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terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Armas brancas


11
Entre cantares (solitários, do povo)
e discursos exacerbados de políticos
a terra trabalha o seu fermento
lêveda ainda das bocas
colectivas.
Cada semana absorve-te e resolve-se
nas marés vivas dum corpo facetado.
A economia é um pilar estilístico.
Os homens de teatro imitam os tribunos
e as noções de equipamento
estendem-se à arte dos trágicos.
O sexo, dizes, não se determina.
Antes de senso
Visconti declarou
a terra toda que trabalha
treme.
Pasolini foi assassinado pelos seus próprios
mitos.
Não era tempo ainda da mão solidária
figurar entre os ciclones da Roda que desanda
inexoravelmente
sobre o campo dos mártires sem causa.
Virgens de uma razão alucinada
os seus heróis dançavam por entre uma flora
incandescente a meio termo do néon
a um passo da vida pitoresca.
As telas de cinema só se compadecem
com a maquinaria hirsuta e caricatural
dos enormes charutos do academismo
e das cosmopolitas capitais do Falo.
Esse jogo, jogava camuflado.
Nos seus trabalhos diários, a terra
continua a tremer por cima dos seus órfãos.
Proletários do sexo e de todo o mundo
uni-vos.

Armando Silva Carvalho
Armas brancas
1977, ed. Limiar
imagem: James Ensor

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Memorial Temporário #1


''A expropriação da realidade'', um texto meu sobre o tríptico ''Plot Point'' do realizador belga Nicolas Provost, aqui.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

O que aponto



1
Conversa muda...
A falada cessou, cessara.
Começou a muda, encadeada, sem presenças, solitá-
ria, gostosa, inteligente, reminiscente, recriada.
Ai, as mãos...
O pensamento, ou aquilo que durante os silêncios
connosco fala, evocava as mãos, regalava-se de não sei
que especiosos contactos!
Os que pouco antes se tinham falado, entendidos e
afectuosos, cautelosos...
Falariam, falavam... Mas o que deles mais deli-
cado e mais secreto falava eram as mãos... ligeiras,
tocando-se invisivelmente, buscando-se.
E ainda agora elas falavam, se tornavam lembra-
das! Carnais e etéreas. Irreais e ligadas!

Pois sim.
Mas não será o meu pensamento que tudo materia-
liza, ou inventa?
Impulsos, movimentos, transposições...
Que prolonga as ínfimas sensações, tais, que um
entendimento brusco e claro anularia?
Pensamento! Que necessidades as tuas, e que pra-
zeres! Reanimares e dares extensão a um quasi nada,
aparente...


2
Subtil, como um papel, uma pena, uma folhita de
árvore, um trapo, eu seja, ou fosse!
E não o sou?
Serena, prudente, desconfiada...
Sou.
Só a minha agastada, descolorida serenidade não
tem, não pode ter, nunca terá aquela mansidão, aquele
ar leve, indiferente, descansado, aquele poisar da doce
pena...
A minha serenidade é... e cada vez mais, daqui
para o resto, para o meu sempre, uma serenidade de
decadência.


3
Belo homem, arisco, violento!
A fala seca, imodulada; o olhar claro; e uma agi-
tação, uma irregularidade, uma leonia!
Animal de presa.
Mas eu, a minha imaginação ou o meu corpo, eu,
tão fria!
Pessoa que nada ufana, nada agita, nem sequer
quebranta...
Mas isto percebendo, sofro, dá-me dor!
Espírito... trabalhas sempre, e talvez te contentes,
te iludas como um delicado.
Pobre! Mesquinho! Impotente!
Relojoeiro, que te distrais e te ocupas com o isocro-
nismo e a finura das rosas, agulhas, pinças, lentes...


4
Pela orla marítima tranquila, tranquila, os namo-
rados, passageiros, despreocupados, de mãos dadas, ou
passadas pelas cintas, pelos ombros, chegados...
Os namorados, tão jovens! renovam não sei que
mitos.
Pela areia húmida, para o sul, para o norte...
Elas, tão finas e castas!
Tantas perspectivas...

Tarde amável, mas indistinta, do acaso, tirada sem
propósitos do calendário.
Velha... É velha a terra, a areia, tudo isto. Mais
eu!
Novos, e espirituais, só os namorados.


5
Eu cantava, havia de cantar...
Mas com que voz?
Falta-me a voz, e os temas.

Eu havia de cantar briosamente (se tivesse voz), o
amor!
Nunca um amor apoetado e correntio...
O amor! O êxtase, o arrebatamento! Ou talvez só
a ternura.

Sons de música...
É a telefonia das minhas vizinhas, das meninas boni-
tas.
São realmente bonitas.
Pois assim, ao som de uma valsa lânguida, de uma
valsa velha e excitante, eu havia de cantar, glosar, as
fantasias, os sonhos de dois jovens pré-amantes.

Havia de cantar?
Não!
Chorar, chorar!
O meu desejo verdadeiro é de chorar, por querer
cantar sem poder.

