintura, escultura, arquitectura, literatura e poesia, música, antropologia, religião e ciência [MONTANER: 2007,13].
Sontag, na sua defesa de uma erótica da arte em detrimento de uma hermenêutica, era talvez a pensadora necessária a um momento da cultura, especialmente americana, em que a crítica e a interpretação se sobrepunham à arte propriamente dita, usurpando-a. 'Against Interpretation' terá sido talvez extremista o suficiente para abanar os excessos do nosso tempo. Montaner, teórico europeu de Arquitectura, revela-se menos pessimista: não precisa de reclamar a divisão entre Arte e pensamento, ou entre Arte e cultura, acredita ainda que as relações entre estes podem ser encontradas sem que se incorra no risco da usurpação.
É importante entender-se a relação dos vários campos da cultura uns com os outros, porque ignorá-la é partir do princípio que cada uma delas surge independentemente do seu contexto sociocultural _e qualquer estudo de História de Arte, por superficial que seja, nos mostrará como isto é absurdo. Sontag estaria provavelmente consciente disto, tanto quanto estava consciente de que seria preciso negar esta realidade para travar as pretensões dos críticos que tentavam ser mais artistas que o próprio artista.
O binómio Arte-Pensamento é de mais importância ainda quando sabemos que as correntes do pensamento filosófico acabam por proliferar pelo pensamento quotidiano, e ainda que muitas vezes acabem por se vulgarizar de formas deturpadas, têm uma presença insuspeitada na grande maioria dos discursos e das posturas dos indivíduos.

L'idée de l'affection qu'éprouve le Corps humain, quand il est affecté d'une manière quelconque par les corps extérieurs, doit envelopper la nature du Corps humain et en même temps celle du corps extérieur [SPINOZA: 1965, 92] diz-nos o filósofo luso-holandês Baruch Spinoza na Proposição XVI da segunda parte da sua 'Ética', proposição que complemente com o seguinte corolário: Il suit de lá: 1º que l'Ame humaine perçoit, en même temps que la nature de son propre corps, celle d'un très grand nombre d'autres corps [SPINOZA: 1965,93]. A esta ideia sobre a multiplicidade de corpos e a sua afectação na Alma humana, acrescente-se uma outra, da Proposição XIX da mesma parte da 'Ética': L'Ame humaine ne connait le Corps humain lui-même et ne sait qu'il existe que par les idées des affections dont le Corps est affecté [SPINOZA: 1965,97].
A ideia de assumir a importância do corpo na alma, contrariando Descartes, bem como toda uma linha de pensamento teológico desde Agostinho de Hipona, tem sido um dos aspectos mais importantes para a consolidação da importância da 'Ética' de Spinoza.
E não será de todo forçado que se encontre na Arquitectura uma presença desta ideia do envolvimento de um corpo com outros corpos, de onde, não raro, resultam obras em que a unidade do edifício não passa só pela edificação em si, mas também pela sua integração no lugar.


O exemplo eventualmente mais badalado neste campo será a Casa Edgar Kaufmann de Frank Lloyd Wright, conhecida também por Casa da Cascata. Nesta casa, concluída em 1939, a agradável expressão do princípio do repouso onde a floresta, o riacho e a rocha e todos os elementos da estrutura são combinados de forma tão tranquila que não ouvimos rigorosamente nenhum ruído apesar de a música do riacho lá estar [PFEIFFER: 2004,53], o que se alcança, com talvez mais drama do que qualquer outra residência privada, é a colocação do homem em relação à natureza [PFEIFFER: 2004,53]. E se é verdade que, nesta obra, Wright consegue colocar os seus ocupantes numa íntima relação com o vale, as árvores, a folhagem e as plantas silvestres [PFEIFFER: 2004,53], conseguindo com uma eficácia ainda hoje impressionante que a glória do ambiente envolvente [seja] acentuada, trazida para dentro, e transformada num componente da vida diária [PFEIFFER: 2004,53], é igualmente verdade que tudo isto acontece devido através de um posicionamento físico estratégico do edificado sobre a morfologia do terreno, por um lado, e por uma perspicaz escolha dos pontos da casa onde janelas e painéis de vidro devem abrir sobre a paisagem natural. De facto, a natureza é trazida para dentro, mas mais num sentido psicológico e sensorial, a colocação do habitante perante a natureza é de convivência, mas não de envolvimento físico. Evidentemente, o trabalho de Wright representa um passo revolucionário para a Arquitectura, e sem ele, muitas das experiências da Arquitectura posterior teriam sido provavelmente mais lentas e menos eficientes.
Por um lado, poucas obras terão tido um impacto tão definitivo, se hoje é praticamente impossível conceber uma relação edifício/natureza sem considerar a Casa da Cascata, que para a referir, quer para a renegar. Por outro lado, o passo de Wright, por avançado que fosse, foi, como são todos, o primeiro de outros. Porque ainda que a Casa da Cascata garantisse uma integração psicológica do exterior natural no interior da casa, esta integração não vai até às últimas consequências. A casa tem ainda os seus limites físicos, coloca-se estrategicamente, mas não invade nem se deixa invadir fisicamente pela floresta. Levar a integração às últimas consequências seria pôr em prática a proposta de Baruch Spinoza sobre as afectações do corpo.



Tomemos o edifício construído como um corpo, e sabemos que a interferência de outros corpos de diferentes naturezas conferirá ao corpo original uma consciência de si mesmo. Originar-se assim, através desta afectação cuja definição última é a própria sensualidade, um todo coerente e pensado, cuja multiplicidade se torna numa espécie de força, de intensidade do edifício.
No trabalho dos Office KGDVS, encontramos um exemplo bastante peremptório desta experimentação na Villa em Buggenhout (Flandres Oriental). No rés-do-chão, a planta em cruz grega abriga, em áreas quadradas iguais, a entrada, um vestíbulo, a cozinha e um quarto-de-banho, sendo que o que define a cruz latina na planta é precisamente que ela seja rematada por quatro quadrados, até que todo o conjunto forme um quadrado por si só, sobre o qual assentará o primeiro piso, onde encontramos a sala-de-estar, os quartos, quartos-de-banho e um escritório.
O primeiro pormenor decisivo para a relação do espaço interior com o exterior é a resolução no rés-do-chão. Que a cruz grega seja rematada por quatro espaços cobertos mas sem paredes, acaba por explodir a casa para o exterior, ainda que de uma forma contida. O espaço interior, mais do que conviver com um espaço exterior, confunde-se com ele, o que é reforçado ainda pela cobertura assegurada pelo piso superior. Há uma afectação directa e quase fusional entre um e outro e, logo a partir daí, os Office KGDVS parecem estranhamente próximos de materializar a ideia spinoziana das afectações dos corpos.
O segundo elemento que ajuda a concretizar essa ideia é a opção de conter o edifício dentro de dois muros: um primeiro que sustenta o piso superior, prolongando o inferior; e um segundo muro que protege todo o conjunto. Entre um e outro, árvores, e alguma visibilidade sobre a planície flamenga. O ajardinamento, bastante 'livre' entra pela casa, já não só psicologicamente, como víamos em Wright. Ele faz parte da casa, é mais um compartimento, como o são os quartos ou a cozinha, tendo, inclusivamente, um lugar designado na trama regular que define a casa. Quando a casa é penetrada pela natureza exterior e irregular (apesar de planeada), a própria ortogonalidade da casa é realçada. A sua regularidade acentua-se, então, mas ao mesmo tempo é atenuada pela escolha dos materiais de revestimento do piso superior: sendo escuros, quase prolongam a vegetação que cobre o muro interior. O corpo do edificado, por assim dizer, transforma-se e é mais nítido ao encontrar a presença invicta da natureza, nesse contacto sensual que Spinoza previra.