Irene Lisboa
in «Presença» nº 50
desenho de Robbert Van Wynendaele

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

o gafanhoto andrajoso

De certo ponto de vista, a pintura sofreu, desde os Egípcios e os Greco-Romanos, várias evoluções mas poucas revoluções. Quando a obra de Giotto experimenta nervosamente a perspectiva, sabemos que uma revolução se avizinha mas, ainda antes do Renascimento, essa evolução seria concretizada não por italianos, mas pelo grupo de pintores ligados à chamada Escola de Brugge que hoje conhecemos como Primitivos Flamengos. Para estes pintores, o domínio da perspectiva foi pouco mais que um instrumento técnico para algo bem mais revolucionário, que foi a substituição do realismo pelo real. Mesmo nos frequentes temas religiosos, os trabalhos de Robert Campin/ Mestre de Flémalle, de Rogier Van Der Weyden ou de Jan Van Eyck, inauguram um senso do real, um elogio do quotidiano que mantém a mística em quadros pouco distanciados da realidade do dia-a-dia. Particulamente Jan Van Eyck, com o seu genial 'Casamento dos Arnolfini', virou costas à mitificação e trouxe a atenção sobre a dignidade e a complexidade do quotidiano.
Mas noutros trabalhos, aparentemente mais circunspectos, o pensamento de Van Eyck não se revela menos inovador. Os retratos individuais que fez apresentam-se-nos segundo uma tradição burguesa, mostram-nos pessoas que ora sabemos ora não sabemos quem são, mas que invariavelmente nos são mostradas como pessoas distintas. A partir dessa aparência, Van Eyck sabe manipular elementos e símbolos para uma compreensão do estatuto e ocupação da pessoa, por exemplo. O retrato individual de Giovanni di Nicolao Arnolfini mostra-nos precisamente isso _o traje escuro denuncia o homem abastado por exemplo (uma vez que só os muito ricos conseguiam pagar o dispendioso tecido escuro). Os fundos negros são diferentes daqueles que se popularizariam no Renascimento, em que o retratado surgia em frente de uma paisagem que aludia ao seu poder sobre determinado espaço. Nos retratos de Van Eyck os retratados dispensam a paisagem: têm o poder por si mesmos.
No entanto, os retratos individuais mais interessantes de Van Eyck terá pintado não chegaram aos dias de hoje. Os polémicos retratos de Isabel de Portugal ocupam um lugar especial no conjunto da obra de Van Eyck. Mais do que serem encomendas, eram uma missão diplomática.
Mudando-se de Lille (actualmente pertencente a França) para Brugge, Van Eyck passa a trabalhar para o corte de Filipe III, Duque de Borgonha, do Brabante e dos Países Baixos Borgonheses. O Duque preparava para o ano de 1428 as suas terceiras núpcias, com Isabel de Portugal, filha de D. João I. A viagem de Van Eyck a Lisboa teve portanto esse propósito _o de retratar Isabel, para que Filipe III pudesse ter uma ideia do aspecto físico da sua pretendente.
Seis séculos depois, restam-nos trabalhos de outros pintores, copiados ou pelo menos baseados nos originais de Van Eyck. Nos três, Isabel surge como uma mulher elegante, bem vestida, evidenciando luxo e requinte. Mas nos três, o que vemos é um rosto demasiado alto, um nariz desproporcionalmente protuberante, uns olhos pequenos de olhar conspícuo e um queixo aguçado que evidencia demasiado a boca.
 
 
 
Particularmente o retrato em que a infanta surge de três quartos (e de que temos apenas uma cópia feita na oficina de Van Der Weyden) denuncia uma espécie de sobrecompensação. Isabel parece uma espécie de gafanhoto andrajoso, a beleza diáfana das suas vestes, o brilho rigoroso dos véus parecem tentar compensar o seu rosto que tem algo de insecto. De um insecto sereno de sorriso contido que, apesar de tudo, indica uma mulher escorreita e submissa que conviria àquele início do século XV num casamento entre nobres. O mesmo acontece com o retrato em que Isabel surge quase de perfil (existente apenas uma cópia do século XV), plasticamente menos conseguido, mas igualmente rigoroso em mostrar as características físicas da infanta.


Num outro retrato (de que temos uma cópia coeva), metade de um díptico que, do outro lado, apresenta Filipe III, Isabel parece mais jovem e sorridente, mais virginal quase. Não tem o ar adulto e maduro dos retratos que a mostram até à cintura, mas continua envolvida numa série de véus luxuosos e minuciosamente decorados que, tapando-lhe o cabelo, também afogam o seu rosto numa profusão de ornamentos e decorações que a defendem não de parecer feia, mas de parecer apenas feia.
Não é de assumir que a forma verista como Van Eyck pinta Isabel a tenha prejudicado. Filipe III casaria efectivamente com ela, dando até origem à Ordem do Tosão de Ouro, para assinalar a união entre as duas cortes.
Passada a missão diplomática, fica acima de tudo o significado daqueles retratos. Se Jan Van Eyck e aqueles que reproduziram os seus retratos, foram rigorosos na representação do real, sabemo-lo graças aos retratos de Isabel. Seria de esperar que, naquela missão diplomática, para viabilizar um casamento entre dois desconhecidos, Jan tivesse embelezado a infanta, que tivesse disfarçado os seus defeitos. Mas o pintor não fez isto. Ele mostra uma Isabel digna e elegante, mas não ignora a realidade: o seu rosto tem delicadeza mas é tosco e desproporcional. Ela tem outras qualidades, de gosto, por exemplo, é certamente de uma corte abastada, mas a beleza física natural não a contemplou.
Van Eyck não abdica do real, não o força, ainda que o teatralize. E essa foi a verdadeira revolução que representam os Primitivos Flamengos. O domínio da perspectiva que Giotto inicia em Itália não tem grande interesse por si só. O grande interesse da perspectiva é que a saída do bidimensional para o tridimensional prevê uma maior aproximação ao real. E essa aproximação dá-se na Flandres muito mais do que em Itália, concretiza-se esplendidamente no trabalho de Van Eyck, mais do que noutro qualquer.
A prova disso está nos retratos de Isabel de Portugal, que recusam manipular a verdade, preferem o gafanhoto andrajoso que Filipe haveria de conhecer à princesa endeusada que nunca existiu.