A casa de fim-de-semana de Merchtem (Brabante Flamengo) é um trabalho que extenua ainda mais esta hipótese. É eventualmente uma das casas mais experimentais dos Office KGDVS e, por isso, uma das mais importantes para compreendermos o seu pensamento.
Ao longo de todo o lote, criam-se parcelas equivalentes, ocupadas umas com edificado, outras com áreas de jardim, exteriores. Se houvesse uma definição rígida dos limites das parcelas de edificado, estaríamos perante um caso de cheio/vazio, ou de interior/exterior, articuladas numa lógica intermitente e regular. Mas não é o caso. Nesta habitação, qualquer binómio que lide com oposições será insuficiente para explicar a lógica da organização dos espaços.
Mas a atitude dos Office KGDVS, aqui, parece ser a de precisamente rejeitar esses binómios: todo o edificado parece ter sido pensado para garantir uma fluidez ao longo de todo o lote. O exterior está hierarquicamente equiparado com o interior, os jardins e a piscina são mais um compartimento da casa em que as largas portas de vidro parecem só fazer sentido quando abertas. A natureza diferente dos espaços exteriores é uma especificidade, mas não mais do que um quarto sendo especificamente um quarto, ou uma cozinha sendo especificamente uma cozinha. Os exteriores quase funcionam como salas-de-estar, como qualquer espaço, eles, a um tempo, unem e separam os espaços da casa uns dos outros. Não são um anexo exterior, não são o jardim que completa o conceito algo suburbano de casa: são espaço também, são programa e desafio ao programa _pelo menos ao mais comum dos programas.


Esta interacção é provavelmente a mais bem conseguida de todo o conjunto da obra dos Office KGDVS. A relação entre os espaços é conseguida com tal naturalidade e tal fluidez, que dificilmente se encontraria correspondente arquitectónico mais próximo às proposições de Spinoza. A casa de Merchtem mostra como a relação dos espaços tem uma componente sensual, o que, inclusivamente, contrariará a ideia pré-concebida de que, por norma, a Arquitectura é um exercício frio e racional. E pode sê-lo, de facto, se isso não significar uma exclusão da utilização dos sentidos para criar espaços mais eficazes, como acontece aqui. Nesta casa, os Office KGDVS sabem aproveitar da melhor forma o pedido do cliente _trata-se de uma casa de férias, o que significa que a sua utilização não só será mais parcimoniosa e relaxada, como significa que uma série de contingências não entram, aqui, em causa: por exemplo, o problema da chuva, bastante intransigente durante as estações frias na Bélgica.
Interessará, por último, precisamente debruçarmo-nos um pouco nessa palavra: Bélgica. Não será inconsequente a nacionalidade de Kersten Geers e David Van Severen. Se pensarmos no que é a Bélgica nos dias de hoje, há algumas questões essenciais que encontramos, e uma delas é a da dualidade. Nos conflitos entre Valões e Flamengos, nas diferenças linguísticas, nas diferenças culturais, tudo na Bélgica parece só poder ser definido através do confronto. Ao mesmo tempo, Valónia e Flandres são duas regiões autónomas, não dois países; francês e neerlandês são duas línguas, ambas oficiais; e a cultura valã não é a flamenga, mas também não é a francesa, como a flamenga não é a valã, mas também não é a holandesa. Será talvez adequado dizer que daquele confronto, resulta apesar de tudo uma junção, pode recusar-se a fusão mas não se rejeita totalmente o conjunto, talvez porque, uma vez mais adaptando livremente o pensamento spinoziano, a relação de um corpo com outro aumenta o seu conhecimento de si mesmo.
E tudo isto parece existir também na obra dos Office KGDVS: confronto e junção, diferença e conjunto. E, uma vez mais, a casa de Merchtem, na sua lógica de interiores e exteriores que se prolongam e se confundem, parece ser exemplo máximo desta vertente do pensamento dos arquitectos.


coda

Será praticamente indiscutível a qualidade dos edifícios dos Office KGDVS. Sendo jovens arquitectos belgas com uma projecção já bastante considerável, é interessante ver como a sua concepção de Arquitectura não é, pelo menos num sentido mais directo e sumário, coincidente com a concepção da maioria dos arquitectos que, neste momento, ditam a 'moda' que, gostemos ou não, existe em todas as áreas. Não parecem rendidos à sedução tecnológica, antes parecem conscientes dos seus perigos; não caem no erro de ver a extravagância formal como maneira de reafirmar a Arquitectura enquanto Arte; os seus edifícios evidenciam-se e falam por si mesmos sem precisar de se demitir do espaço em que existem ou de anular esse mesmo espaço. O trabalho dos Office KGDVS regressa aos aspectos mais básicos: à importância da imagem, à ortogonalidade, à consciência do limite que representa uma parede, à relação com a paisagem urbana ou a paisagem natural, à escala, à ligação com a vida dos habitantes. E no entanto, é um trabalho profundamente experimental. E por isso, o pensamento que se revela a casa obra construída será sempre um dos aspectos mais imprescindíveis para definir o trabalho destes arquitectos. As leituras a que a obra se oferece são múltiplas e inesperadas, o que prova a sua complexidade. Tentar perceber onde se situa esta obra face ao problema do real (da vida quotidiana) e enquanto corpo (como o define Spinoza) são dois exemplos. E talvez por serem tão variadas as leituras que podemos deslindar cada vez que voltamos a olhar para um trabalho dos Office KGDVS, se torna precisamente tão apaixonante fazê-lo.


19.7.13 - 27.7.13



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*MONTANER, Josep Maria: Arquitectura e Crítica (tradução de Alicia Duarte Penna). Barcelona, Gustavo Gili, 2007
*MOURA, Vasco Graça: O Retrato de Francisca Matroco e Outros Poemas. Lisboa, Quetzal, 1998.
*OCKMAN, Joan: Radical Reticence. 2G, 63, 13-18, 2012
*PFEIFFER, Bruce Brooks: Frank Lloyd Wright - Construir para a Democracia (tradução de João Bernardo Paiva Boléo). Köln, Taschen, 2004.
*POTTERTON, Homan: National Gallery (Londres). Lisboa, Oceano Liarte, 1998.
*SONTAG, Susan: Against Interpretation and Other Essays. Londres, Penguin Books, 2009.
*SPINOZA, Baruch: Éthique (tradução latim-francês de Charles Apphun). Paris, Garnier Flammarion, 1965.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Passagem pelo Sudoeste 1 (os concertos)

CLÃ
dia 7

Os Clã são certamente uma das melhores bandas portuguesas, mais do que afirmadas. Este concerto foi mais uma prova. Com passagem por vários dos pontos altos da sua carreira, de "Sopro do Coração" a "Tira a Teima", Manuela Azevedo e comparsas não deixaram de brilhar.
Além da versão a guitarra acústica e voz de "Sopro do Coração", destaque para "h2omem", com Arnaldo Antunes como convidado, "GTI", previsivelmente um dos melhores momentos e "Dançar na Corda Bamba", que o público parecia esperar desde o início.



BJORK
dia 7




Claramente o melhor momento de todo o festival, Bjork entrou no palco após um espectáculo de marionetas vivas suspensas sobre o público com percussão e uma trapezista. Dentro de um escultórico vestido (ou kimono) que lhe dava um dos aspectos mais invulgares que já teve, entrou com "Earth Intruders", single de avanço de "Volta", que haveria de dar o mote para uma autentica manifestação tribal do mais bizarro possível.
Sofrendo incríveis transmutações, a noite permitiu-nos ouvir clássicos como "Army Of Me" mais rock que outra coisa, "Hyperballad" com ritmo dançável a terminar, "Pluto" mais agressivo do que o normal, "Pagan Poetry" indescritível, "Immature" sempre interessante, "I Miss You" absolutamente inesperado, "Hunter" um verdadeiro transe, "Who Is It" mais ritmado, "Vokuro" comovente, "All Is Full Of Love" agora com um cravo a marcar o ritmo, "Pleasure Is All Mine" do controverso "Medulla", agora mais sinistro do que nunca, entre as canções do mais recente "Volta", que incluiam "Wanderlust" e "Hope", onde se fez acompanhar por Toumani Diabaté em deliciosos solos de kora. Para os aopteóticos encores, reservou "The Anchor Song" e "Declare Independence", onde as minhas cordas vocais se danificaram consideravelmente.
Sobre Bjork, uma palavra: deus!
É caso para lhe dizer "OBRIGADO", se possível com o mesmo sotaque giríssimo com que ela foi dizendo, em várias entoações.



GOLDFRAPP
dia 8

Allison Goldfrapp e Will Gregory, acompanhados pela sua banda, registaram o momento alto do segundo dia de festival. Ainda que, infelizmente, a maioria do público estivesse à frente do palco apenas para assegurar um bom lugar em Chemical Brothers, o concerto dos Goldfrapp valeu por si próprio.
Começando com "Utopia", fez passagem pelos restantes três álbuns da banda. O defeito é que este concerto parecia promover "Supernature", em vez de "Seventh Tree", apesar da interessantíssima decoração do palco.
Fora isto, nada se pode apontar à performance da banda, em momentos tão bons como "A&E", "Satin Chic", "Train" ou "Number1". Destaque, no entanto, para "Ooh La La" e "Strict Machine", a terminar em grande. Uma pena ter sido tão curto.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Damião Porto: Circus, Espaço Balizado

"A Maquilhagem do Anão Pichio"

A nova exposição de Damião Porto localiza as suas imagens num espaço que o próprio título diz balizado: o circo. Não se trata de uma visão superficial ou habitual deste assunto, obviamente. De facto, pelo tipo de imagens apresentadas, nota-se uma investigação e selecção de ícones ligados ao circo.
Há algo de repulsivo e algo de comovente nestas imagens que Damião Porto pinta ou desenha. E se podemos falar das influências de Júlio Pomar ao observar as particularidades técnicas dos trabalhos, é muito mais importante referir as reminiscências ideológicas que nos conduzem a Toulouse Lautrec e Seurat, influências mais ideológicas. Há a mesma atmosfera de tristeza e de maldade que a cor e o espctáculo tapam, seguindo um pouco aquela ideia dos Queen quando dizem "the show must go on".
Assim sendo, o circo é retratado não enquanto espectáculo, mas enquanto espectáculo sustentado por seres humanos, com estados de espírito por vezes dissidentes daqueles que é suposto provocarem. Aí reside o ponto forte destas imagens: as figuras coloridas e cheias de folhos e adereços que nos olham com ódio, ou com medo, ou com raiva, ou também com alegria, claro.
A ver no Solar de Santo António, até 14 de Julho.

segunda-feira, 30 de junho de 2008

A Ronda da Noite de Peter Greenaway

RELATO DE UM CRIME

Certamente uma das mais únicas e emblemáticas do Barroco, a obra de Rembrandt Van Rijn tem inspirado muita da arte que se tem feito posteriormente. Indo ao mais recente apenas, podemos contar o mais recente romance da escritora portuguesa Agustina Bessa Luís, e o novo filme do realizador Peter Greenaway, que partilham o título, “A Ronda da Noite”, título também da obra que os inspirou.
E enquanto que Agustina insere o quadro (Ou uma reprodução.) numa história sua, Greenaway aventura-se a contar a história do pintor enquanto este pinta o célebre e enigmático retrato de grupo, que pode afinal ser também o retrato de um crime e de várias irregularidades (A sombra da mão do personagem central sobre o púbis do homem a seu lado- é preciso lembrar que até há pouco tempo a homossexualidade era punida pela lei.).
A história divide-se essencialmente em dois planos: a execução da “Ronda da Noite” e a vida pessoal de Rembrandt, que se vão fundindo até que o primeiro começa a interferir com o segundo.

Logo nas primeiras sequências, reconhecemos a presença de Greenaway atrás da câmara e o seu toque no que vemos: é aquele cenário que parece mais pertencente ao teatro do que ao cinema, os altos-contrastes, a cor, a teatralidade em tudo. E pouco depois, os corpos brancos e muito naturais (Sem ginásios ou coisas semelhantes.), desta vez numa luz a lembrar claramente a iluminação da pintura barroca, ora focal, ora difusa. É preciso não esquecer que, da perspectiva de Greenaway, a pintura deu origem ao cinema, e se há pintura que realmente dá indicações de movimentação dramática, é a pintura do Barroco.
No entanto, este não é um filme perfeito, apenas por muito pequenas coisas, problemas que até acabam por nem o ser: primeiro é um filme elitista. Quem não pertencer a este mundo da Arte não terá a mínima hipótese de perceber certas partes do filme, as mais interessantes. E depois, há um excesso de bebés a chorar, como se fossem uma banda sonora, e isso é extremamente irritante.
Por outro lado: apenas uma elite terá interesse pela obra de Greenaway, é um cinema muito intelectualizado e nada imediato. E pode haver quem não se incomode como eu incomodo, pelo choro dos bebés.