sábado, 27 de julho de 2013

OFFICE Kersten Geers & David van Severen (parte 2)

Jogos de Redefinição


pórtico

The earliest experience of art must have been that it was incantatory, magical; art was an instrument of ritual. (...) The earliest theory of art, that of the Greek philosophers, proposed that art was mimesis, imitation of reality. [SONTAG: 2009, 3]
com este apontamento inicia Susan Sontag um dos seus ensaios mais emblemáticos, 'Against Interpretation'. Colocando a problemática da arte enquanto elemento mágico versus arte enquanto imitação da vida, Sontag segue referindo Platão: Since he considered ordinary material things as themselves mimetic objects, imitations of trascendent forms or structures, even the best painting of a bed would be only an ''imitation of an imitation'' [SONTAG: 2009,3]
Esta ideia servirá para problematizar a arte figurativa, logo à partida, mas também será útil ao analisar, como Sontag argumenta no mesmo ensaio, a arte abstracta. A Arquitectura parece ficar de fora desta equação. Enquanto toda a Pintura e toda a Escultura provêm da necessidade figurativa, que encontramos desde a Arte Rupestre, a Arquitectura nunca teve essa função mimética: trata-se de um contentor de vida, não de uma imitação dela. Mas se atentarmos na ideia de Platão de que tudo o que existe concretamente é uma imitação de elementos transcendentes, concluiremos que a Arquitectura, não sendo uma ''imitação de uma imitação'', é pelo menos a primeira dessas imitações, a que opera a transição entre o transcendente e o real.
Tentar encontrar em qualquer obra de Arquitectura os elementos que imita é uma tarefa virtualmente impossível, talvez excepto ao próprio arquitecto. Por outro lado, qualquer obra de arte se torna independente da visão do artista a partir do momento em que deixa a esfera privada. Caberá ao observador supor, interpretar e propor uma ou várias leituras de uma obra, todas elas até certo ponto válidas.


1. primitivos flamengos e flamengos contemporâneos

Uma observação da História da cultura europeia mostrará que, artisticamente, a Flandres, território hoje em parte correspondente à Bélgica, conheceu o seu primeiro apogeu entre o final do séc. XIV e meados do século XV. No resto da Europa a pintura tardo-gótica conquistava o domínio da perspectiva na Pintura, mas mantinha a mesma tradição temática, quase sempre religiosa e nitidamente fantasiada, idealizada para aludir ao carácter místico das cenas representadas.
Os Primitivos Flamengos, como ficariam conhecidos os pintores tardo-góticos daquela região, muitos ensinados pela chamada Escola de Brugge, diferenciavam-se dos restantes artistas europeus porque não basearam aquele [naturalismo] na arte heróica e idealizada da Antiguidade, mas sim na observação do mundo real. Aceitaram as particularidades da natureza imperfeita e, ao pintar, reproduziram-nas com uma fidelidade meticulosa [POTTERTON: 1998,87].
Mais resumida será a descrição que Vasco Graça Moura nos deixa num poema sobre estes pintores: para os primitivos a/ felicidade estava na minúcia/ da transcrição do real:/(...)/ (...) e a/ alegria era a serena confiança/ de se estar no mundo, podendo// copiar estas aparências [MOURA: 1998,18]


De todos os Primitivos Flamengos, talvez o mais reconhecido seja Jan Van Eyck, autor do famoso Casamento dos Arnolfini. Trata-se de uma pintura onde encontramos as minúcias de que fala Graça Moura, a atenção ao detalhe, a obsessiva imitação do real. Mas nada é assim tão óbvio: ainda não se chegou a um consenso sobre qual verdadeiramente é o momento registado: trata-se de um casamento, de uma recriação simbólica do casamento, ou de um apelo à fertilidade, encomendado por um casal que não conseguia ter filhos? Mais ainda, uma observação atenta da pintura mostra-nos que na preparação desta cena, tudo é símbolo: as laranjas e a roupa escura são sinais de riqueza, a posição dos corpos mostra o papel social de cada um dos noivos, a colocação dos tamancos aponta para o quotidiano de um e de outro, o espelho reflecte as duas testemunhas do momento.
De repente, a imitação minuciosa do real nos Primitivos Flamengos torna-se um desafio mais complexo: a realidade é manipulada e teatralizada ao ponto de quase parecer ficcionada. Ao primeiro olhar tem um esplendor simples e luminoso, mas logo nos deixa desconcertados com a carga simbólica. E talvez percamos a convicção na imitação do real, em detrimento da experimentação sobre esse real.
Entre os Primtivos Flamengos e os OFFICE Kersten Geers David Van Severen, estão seis séculos de diferença, mas também um território comum, estão várias reestruturações políticas e geográficas, mas também uma herança cultural nunca abandonada. Que se encontre no trabalho destes arquitectos uma série de pontos comuns com o trabalho dos primeiros grandes artistas flamengos não será, portanto, inusitado. Mas não parecerá, ao mesmo tempo, o exercício mais evidente.
Na tendência regular, transparente, geometrizada e repetitiva dos edifícios dos Office KGDVS haverá lugar para alguma reminiscência da estética abundante, detalhada, minuciosa e plural que caracteriza muita da pintura tardo-gótica da Flandres? Enquanto o nosso olhar se prender com o domínio estético mais imediato dos edifícios destes arquitectos, certamente não encontraremos, mas se tivermos em conta que na obra desta firma what you see is not so much what you see as what you sense [OCKMAN: 2012, 18], quando nos movemos para lá do aspecto físico dos edifícios e os entendemos enquanto elementos geradores de uma determinada percepção do mundo, ou, na óptica de Platão, enquanto imitações de qualquer coisa inconcreta, as semelhanças entre os Primitivos Flamengos e estes flamengos contemporâneos começam a surgir-nos.