Cenas a destacar, há o genérico, com um arrepiante violoncelo a irromper de pormenores de “Ronda da Noite”, a cena em que os pormenores do quadro são explicados (A sombra da mão, a rapariga a ser afastada, o cântaro na mão desta, o olho de Rembrandt quase oculto, etc, etc, etc.), e no final, quando o quadro é apresentado, e que nos é finalmente dito que a forma como Rembrandt pinta fez dele um pintor pouco apreciado: Enquanto que noutros retratos de grupo, havia estatismo e a consciência por parte dos modelos de que estavam a ser observados, no de Rembrandt reinava o caos e o movimento, os personagens eram como actores de teatro, e não pareciam ter noção de que eram observados.
Um filme importante para perceber a obra, o tempo, e a pessoa. E mais uma obra-prima de Greenaway.

Veredicto: 19/20

sexta-feira, 27 de junho de 2008

3 filmes sobre escritores

“Henry and June” de Philip Kaufmann
(1990)






Uma nulidade enquanto escritora e memorável como personagem, Anais Nin não era mais do que uma elegante senhora que escrevia fantasias eróticas, ainda que com uma linguagem a roçar o poético.
Ainda que dela tenhamos apenas histórias desinteressantes como “A Casa do Incesto” ou “Delta de Vénus”, certamente a sua vida terá muito interesse. Assim sendo, não é de estranhar um filme como “Henry and June”.
Maria de Medeiros, no seu primeiro papel fora de Portugal interpreta Anais Nin de uma forma assinalável: tanto pelo físico como pela performance coloca-nos perante uma mulher que em tudo nos surpreende: aparentemente inocente, mas preenchida por desejos e delírios sexuais.
Desejos e delírios sexuais que irá começar a pensar em satisfazer quando conhece Henry, Henry que é Henry Miller, que se cruza com Nin através do marido desta, Hugo, num dos muitos anos que passou a escrever “Trópico de Câncer”.
E é através de Henry que Anais se cruza com June (Interpretada por uma brutal Uma Thurmann.) , por quem se apaixonará quase de imediato.
A premissa, com tudo para ser dramática, evoluiu, tornando-se cada vez mais forte e deixando Nin cada vez mais encurralada, á solta no realizar da sua imaginação.
As personalidades vão então evoluindo e conduzindo uns contra os outros: as frustrações de Miller, a voracidade de Anais, o narcisismo de June, a insciência de Hugo. E nisto, Philip Kaufmann consegue brilhar: filma as cenas com a tensão e o tempo necessário, o sexo com toda a intensidade, os olhares com uma força poética, e as palavras com a importância devida (Tendo em conta que este é essencialmente um filme sobre escritores.).
Mas o que “Henry and June” tem de realmente notável é no retrato absolutamente cru de como a experiência e a vida impulsionam e permitem a arte, muitas vezes em situações que podem, à vista desarmada, ser condenáveis ou sacrílegas, mas que na realidade, são as únicas que realmente movem a criação.

Veredicto: 18/20


“Wilde” de Brian Gilbert
(1997)



Não menos controverso do que Anais Nin, mas certamente por diferentes motivos, Oscar Wilde tinha tudo para ter tido uma vidinha normal: mulher, filhos, talento para escrever, protagonismo e allure. As coisas correram mal quando Wilde descobre que é homossexual, e se inicia numa série de vários engates, que terminam em Lord Alfred Douglas aka Bosie. Por este se apaixona e com este se lança numa vida arriscada (Falamos de um tempo em que a homossexualidade é crime.) que o levará à cadeia, onde passará os mais desgastantes dois anos da sua vida, depois dos quais só sobreviverá mais dois. Alguns destes meses são passados com Bosie.
A película de Brian Gilbert tem sem dúvida uma certa quantidade de intensidade e de densidade narrativa. De uma forma coerente, Gilbert serve-se de contos infantis ou de livros como "De Profundis" para ir articulando os vários momentos da história. Não entra num previsível comportamento de querer engrandecer o personagem de quem fala: retrata-o com os seus defeitos e todas as suas falhas.
O contracenar de Stephen Fry (Wilde) e Jude Law (Bosie) é bom, sendo conseguida a tensão e o atrito pretendidos.


Veredicto: 17/20


“Eclipse Total” de Agnieszka Holland
(1995)






Sem Arthur Rimbaud, a poesia moderna não seria o que é. E sem Paul Verlaine, a vida de Rimbaud certamente não teria sido como foi. Rimbaud era um rapaz simples da província que aos 16 anos já escrevia a poesia que havia de revolucionar o mundo da literatura. Quem recebia esses poemas era Paul Verlaine, a viver em Paris com a mulher, pensando que lia os poemas de um jovem de 21 anos.
Quando Verlaine escreve a Rimbaud "vem alma-gémea, és esperado", e este vem mesmo, Verlaine depara-se com um rapaz mal-formado, rebelde e sem tento na língua, basicamente.
E no entanto, apaixona-se por ele.
Os dois fogem para vários sitios, Verlaine cada vez mais dominado por Rimbaud cada vez mais dominado pelas suas ambições e sonhos.
Relativamente ao filme em si, não fosse este um conto homossexual, e poderia ser passado num sábado á tarde, na TVI. A falta de tensão e de verismo nas cenas mais íntimas é óbvia, e nas cenas de sexo absolutamente escandalosa.
É um filme que não arrisca basicamente nada. E, ao fugir de uma exploração plena da relação amorosa entre os dois poetas, o realizador poderia ter-se focado pelo menos na relação literária que existia entre os dois, mas também isso aparece apenas de vez em quando. No geral, o filme parece ser um video turístico em que os guias são David Thewlis e Leonardo DiCaprio.

Veredicto: 14/20

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Madonna: Hard Candy

QUANDO A RAINHA SE JUNTA AOS SUBDITOS

Depois de enveredar por uma linha de música mais madura iniciada em “Ray Of Light” em “American Life” e de ter trazido de volta o dancefloor à moda antiga com todo o estilo em “Confessions On a Dancefloor”, Madonna muda de matriz uma vez mais. E se os três referidos álbuns serão três bons exercícios pop, além dos três melhores (Pela ordem em que surgem.) da cantora, este novo “Hard Candy”, se não é o seu pior álbum, será apenas por existir “Erótica”.
Se há razão para louvar Madonna, e a esta ninguém pode fugir, é por nunca ter ido atrás de modas, e ter sempre iniciado ela própria as tendências no universo pop (Por alguma razão é chamada de rainha.). E em “Hard Candy” podemos mesmo falar de uma rainha convertida.
Em vez de ser criativa e de trazer alguma coisa nova á monotonia da música pop, Madonna revela-se Maria-vai-com-as-outras por seguir a muito em voga reminiscência hip-hop em que á pop se acrescentam uns toques de R&B e de funk e pela lista de convidados que apresenta: de Timbaland a Justin Timberlake.
Assim, e numa primeira análise, ouvir “Hard Candy” é ouvir Madonna, mas podia perfeitamente ser ouvir Rhianna ou a mais recente Nelly Furtado. É a mesma estética, a mesma repetição de conceitos destinados ao sucesso de que Madonna, quanto mais não seja, apenas por ser Madonna, já não precisa.
Depois, relativamente ás canções, há que dizer que estas também são, no geral, desinteressantes e algumas mesmo más.

“Candy Shop”, o início, seria boa se não fosse o desagradável rap no final, a destruir completamente o ritmo subtil apenas para tornar a música mais vulgar.
“4 Minutes” é provavelmente a melhor canção, e dispensava completamente Justin Timberlake que não está, basicamente, a fazer nada. Em tudo o resto, a canção não foge ás tendências hip-hop nem ao esforço por ser rádio-friendly, pelo que resulta bem como primeiro single.
“She´s Not Me”, apesar de por vezes roçar uma certa histeria, podia vir de uma fase after-hours de “Confessions On a Dancefloor”, e segue uma linha mais ligada à electrónica.
Sobre “Devil Wouldn´t Recognize You”, idem aspas, apenas se acrescenta que é quase uma balada.
As restantes oito canções não se aproveitam, são de uma imaturidade e predicabilidade inesperadas. Resultarão bem certamente nos tops e nas discotecas da moda, mas não são suficientes para ficar para a história, e não permitem que o álbum seja bom.

Veredicto: 9/20

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Awake de Joby Harold

PARA DORMIR E RESSONAR


Realmente, nestes dias, já não se justifica fazer um filme de terror. Não se justifica porque já não se sabe. É muito raro o realizador que não faz um filme deplorável, mesmo que parta de uma boa ideia.
Joby Harold, aliás, faz exactamente isso com o seu primeiro filme, "Awake". A ideia inicial é boa. Parte de um facto científico real, de que 1 em cada 700 pessoas que recebem anestesia geral por ano, não adormece, fica consciente, acordada, mas incapaz de mover o corpo.
E se isto poderia criar uma película tensa e perturbadora, na realidade, acaba por criar uma película anedótica e vulgar.



Clay Beresford Jr é um empresário bem-sucedido que mantém uma relação secreta com Sam, a secretária da mãe, Lilith. Além deste quotidiano dark secret, Clay sofre também de um problema de coração que lhe poderá encurtar seriamente a vida, a não ser que receba um transplante. A operação será feita por Jack Harper, o melhor amigo de Beresford.
Depois do escândalo da descoberta da relação com a rapariga de um estatuto social inferior, Clay decide apressar o casamento: casa nessa mesma noite, a noite em que recebe uma chamada que lhe diz que o seu novo coração está pronto a ser transplantado.
No início da operação, Clay recebe anestesia, e vai adormecendo lentamente só que... não adormece. Apercebe-se de que não só ouve tudo aquilo que os médicos estão a dizer, como também sente tudo o que lhe estão a fazer. Num transplante de coração.
Já esta cena é estragada completamente pelo uso do cliché: quer seja na música escolhida para acompanhar os pensamentos desesperados de um Clay acordado e imóvel, quer pela incapacidade de Hayden Christensen de exprimir o desespero e a dor de um momento assim. O seu escape seria pensar na recente esposa: e então somos bombardeados por uma série de imagens muito previsíveis para explorar o corpo de Jessica Alba em ângulos semi-picantes e despropositados.
Como se não fosse suficiente, Harold arranja-nos uma conspiração contra Clay, por parte dos médicos, da esposa, basicamente de toda a gente. Ou seja, um abuso do acaso: logo o paciente contra quem se conspirava é que foi ter consciência anestésica. Os diálogos desta cena primam pelo completo irrealismo, contando com uma Jessica Alba ridicula a dizer coisas como
"_Ninguém sabe que mudei de nome e me meti no teu grupo."
como quem despacha o mistério, para não perder muito tempo. Por estas e por outras é que o argumento é tão mau.
Em termos de realização o único plano mais interessante é o plano em que se ouvem os gritos de Hayden Christensen enquanto vemos a sua cara (Supostamente.) adormecida e plácida. Ou então os últimos momentos que Clay passa dentro da sua própria memória, em que as luzes se vão apagando: pode ser previsível, mas não deixa de resultar bem.


Hayden Christensen e Jessica Alba têm aqui interpretações péssimas, sem o mínimo de credibilidade, mesmo aplicados a personagens tão desinteressantes. Terrence Howard é inacreditavelmente mau, com um discurso melodramático e nada a calhar, ainda por cima em monólogo numa leitura a fazer lembrar uma avozinha que conta aos netos a história da Branca de Neve. Em contrapartida, Lena Olin presenteia-nos com uma excelente interpretação, numa personagem interessante (Que é mesmo a única.) que consegue vestir com óbvia facilidade. Palmas para ela. Só para ela.


Veredicto: 8/10

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Lídia Jorge: Praça de Londres (Cinco Contos Situados)

Lugar- Incomum

Além de uma crítica à mais recente publicação de Lídia Jorge, este texto serve também de resposta a uma crítica à mesma publicada na “Actual” do Expresso de 24 de Maio, que achei particularmente interessante.
Na legenda do dito artigo de Ana Cristina Leonardo, lê-se “Lídia Jorge regressa ao conto. Mas desilude.”


Ao longo do longo texto que escreve sobre “Praça de Londres”, A.C.L. prende-se a “Teses sobre o Conto” de Ricardo Piglia, e prende-se demasiado. O que é que isto origina? Uma crítica puramente académica, despropositada e reveladora de um aparente (?) desconhecimento da obra da escritora algarvia. Quem, como eu, conhece a obra completa de Lídia Jorge certamente já se terá apercebido de que a autora tem uma forma específica de contar as suas histórias, de nos dizer o que nos quer dizer, e também uma forma muito individual de escrever. Quando lidamos com textos de um escritor com estas características, é pouco adequado estar a julgá-lo de acordo com estereótipos ou regras que indiquem como escrever. Quando lemos algo como “E no entanto não precisavam de ter vindo gerar aquele entretenimento forçado para compreendermos a situação em que nos encontrávamos. Por que precisaríamos?” sabemos logo que é Lídia Jorge. Então porquê seguir as regras de Tchekov?
Segundo a crítica da “Actual”, estes “cinco contos situados” deixam “pouco espaço para o sonho e para a imaginação do leitor, dissipada esta pelo moralismo que cada um dos títulos evidencia.” Isto não podia ser mais falso. Não há corte algum com a subjectividade de cada um dos textos, eles são, na realidade, muito susceptíveis de interpretações múltiplas, e deixam, como por norma os contos deixam, lacunas e detalhes por revelar, de forma a que os possamos inventar nós. E quanto a moralismos, não sei o que A.C.L. entende por “moralismo”, não os encontrei, nem neste nem em qualquer outro texto de Lídia Jorge, são, na realidade, relatos de situações e sentimentos muito humanos, com nada de moral nem de amoral. Não escreveu Lídia Jorge “A Última Dona” em que um homem de família se refugia numa estalagem com uma coquine? Não escreveu Lídia Jorge “O Vale da Paixão” em que um homem deserta de casa após ter engravidado uma mulher que casaria com o irmão do desertor?
“E, entre outras, residirá, dessa incapacidade de levar a “estranheza” ás últimas consequências, a razão maior do falhanço” lê-se mais adiante. Desde quando é que uma empregada se dá ao trabalho de guardar cabelos dentro de frascos para saber quando o patrão muda de amante? Desde quando é que gatos engolem anéis?