Um dos trabalhos mais interessantes para observar o pensamento de Kersten Geers e David Van Severen será a Villa Schor, que é, ao mesmo tempo, um dos seus trabalhos mais discretos a nível de imagem.
O objectivo da obra era aumentar uma casa de traçado neoclássico no limite de uma zona florestal de Bruxelas. A intervenção dos Office KGDVS passa pela criação de uma plataforma sob a casa original, que fica erguida ao lado esquerdo daquilo que é, agora, o seu palco. O branco das paredes exteriores da casa é prolongado pela frente em vidro e metal do acrescento que se distingue da fachada original, ainda que a integre. Tanto o posicionamento da plataforma face à casa como a solução dos materiais elevam, fisicamente e simbolicamente o edifício original, ostentam-no: ele representa uma realidade, neste caso, um tempo, e o novo elemento demarca-se dele para o elevar, por um lado, e por outro, está consciente de que a sua presença também o altera, confere-lhe uma nova leitura. Mais impressionante, no entanto, que a solução da fachada é o desenvolvimento do aumento em planta.  A maior parte do lote passa a estar ocupada por um edificado rectangular, com oito divisões, todas elas definidas por painéis de vidro e metal (à semelhança da fachada). O resultado é que cada divisão tem visibilidade sobre todas as outras.


De certa forma, o que os Office KGDVS encontram na Villa Schor é uma outra maneira de encenar o real. Nos Primitivos Flamengos, encontramos a escolha e colocação de vários elementos simbólicos, que acabavam por tornar a imagem representada numa espécie de metáfora que partia e sempre chegava ao quotidiano. Uma vez que a Arquitectura não lida com imagens estáticas mas com uma série de movimentos _a vida, no fundo _, não pode haver aqui o domínio sobre a imagem que há na Pintura. Assim, a maneira de encenar o real é colocá-lo verdadeiramente em cena. Da mesma forma que a elevação física da casa original sobre a plataforma é uma maneira de evidenciar uma realidade _a da passagem do tempo _, os painéis de vidro que abrem em volta dos compartimentos vários campos visuais, são uma forma de ostentar o quotidiano. O símbolo deixa de ser crucial para representar a realidade, porque o observador não está perante uma representação, está incluído no cenário e mais facilmente o entenderá.
Seja como for, a transparência de todo o acrescento da Villa Schor, que compreende os espaços mais devassados de uma casa (escritório, sala de jantar, cozinha, sala de estar), aponta para o prazer da realidade e do quotidiano e incita à apreciação deles. A realidade ganha assim a importância e a dignidade que lhes deram os Primitivos Flamengos quando recusaram o 'excesso heróico' da pintura que os precedia.


Mais ou menos contemporâneo de Jan van Eyck é Robert Campin, pintor a quem são atribuídas ao pintor desconhecido designado como Mestre de Flémalle. Uma das obras mais significativas deste pintor nascido em Tournai será a sua Madona:  Neste quadro, representa-se a Virgem como uma roliça e simples rapariga flamenga que alimenta o seu bebé. A pantalha de vime, por detrás da sua cabeça, actua visualmente como uma auréola. No banco, há uns leões esculpidos, os mesmos com que tradicionalmente se decorava o trono onde Salomão sentou a sua mãe Betsabé, simbologia que equivale a predizer a Coroação de Maria. Do lado de fora da janela, vê-se uma alta igreja gótica no meio dos edifícios. Na parte direita, acrescentou-se à pintura original a representação de um armário e de um cálice para realçar o facto de que, apesar do interior simples e doméstico, não se tratava de uma mãe e de um filho vulgares [POTTERTON: 1998,90]. Esta descrição reforça o papel redefinidor que o detalhe, enquanto símbolo, tem na Pintura dos Primitivos Flamengos. É importante compreender como aquela encenação do real de que se falou acima não é um mero gesto estilístico: nela, a cena quotidiana ascende à representação mística, e a cena mística desce à realidade. Este pode até ser um gesto algo revolucionário, o de trazer o sacro para o quotidiano, principalmente tendo em conta que estamos entre os séculos XIV e XV. É para anular essa distância entre os homens e a divindade que o pintor, neste caso Robert Campin, manipula escrupulosamente a composição das suas pinturas, experimenta os limites da realidade e constrói uma poderosa ponte entre dois mundos aparentemente opostos.


Uma atitude assim pressupõe uma postura: a de que a realidade não é um elemento rígido que limita, mas sim uma matéria diversificada que pode ser trabalhada de forma a obter determinado resultado.
No seu projecto para a loja informática de Tielt (Flandres Ocidental), que inclui ainda a casa dos proprietários da loja, os Office KGDVS optam por criar dois corpos paralelepipédicos semelhantes, que se enfrentam um ao outro através de um pátio exterior. Exteriormente, os volumes são construídos através de estruturas de ferro e paredes de tijolo, material frequentemente utilizado na construção na Bélgica. Sendo que a fachada do corpo de frente se eleva a partir do plano definido pelo muro que acompanha a rua, ela dá a impressão de não ter interrompido o muro para inserir a entrada para a loja, mas de apenas ter subido um segmento desse muro à altura de um piso. A entrada desenha uma diagonal em relação ao passeio, e é a partir dessa diagonal que os dois corpos vão organizar-se. Tanto os dois volumes como o pátio estão circundados por um muro branco, que se desenha e redesenha de área para área. Resulta daqui que, por exemplo, no piso térreo não haja muita visibilidade para o exterior, ao passo que no segundo piso, a maior parte dos compartimentos tem vista para o envolvente. As aberturas de luz em ambos os volumes estão localizadas de forma a que tenham visibilidade um sobre o outro, e ambos sobre o pátio, mas não para os lados.

