De certa forma, já fui explicando o que achei de “Praça de Londres”. Esquecendo o deplorável artigo da “Actual”, digo que estes contos são leituras assinaláveis, principalmente porque funcionam como metáforas e/ou como retratos de humanidade, volto a sublinhar.
“Praça de Londres”, que vai acompanhando o crescendo da emoção (Chegando ao delírio, nos possíveis diálogos com a porteira.) da mulher que se depara com uma situação bizarra na rua e tenta segui-la, terminando num anti-climax muito usual no dia-a-dia mais do que na literatura, o que é bom.
“Rue de Rhône” funciona, paralelamente, como história feminista e como crónica das repetidas tentativas do Homem de submeter a si a natureza.
“Branca de Neve” resulta muito bem ao evidenciar a formatação que a vida profissional das pessoas tende a estender-se e ser entendida como lógica de tudo pela própria pessoa (E eu, á porta dos exames e da defesa da Prova de Aptidão Artística percebo isso muito bem, encontro-me muitas vezes a falar de coisas vivenciais como se fossem parte da PAA ou da matéria que estudo.).
“Viagem para Dois” é uma história interessante pela forma como o homem conta á mulher a história que a mulher escreverá mais tarde, tentando dizer-lhe como há-de fazê-lo, deixando a nu aquele que por vezes poderá ser o processo de armazenamento de uma ideia e do descarregar para a página.
Por fim, “Perfume”, baseado no filme “Yol” de Yilmaz Guney, realizador turco a quem a escritora dedica o conto, prima pela forma como é contado, e pela forma como esse contar oscila entre os relatos na primeira pessoa do próprio narrador e pelos relatos das desconfianças da babá. É um conto interessante que não deixa de parecer digno de um romance.
Concluindo, “Praça de Londres” é um conjunto de belíssimos contos de uma escritora que nos mostra cada vez se deslocar melhor no caminho da metáfora e das emoções humanas, caminho que muito bem tem percorrido desde 1980 quando publicou “O Dia dos Prodígios”, ainda que por vezes isso faça com que nem todos a entendam. É uma pena.

Veredicto: 18/20

domingo, 8 de junho de 2008

A Sombra do Caçador de Charles Laughton

Já foi há algum tempo que fui ao Teatro do Campo Alegre ver este filme, mas tempo para pensar em críticas é coisa que me tem faltado bastante nos últimos tempos, como possivelmente terão reparado. No entanto, prometi a mim mesmo que iria pensar neste filme, em breve. Este é o dia.



O único filme realizado pelo actor Charles Laughton, "Night Of The Hunter- A Sombra do Caçador", baseado no romance homonimo de Davis Grubb, foi muito mal recebido quando estreou, em 1955, pela crítica e pelo público.
Trata-se da história (Por sinal verídica.) de Harry Powell, um suposto pregador, que tem como ocupação casar com viúvas, ficar-lhes com o dinheiro e matá-las.
No entanto, é preso, e na prisão conhece Ben Harper, preso e condenado á forca por ter assassinado dois homens num assalto a um banco. Convencido de que a família saberá onde está esse dinheiro, Powell aproxima-se da viuva, Willa, e dos dois filhos, John e Pearl. Acaba por casar com ela, mas cedo percebe que se alguém sabe onde está escondido o dinheiro roubado, essa pessoa é John, o filho mais velho.
A relação que existe entre ele a mais recente mulher ganha contornos bizarros: ele convence-a que foi ela a razão que levou á morte de Ben, leva-a a discursos fanáticos sobre Deus, e nunca chega a ter sexo com ela, dizendo que o sexo é procriação e que eles não devem gerar mais uma criança, mas sim criar as duas que ela já tem.
Acho que se torna fácil perceber porque em 1955 ninguém queria ver este filme: na realidade, há um cinismo e uma falsidade intimamente relacionados com a religião e com as convenções sociais que pôr em causa não era opção, até há pouco tempo.




Ao longo de todo o filme vamos vendo diferentes leituras da sexualidade reprimida das mulheres, da sua submissão, da perversão de um pregador que mata sempre com os olhos postos em deus, e de uma sociedade absolutamente reaccionária e sensasionalista, do quão tudo é manipulado pela igreja e por um suposto deus.
Aparte de uma análise social assinalável, o filme é também muito estético, filmado a preto-e-branco (Na altura já existia o filme a cores.), com planos simbolistas, numa influencia clara do cinema do Expressionismo Alemão e da corrente do Film-Noir.
Destaque para as interpretações de Robert Mitchum ("Out Of The Past" de Jacques Tourneur.), Shelley Winters ("Lolita" de Kubrick) e Lillian Gish ("Birth Of a Nation" de DW Griffith.), além da memorável cena das tatuagens nas mãos com LOVE e HATE, em que o pregador conta a história da victoria de deus (LOVE) sobre o diabo (HATE).
Muito bom, mesmo.


Veredicto: 19/20

sábado, 24 de maio de 2008

A Eternidade e o Desejo de Inês Pedrosa

SAUDADES DO BRASIL EM PORTUGAL

De Inês Pedrosa já nos chegaram romances tão bons e tão humanos como “Nas Tuas Mãos” ou “Fazes-me Falta”. E este último demarca-se não só pela humanidade e sobriedade do próprio texto, como pela aclamação por parte do público, tendo Marcelo Rebelo de Sousa afirmado que este seria “inquestionavelmente o melhor romance de Inês Pedrosa”. Tudo isto é um problema, porque o próximo romance parece já estar condenado ao fracasso.
E é “A Eternidade e o Desejo” um fracasso? Não. Na realidade, este é um texto mais rápido que qualquer um dos outros (Em particular do que “A Instrução dos Amantes” em que uma tendência barroca acaba por assombrar a história.), sem, por isso, perder qualidade.

A origem está em 2005 na viagem do percurso do Padre António Vieira pelo Brasil, na qual, a convite do Centro Nacional de Cultura, Inês Pedrosa participou. Foi esta viagem (Que está presente no romance.) que inspirou a escritora para, finalmente, nos dar o seu novo romance, seis anos depois do primeiro.
Clara, uma professora universitária portuguesa cega, viaja ao Brasil na companhia do seu amigo Sebastião, o Brasil onde, além de ter ficado cega, perdeu o grande amor da sua vida. Precisamente um professor universitário brasileiro especialista em António Vieira. E foi quando foi ter com ele ao Brasil que foi baleada e perdeu a visão.
No seu retorno, junta-se á viagem do percurso do Padre António Vieira, cujas palavras a guiam pela descoberta do sentido da vida. É ao longo deste percurso que a sua relação com Sebastião, que está apaixonado por ela se vai destruindo lentamente, e que Clara percebe que é no Brasil, mais propriamente na Bahia que tem que ficar.


É aqui que o romance mais peca: de repente, é como se Portugal fosse só defeitos e o Brasil fosse a terra da virtude. É um fanatismo um pouco incompreensível: eu reconheço que Portugal é de facto um país deplorável em muitos aspectos, mas não é como se o Brasil fosse tão perfeito assim: afinal, se os portugueses não sabem rir, os brasileiros não sabem chorar, que também faz falta.
Em tudo o resto, nunca se consegue duvidar da veracidade destes personagens, dos seus sentimentos e das suas reacções.
É uma leitura absolutamente recomendável, aparte da capa que resulta mesmo muito mal (Parece um livro técnico.).

Veredicto: 19/20

domingo, 11 de maio de 2008

A Naifa: Uma Inocente Inclinação Para o Mal

ESTA POP QUE TEM FADO

Mesmo que os A Naifa fossem uma banda péssima, havia sempre que lhes dar crédito por uma coisa: por arriscarem muito mais do que o comum das bandas portuguesas.
Isto de juntar a pop com o fado num país de puristas, onde alguns fadistas mais inovadores como Mísia ou Cristina Branco já são rotuladas de não-fadistas, é algo que não lembraria a alguém que goste de jogar pelo seguro.
No entanto, há que dizer que a esta junção pouco segura, há que acrescentar que foi bem-sucedida: os Naifa são uma das melhores bandas portuguesas da actualidade.
Depois da estreia com “Canções Subterrâneas”, chega “Três Minutos Antes da Maré Encher”, um álbum que pontuava em relação ao primeiro por uma ainda maior profundidade, e por um muito maior á-vontade nas movimentações pouco ortodoxas que os definem.


Em 2008, é a vez de “Uma Inocente Inclinação Para o Mal”.
O álbum abre com "Um Feitio de Rainha", um tema mais folclórico que fadista, até na letra que, apesar de não se poupar a análises sociais do nosso pequeno país, percorre também um caminho mais popular. Isto não é pejorativo. É um apontamento. A verdade é que "Feitio de Rainha" é uma muito boa canção. Ainda que não seja tão boa como "Filha de Duas Mães", que se segue, num ritmo frenético que quase podíamos aplidar de futurista; ou como "Na Página Seguinte", canção tristíssima um pouco a fazer lembrar a letra de "Fé", do álbum anterior, mas desta vez com um texto mais fatalista.


"Esta Depressão que me Anima" é possivelmente a melhor performace de Mitó, a vocalista, uma vez que consegue uma profundidade tão forte como delicada. Isto para não referir a letra, como todas escrita por Maria Rodrigues Teixeira, que prima pela ironia e pela subtileza.
Outros temas de referência sao "Ferro de Engomar", impressionante, com um toque quase de flamenco. "Dona de Muitas Casas" é também interessante pela junção da letra com a música.
A lentidão de "O Ar Cansado dos Meus Vestidos" marca os mintuos mais depressivos do álbum, ao contrário de "Pequenos Romances", que se destaca pela tonalidade expedita com que Mitó diz que se descartou do amor.
Resultado final: "Uma Inocente Inclinação Para o Mal" não desilude definitivamente. Aliás, é um álbum que parece ir mais a fundo no que toca ás raízes (Os temas mais folclóricos como o referido "Feitio de Rainha" ou "Nas Tuas Mãos Vazias".), o que só mostra que o "nada temer" é uma boa filosofia.
Esta nova série de canções termina com "Apanhada a Roubar", um pouco a lembrar uma espécie de fado malandro, e também um tema mais minimalista e pouco exaltado, "uma ligeira dor de cabeça", e um final excelente.
Um destaque para a direcção de arte, belíssima, em especial a capa, a fazer lembrar trabalhos inciais ("A bispalhada".) da artista Isabel de Sá.


Veredicto: 18/20

sexta-feira, 9 de maio de 2008

A Hero Never Dies de Johnnie To

BORDERLINE CASE

Se houvesse um daqueles inquéritos estúpidos sobre cinema em que a pergunta fosse qual era o filme mais tenso que já vimos na vida, provavelmente, eu responderia que era “A Hero Never Dies” de Johnnie To.
Isto porque de facto, a característica que mais ressalta á vista do espectador é que todo o filme se desenrola numa atmosfera muito borderline, quase demasiado. O conceito de uma situação de fronteira, de uma situação-limite é certamente muito familiar ao cinema, á literatura, e á arte em geral. Mas, neste filme, todas as situações parecem ser de fronteira.
E, se por vezes, isto é uma qualidade, por vezes é um excesso, e logo, um erro.

Mas sejamos específicos: os primeiros e arrastadíssimos momentos do filme, que parecem ser o início da história, são, na realidade, uma contextualização. Vemos pela primeira vez Jack e Martin, dois chefes de dois gangs rivais que defendem importantes homens de negócios, rivais, claro. E se percebemos que estão em sintonia no que toca a competência e a ferocidade, também percebemos que o choque, além de inevitável, será um momento intenso. E é. Quando este derradeiro confronto se dá, num motel, To sabe como fazê-lo em termos de ritmo, de realização, de encenação, de aspecto visual, só não sabe fazê-lo no que toca a tempo. Trocado por miúdos: esta sequência é o verdadeiro início do filme. É um momento de verdadeira e justificada tensão, mas, para início de filme, é demasiado longo, e, em vez de parecer um começo, parece um final.
A história desenrola-se a partir daqui. Há um realce aos papéis das mulheres destes dois homens, que se revelam verdadeiras heroínas, e ainda que tenham caminhos opostos, há o fim em comum.
E este fim há-de ser o impulso para o verdadeiro clímax do filme, que não é, como poderia parecer, a cena do motel.
Há que referir a forma como To retrata os homens de negócios, grandes negócios da China, literalmente, em que vale tudo, de sangue a violência, e, principalmente, a traição. E da traição, vem o passo mais lógico: a vingança por parte de quem é traído.
Espremido tudo, há os dois pólos de qualidade no filme: a parte má passa pelo arrastamento de várias cenas que chegam a ser irrealistas (A cena dos copos de vinho, ou no motel, onde todas as pessoas são baleadas no mesmo lugar- abaixo do ombro.); e por outro lado, a parte boa que passa pela humanidade e pela força emotiva tremenda que To consegue colocar nos personagens, muito também pelo excelente desempenho dos actores e das actrizes.
Antes de terminar, gostava de dizer que acho uma excelente ideia a reabertura do Cinema da Trindade, ainda por cima para passar filmes do Indie Lisboa. Só lamento que seja apenas por oito dias. É uma pena que não se utilizem aquelas duas salas para passar bons filmes o ano todo.

Veredicto: 17/20

terça-feira, 29 de abril de 2008

Control de Anton Corbijn

RETRATO EM BRANCO E PRETO
Como fã que sou dos Joy Division, nunca poderia ter feito um comentário a "Control", primeira incursão no cinema do fotógrafo holandês Anton Corbijn, sem ter visto filme várias vezes.
Não é para este artista nada estranha a opção de fazer um biopic de Ian Curtis, uma vez que Corbijn é o realizador do vídeo de "Atmosphere", além de outros, dos quais os mais famosos serão "Personal Jesus" dos Depeche Mode e "Heart-Shaped Box" dos Nirvana.