 Um dos aspectos mais discutidos na obra dos Office KGDVS (como se pode confirmar lendo os ensaios na 2G nº 63, a eles dedicada) é a sua relação com o exterior, com a paisagem natural e construída da Flandres.
Esta paisagem é, de facto, a realidade, a contingência prévia que é impossível remover para construir um novo edifício.
Mas a postura dos arquitectos parece ser um tanto semelhante à de Robert Campin na sua Madona. Em vez de se tornar uma entidade limitativa que tem que ser ou regularmente escondida ou regularmente revelada, os Office KGDVS transformam essa realidade prévia num jogo de manipulações e experimentações. A relação entre edifício e envolvente ora se assume, ora é anulada. Não se trata apenas de tentar equiparar duas realidades distantes, como na pintura de Campin, mas sim de estabelecer um sistema de relações diversas com uma entidade inamovível.
A casa, situada no primeiro piso do volume da frente, abre num painel de vidro para o pátio, permitindo visibilidade ainda sobre todo o volume das traseiras. No entanto, o campo visual abre-se também sobre a paisagem (de um lado, um campo e arvoredo, e do a Felix D'Hoopstraat, uma uma transversal com casas baixas de arquitectura caracteristicamente belga), o que tem muito mais sentido para a casa do que para a loja. O primeiro piso do edifício nas traseiras tem uma série de oficinas, que abrem apenas para o pátio e para o volume da frente, não havendo tanta necessidade de aproximação entre o interior e a paisagem. Neste jogo, existe sempre lugar para a surpresa, para a redefinição da casa através da sua relação com os muros exteriores e essa surpresa será sempre resultado de uma experimentação. E é essa experimentação sobre o real que, em última análise, une mais fortemente artistas como Jan van Eyck e Robert Campin ao universo arquitectónico dos Office KGDVS.



2. para uma sensualidade arquitectónica


Voltando a 'Against Interpretation', nele, Susan Sontag afirma peremptoriamente: What we decidedly do not need now is further to assimilate Art into Thought, or (worse yet) Art into Culture [SONTAG, 2009:13]. Em contrapartida, Josep Maria Montaner, num texto em que define o ensaio e a sua importância para a formação de um pensamento crítico, afirma que o ensaio consiste numa reflexão aberta (...) que lhe permite orientar-se na direcção de uma concepção multidisciplinar do conhecimento humano, de uma compreensão da cultura e da arte como um todo, inter-relacionado (...) entrelaçando referências dos mais diversos campos da cultura: pintura, escultura, arquitectura, literatura e poesia, música, antropologia, religião e ciência [MONTANER: 2007,13].
Sontag, na sua defesa de uma erótica da arte em detrimento de uma hermenêutica, era talvez a pensadora necessária a um momento da cultura, especialmente americana, em que a crítica e a interpretação se sobrepunham à arte propriamente dita, usurpando-a. 'Against Interpretation' terá sido talvez extremista o suficiente para abanar os excessos do nosso tempo. Montaner, teórico europeu de Arquitectura, revela-se menos pessimista: não precisa de reclamar a divisão entre Arte e pensamento, ou entre Arte e cultura, acredita ainda que as relações entre estes podem ser encontradas sem que se incorra no risco da usurpação.
É importante entender-se a relação dos vários campos da cultura uns com os outros, porque ignorá-la é partir do princípio que cada uma delas surge independentemente do seu contexto sociocultural _e qualquer estudo de História de Arte, por superficial que seja, nos mostrará como isto é absurdo. Sontag estaria provavelmente consciente disto, tanto quanto estava consciente de que seria preciso negar esta realidade para travar as pretensões dos críticos que tentavam ser mais artistas que o próprio artista.
O binómio Arte-Pensamento é de mais importância ainda quando sabemos que as correntes do pensamento filosófico acabam por proliferar pelo pensamento quotidiano, e ainda que muitas vezes acabem por se vulgarizar de formas deturpadas, têm uma presença insuspeitada na grande maioria dos discursos e das posturas dos indivíduos.

L'idée de l'affection qu'éprouve le Corps humain, quand il est affecté d'une manière quelconque par les corps extérieurs, doit envelopper la nature du Corps humain et en même temps celle du corps extérieur [SPINOZA: 1965, 92] diz-nos o filósofo luso-holandês Baruch Spinoza na Proposição XVI da segunda parte da sua 'Ética', proposição que complemente com o seguinte corolário: Il suit de lá: 1º que l'Ame humaine perçoit, en même temps que la nature de son propre corps, celle d'un très grand nombre d'autres corps [SPINOZA: 1965,93]. A esta ideia sobre a multiplicidade de corpos e a sua afectação na Alma humana, acrescente-se uma outra, da Proposição XIX da mesma parte da 'Ética': L'Ame humaine ne connait le Corps humain lui-même et ne sait qu'il existe que par les idées des affections dont le Corps est affecté [SPINOZA: 1965,97].
A ideia de assumir a importância do corpo na alma, contrariando Descartes, bem como toda uma linha de pensamento teológico desde Agostinho de Hipona, tem sido um dos aspectos mais importantes para a consolidação da importância da 'Ética' de Spinoza.
E não será de todo forçado que se encontre na Arquitectura uma presença desta ideia do envolvimento de um corpo com outros corpos, de onde, não raro, resultam obras em que a unidade do edifício não passa só pela edificação em si, mas também pela sua integração no lugar.