E se já fotografou Bjork, os Arcade Fire, PJ Harvey, Jodie Foster, Kate Bush, Naomi Campbell, Massive Attack, Nick Cave ou os Skunk Anansie, não terá sido por ser mau fotógrafo. Pelo contrário. Corbijn tem uma forma de encenar as imagens muito específica, em que o que poderia ser um desastre acaba por resultar muito bem. Esta formação em fotografia, e a própria estética pessoal de Corbijn acabam por transparecer no filme. Por exemplo, e de forma mais imediata, pelo facto do filme ser a preto e branco: depois da "descoberta" das cores, foi muito mais raro o realizador que continuou a usar o preto e branco do que o fotógrafo. E se a fotografia a preto e branco nunca passa de moda, porque tem que passar de moda o filme a preto e branco? Não tem, pois não?
Quando o filme começa, com um monólogo de Ian Curtis, é muito clara a influência da fotografia na escolha dos planos, na fotogenia e na qualidade gráfica das imagens e dos cenários.
Sam Riley, que já havia sido Ian Curtis em "24 Hour Party People", volta a vestir a pele do mito do rock, desta vez num filme onde é ele o centro. Não se trata de um filme sobre os Joy Division. "Control" é o biopic de Ian Curtis, sem dúvida nenhuma. Os Joy Division fazem parte do filme porque fizeram parte da vida de Curtis.
A primeira vez que encontramos este personagem, ele é um adolescente que fuma imenso, ouve David Bowie e é escritor. É por aqui, num concerto do rei do Glam Rock que Ian começa uma relação com Deborah Woodruff, na altura namorada de um amigo. Deborah, com quem casaria, pouco depois, quando ambos tinham 19 anos.
A entrada para os Warsaw, mais tarde Joy Division, o diagnóstico de epilepsia, o caso interminável com Annik Honoré, a ruptura com Deborah Curtis, a primeira tentativa de suicidio... tudo isto vai acontecendo, guiado pela música, principalmente a vinda do EP "An Ideal For Living" e do primeiro álbum, "Unknown Pleasures".



Corbijn perde por escamotear uma parte da biografia de Ian Curtis, ignorando o segundo álbum, "Closer", onde figuram letras mais ligadas ás situações-limite da vida do vocalista/poeta. "24 Hours" é escrito num momento em que nunca podia ter sido escrito, por exemplo.
Em termos de ritmo, o filme está perfeito. Corbijn poderia ter feito um grande músical em desagradável estética á lá "Música no Coração", podia ter cantado em vez de ter contado a vida de Curtis, e não o faz. Nesse aspecto, foi bastante ponderado e tomou as opções certas: as canções surgem não em vez de diálogos, mas mais como didascálias indispensáveis, e ainda consegue passar pelos pontos mais significativos da discografia dos Joy Division: desde "She´s Lost Control" a "Love Will Tear Us Apart" a "Atmosphere", etc, etc, etc.
Além do desempenho excelente de Sam Riley (Que prova que não é só a cara exactamente igual á de Ian Curtis.), Samantha Morton e Alexandra Maria Lara, nos papéis das mulheres da vida de Curtis, respectivamente Deborah Curtis e Annik Honoré, também estão muito bem.
Num tempo em que é muito difícil fazer um bom biopic, afinal, Anton Corbijn saíu-se muito bem. Filmou a vida dessa lenda que é o grande Ian Curtis sem querer exaltá-lo, preocupando-se em fazer um retrato verosímil e adequado da sua pessoa. Ainda por cima, fê-lo de uma forma muito estética. Acho que não se podia pedir mais. Partindo, pelo menos, do princípio de que o filme não poderia trazer Ian Curtis de volta.
Veredicto: 20/20

domingo, 27 de abril de 2008

Portishead: Third

LONGOS DIAS TÊM 11 ANOS



"Esteja alerta para a regra dos três
O que você dá retornará para você
Você só ganha aquilo que você merece
Essa lição você tem que aprender..."
é assim mesmo, com uma voz foleira a falar português com sotaque do Brasil que abre o terceiro álbum de originais dos Portishead, quando o segundo, homónimo, comemora 11 anos de lançamento. Estes 11 anos são muito tempo, e se os Portishead não fossem uma banda de culto, com um público leal, certamente nem valeria a pena publicar "Third". Felizmente, não é o caso: ainda que impacientes, soubemos esperar e receber a mais recente colecção do trio de Bristol.
No entanto, Beth Gibbons, Geoff Barrow e Adrian Utley não são estúpidos e sabiam que ao fim de tanto tempo, o melhor seria mesmo ter uma boa desculpa: nada melhor do que uma radical mudança de sonoridade, ainda que se mantenham sempre fieis á sua própria identidade musical.





Assim sendo, quando começamos a ouvir o som ecoante de "Silence" (originalmente "Wicca".), repetindo-se sempre a mesma sequencia ritmica, percebemos que já não estamos a ouvir a mesma coisa, e ao mesmo tempo estamos: ainda é a voz de Beth Gibbons, sempre dolorosa e agressiva, os ritmos ácidos e psicadélicos, a complexidade instrumental bem construída, enfim, os Portishead em 2008, por assim dizer.
Se há alguma canção mais parecida aos albuns anteriores, ela será "We Carry On" (originalmente "Peaches".), e esta aproximação será pura coincidência.



Tudo o resto é absolutamente inédito em Portishead: os ambientes eléctricos/electrónicos próprios da música downtempo, mas uma construção instrumental a lembrar a rock gótico dos Depeche Mode, dos Dead Can Dance, dos The Cure ou dos Bauhaus, ainda que a voz seja a mesma de sempre, e sempre excelente, mas isso é óbvio.
Beth Gibbons tem também um papel mais interventivo, a nível de produção e de instrumentos: certamente que a gravação do seu álbum "Out Of Season" não lhe terá passado ao lado. As suas letras surgem mais politizadas, mas sem perder as ideias amargosas ou niilistas a que fomos habituados no passado.
De todas as faixas, "Machine Gun" (Em que a beat de bateria electrónica parece, efectivamente, imitar uma metralhadora.) é provavelmente a mais bizarra, talvez por isso tenha sido escolhida para single de avanço. A par com esta, destacam-se "Nylon Smile", a tal amargura niilista, "We Carry On", repetição esquizofrénica da mesma tristeza, "Plastic", numa sonoridade fluida a lembrar uma electrónica downtempo quase Massive Attack e "Magic Doors", uma das mais interessantes em termos de esquema, e das que suscita mesmo a vontade de ver ao vivo.
A questão do transporte das canções para o palco é também interessante. A agressividade e multiplicidade/simultaniedade de sons de "Dummy" e a estética barroca de "Portishead" pareciam ser verdadeiros desafios de palco. "Third" é mais simples e parece mais próximo ao que se ouve da banda, ao vivo.
Enfim, da mesma forma que o mar é sempre o mar, Portishead é sempre Portishead. E garanto que valeu a pena todo este tempo de espera. Se Agustina me permite o roubo e a alteração, "longos dias têm 11 anos", mas quando no final há um álbum assim, não há problema.


Veredicto: 19/20