O exemplo eventualmente mais badalado neste campo será a Casa Edgar Kaufmann de Frank Lloyd Wright, conhecida também por Casa da Cascata. Nesta casa, concluída em 1939, a agradável expressão do princípio do repouso onde a floresta, o riacho e a rocha e todos os elementos da estrutura são combinados de forma tão tranquila que não ouvimos rigorosamente nenhum ruído apesar de a música do riacho lá estar [PFEIFFER: 2004,53], o que se alcança, com talvez mais drama do que qualquer outra residência privada, é a colocação do homem em relação à natureza [PFEIFFER: 2004,53]. E se é verdade que, nesta obra, Wright consegue colocar os seus ocupantes numa íntima relação com o vale, as árvores, a folhagem e as plantas silvestres [PFEIFFER: 2004,53], conseguindo com uma eficácia ainda hoje impressionante que a glória do ambiente envolvente [seja] acentuada, trazida para dentro, e transformada num componente da vida diária [PFEIFFER: 2004,53], é igualmente verdade que tudo isto acontece devido através de um posicionamento físico estratégico do edificado sobre a morfologia do terreno, por um lado, e por uma perspicaz escolha dos pontos da casa onde janelas e painéis de vidro devem abrir sobre a paisagem natural. De facto, a natureza é trazida para dentro, mas mais num sentido psicológico e sensorial, a colocação do habitante perante a natureza é de convivência, mas não de envolvimento físico. Evidentemente, o trabalho de Wright representa um passo revolucionário para a Arquitectura, e sem ele, muitas das experiências da Arquitectura posterior teriam sido provavelmente mais lentas e menos eficientes.
Por um lado, poucas obras terão tido um impacto tão definitivo, se hoje é praticamente impossível conceber uma relação edifício/natureza sem considerar a Casa da Cascata, que para a referir, quer para a renegar. Por outro lado, o passo de Wright, por avançado que fosse, foi, como são todos, o primeiro de outros. Porque ainda que a Casa da Cascata garantisse uma integração psicológica do exterior natural no interior da casa, esta integração não vai até às últimas consequências. A casa tem ainda os seus limites físicos, coloca-se estrategicamente, mas não invade nem se deixa invadir fisicamente pela floresta. Levar a integração às últimas consequências seria pôr em prática a proposta de Baruch Spinoza sobre as afectações do corpo.



Tomemos o edifício construído como um corpo, e sabemos que a interferência de outros corpos de diferentes naturezas conferirá ao corpo original uma consciência de si mesmo. Originar-se assim, através desta afectação cuja definição última é a própria sensualidade, um todo coerente e pensado, cuja multiplicidade se torna numa espécie de força, de intensidade do edifício.
No trabalho dos Office KGDVS, encontramos um exemplo bastante peremptório desta experimentação na Villa em Buggenhout (Flandres Oriental). No rés-do-chão, a planta em cruz grega abriga, em áreas quadradas iguais, a entrada, um vestíbulo, a cozinha e um quarto-de-banho, sendo que o que define a cruz latina na planta é precisamente que ela seja rematada por quatro quadrados, até que todo o conjunto forme um quadrado por si só, sobre o qual assentará o primeiro piso, onde encontramos a sala-de-estar, os quartos, quartos-de-banho e um escritório.
O primeiro pormenor decisivo para a relação do espaço interior com o exterior é a resolução no rés-do-chão. Que a cruz grega seja rematada por quatro espaços cobertos mas sem paredes, acaba por explodir a casa para o exterior, ainda que de uma forma contida. O espaço interior, mais do que conviver com um espaço exterior, confunde-se com ele, o que é reforçado ainda pela cobertura assegurada pelo piso superior. Há uma afectação directa e quase fusional entre um e outro e, logo a partir daí, os Office KGDVS parecem estranhamente próximos de materializar a ideia spinoziana das afectações dos corpos.
O segundo elemento que ajuda a concretizar essa ideia é a opção de conter o edifício dentro de dois muros: um primeiro que sustenta o piso superior, prolongando o inferior; e um segundo muro que protege todo o conjunto. Entre um e outro, árvores, e alguma visibilidade sobre a planície flamenga. O ajardinamento, bastante 'livre' entra pela casa, já não só psicologicamente, como víamos em Wright. Ele faz parte da casa, é mais um compartimento, como o são os quartos ou a cozinha, tendo, inclusivamente, um lugar designado na trama regular que define a casa. Quando a casa é penetrada pela natureza exterior e irregular (apesar de planeada), a própria ortogonalidade da casa é realçada. A sua regularidade acentua-se, então, mas ao mesmo tempo é atenuada pela escolha dos materiais de revestimento do piso superior: sendo escuros, quase prolongam a vegetação que cobre o muro interior. O corpo do edificado, por assim dizer, transforma-se e é mais nítido ao encontrar a presença invicta da natureza, nesse contacto sensual que Spinoza previra.


A casa de fim-de-semana de Merchtem (Brabante Flamengo) é um trabalho que extenua ainda mais esta hipótese. É eventualmente uma das casas mais experimentais dos Office KGDVS e, por isso, uma das mais importantes para compreendermos o seu pensamento.
Ao longo de todo o lote, criam-se parcelas equivalentes, ocupadas umas com edificado, outras com áreas de jardim, exteriores. Se houvesse uma definição rígida dos limites das parcelas de edificado, estaríamos perante um caso de cheio/vazio, ou de interior/exterior, articuladas numa lógica intermitente e regular. Mas não é o caso. Nesta habitação, qualquer binómio que lide com oposições será insuficiente para explicar a lógica da organização dos espaços.
Mas a atitude dos Office KGDVS, aqui, parece ser a de precisamente rejeitar esses binómios: todo o edificado parece ter sido pensado para garantir uma fluidez ao longo de todo o lote. O exterior está hierarquicamente equiparado com o interior, os jardins e a piscina são mais um compartimento da casa em que as largas portas de vidro parecem só fazer sentido quando abertas. A natureza diferente dos espaços exteriores é uma especificidade, mas não mais do que um quarto sendo especificamente um quarto, ou uma cozinha sendo especificamente uma cozinha. Os exteriores quase funcionam como salas-de-estar, como qualquer espaço, eles, a um tempo, unem e separam os espaços da casa uns dos outros. Não são um anexo exterior, não são o jardim que completa o conceito algo suburbano de casa: são espaço também, são programa e desafio ao programa _pelo menos ao mais comum dos programas.


Esta interacção é provavelmente a mais bem conseguida de todo o conjunto da obra dos Office KGDVS. A relação entre os espaços é conseguida com tal naturalidade e tal fluidez, que dificilmente se encontraria correspondente arquitectónico mais próximo às proposições de Spinoza. A casa de Merchtem mostra como a relação dos espaços tem uma componente sensual, o que, inclusivamente, contrariará a ideia pré-concebida de que, por norma, a Arquitectura é um exercício frio e racional. E pode sê-lo, de facto, se isso não significar uma exclusão da utilização dos sentidos para criar espaços mais eficazes, como acontece aqui. Nesta casa, os Office KGDVS sabem aproveitar da melhor forma o pedido do cliente _trata-se de uma casa de férias, o que significa que a sua utilização não só será mais parcimoniosa e relaxada, como significa que uma série de contingências não entram, aqui, em causa: por exemplo, o problema da chuva, bastante intransigente durante as estações frias na Bélgica.
Interessará, por último, precisamente debruçarmo-nos um pouco nessa palavra: Bélgica. Não será inconsequente a nacionalidade de Kersten Geers e David Van Severen. Se pensarmos no que é a Bélgica nos dias de hoje, há algumas questões essenciais que encontramos, e uma delas é a da dualidade. Nos conflitos entre Valões e Flamengos, nas diferenças linguísticas, nas diferenças culturais, tudo na Bélgica parece só poder ser definido através do confronto. Ao mesmo tempo, Valónia e Flandres são duas regiões autónomas, não dois países; francês e neerlandês são duas línguas, ambas oficiais; e a cultura valã não é a flamenga, mas também não é a francesa, como a flamenga não é a valã, mas também não é a holandesa. Será talvez adequado dizer que daquele confronto, resulta apesar de tudo uma junção, pode recusar-se a fusão mas não se rejeita totalmente o conjunto, talvez porque, uma vez mais adaptando livremente o pensamento spinoziano, a relação de um corpo com outro aumenta o seu conhecimento de si mesmo.
E tudo isto parece existir também na obra dos Office KGDVS: confronto e junção, diferença e conjunto. E, uma vez mais, a casa de Merchtem, na sua lógica de interiores e exteriores que se prolongam e se confundem, parece ser exemplo máximo desta vertente do pensamento dos arquitectos.


coda

Será praticamente indiscutível a qualidade dos edifícios dos Office KGDVS. Sendo jovens arquitectos belgas com uma projecção já bastante considerável, é interessante ver como a sua concepção de Arquitectura não é, pelo menos num sentido mais directo e sumário, coincidente com a concepção da maioria dos arquitectos que, neste momento, ditam a 'moda' que, gostemos ou não, existe em todas as áreas. Não parecem rendidos à sedução tecnológica, antes parecem conscientes dos seus perigos; não caem no erro de ver a extravagância formal como maneira de reafirmar a Arquitectura enquanto Arte; os seus edifícios evidenciam-se e falam por si mesmos sem precisar de se demitir do espaço em que existem ou de anular esse mesmo espaço. O trabalho dos Office KGDVS regressa aos aspectos mais básicos: à importância da imagem, à ortogonalidade, à consciência do limite que representa uma parede, à relação com a paisagem urbana ou a paisagem natural, à escala, à ligação com a vida dos habitantes. E no entanto, é um trabalho profundamente experimental. E por isso, o pensamento que se revela a casa obra construída será sempre um dos aspectos mais imprescindíveis para definir o trabalho destes arquitectos. As leituras a que a obra se oferece são múltiplas e inesperadas, o que prova a sua complexidade. Tentar perceber onde se situa esta obra face ao problema do real (da vida quotidiana) e enquanto corpo (como o define Spinoza) são dois exemplos. E talvez por serem tão variadas as leituras que podemos deslindar cada vez que voltamos a olhar para um trabalho dos Office KGDVS, se torna precisamente tão apaixonante fazê-lo.


19.7.13 - 27.7.13



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*MONTANER, Josep Maria: Arquitectura e Crítica (tradução de Alicia Duarte Penna). Barcelona, Gustavo Gili, 2007
*MOURA, Vasco Graça: O Retrato de Francisca Matroco e Outros Poemas. Lisboa, Quetzal, 1998.
*OCKMAN, Joan: Radical Reticence. 2G, 63, 13-18, 2012
*PFEIFFER, Bruce Brooks: Frank Lloyd Wright - Construir para a Democracia (tradução de João Bernardo Paiva Boléo). Köln, Taschen, 2004.
*POTTERTON, Homan: National Gallery (Londres). Lisboa, Oceano Liarte, 1998.
*SONTAG, Susan: Against Interpretation and Other Essays. Londres, Penguin Books, 2009.
*SPINOZA, Baruch: Éthique (tradução latim-francês de Charles Apphun). Paris, Garnier Flammarion, 1965.

terça-feira, 23 de julho de 2013

[Tu tiens l’atlas ouvert sur tes genoux]


Tu tiens l’atlas ouvert sur tes genoux. 
On n’y voit pas ton voyage marqué. 
Or tu voudrais décorer d’un or doux 
Le nom des ports où tu t’es embarqué 

 Et dessiner les plus beaux épisodes 
Comme on faisait sur les cartes anciennes, 
Ta halte ici près de l’enfant qui brode, 
Là des dangers en terre non chrétienne. 

 Va, tu peux bien tracer au crayon bleu 
Ton aventure autour de l’univers; 
Mais ton sillage autrefois écumeux 
N’est pas resté dessiné sur la mer.

Marcel Thiry
L'enfant Prodigue
1927,ed. Thone
desenho de Paula Rego

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Amélie Nothomb: Acide Sulfurique

A EXTINÇÃO DA HUMANIDADE

O mundo da escritora belga francófona Amélie Nothomb é definitivamente o do confronto. Desde o seu primeiro romance, 'Hygiène de L'Assassin' (1992), e escrevendo ora num registo declaradamente autobiográfico como em 'Le Sabotage Amoureux' (1993) ou 'Stupeur et Tremblements' (1999), ora num registo ficcional imaginoso e efabulado como em 'Mercure' (1998) ou 'Barbe Bleu' (2012), Amélie aborda sempre a colisão entre dois seres normalmente opostos, cujas diferenças se entrelaçam em textos de um pendor filosófico em que a capacidade argumentativa se torna o centro da narrativa, mais importante, por vezes, do que os acontecimentos propriamente ditos. Aliás, ainda que as tramas dos romances de Nothomb sejam por norma bastante criativas, elas sustentam-se quase inteiramente nas ideias que permitem colocar em cena.

O romance que a escritora publicou em 2005, 'Acide Sulfurique' mantém-se dentro deste universo confrontacional, mas representa um desvio em relação à maioria dos romances de Nothomb. Isto porque, ao passo que em livros como os acima referidos o conflito essencial é entre duas pessoas, ou então entre um pequeno grupo de pessoas, 'Acide Sulfurique' aumenta violentamente a escala do confronto, ao mesmo tempo que, em certos aspectos, também remove um dos elementos desse conflito.
O que este romance nos propõe é uma espécie de fábula distópica, em que uma série de anónimos são raptados nas ruas (Uma referência ao Jardin des Plantes diz-nos que se tratará das ruas de Paris, ainda que possa não ser exclusivamente a capital francesa o lugar dos raptos.) e levados para um campo de concentração que é palco de um reality-show chamado 'Concentration'. No programa encontramos os prisioneiros, todos designados por um código com três letras e três números, e os guardas, os kapos, encarregues de os torturarem e de os encaminharem, dois por cada dia, até às câmaras de morte.
Quando a kapo Zdena se apaixona por uma das prisioneiras, Panonique, parece-nos que está encontrado o típico duelo nothombiano, entre uma vítima e o seu carrasco, levadas ao diálogo mais violento ou menos pela paixão, neste caso uma paixão proibida e não correspondida.
Mas Amélie Nothomb nunca perderia a noção de que uma ficção com uma sinopse assim compreende uma dura crítica à sociedade voyeurista de modelos inspirados no premonitório e preocupante romance de George Orwell, '1984'. Orwell imagina que no futuro, todos seríamos vigiados pelo Big Brother, e precisamente essa entidade emblemática se tornou título de um reality-show que experimentava vigiar continuamente um grupo de pessoas. Mas Amélie vai mais longe na sua dissertação. Ela imagina um programa que não aspira ser 'a novela da vida real' (Como em Portugal se apresentava o 'Big Brother'.) mas sim uma novela em que se assiste directamente à degradação de um grupo de pessoas durante os seus últimos dias. A escritora lança o mote logo na primeira frase do livro:

Vint le moment où la souffrance des autres ne leur suffit plus; il leur en fallut le spectacle.
(p.9)

com esta frase, Nothomb não só desmascara logo à partida a premissa de 'Acide Sulfurique', como define imediatamente qual será o centro do romance: o sofrimento. E, logo depois, a exploração desse sofrimento enquanto entretenimento para uma sociedade fria e desafectada que perde a noção da realidade e qualquer conceito de humanidade. 
Naquilo que este romance tem de futurista e de distópico, ele roça a ficção científica, pelo menos naquilo que encontramos, por exemplo, em Asmiov, sobre a derrota e a extinção da raça humana. Amélie Nothomb não extingue em 'Acide Sulfurique' a raça humana, mas extingue a humanidade, pelo menos enquanto sistema de valores e de sentimentos e de consciência.
E assim, entrelaçado com o duelo entre Zdena e Panonique, surge-nos um muito mais amplo conflito, que é o dos prisioneiros, representados por Panonique, e o público, elemento ausente que se faz representar apenas por números, os números das audiências. Entre uns e outros, surgem, por um lado, os 'organizadores' do programa, que o manipulam de maneira a manter o interesse do público; e os jornalistas, que se dividem entre os mais populistas e os pretensos intelectuais, que ora incitam ora analisam o programa, acabando por inclusivamente tentar boicotá-lo.
A relação entre Zdena e Panonique vai evoluindo ao ponto em que se começa a prever um esquema para permitir a fuga aos prisioneiros, enquanto as audiências vão subindo, atraídas pela figura simbólica de Panonique que se torna uma espécie de mártir que representa a pureza restante num mundo que se destrói a si mesmo.


Como se vê, não só em 'Acide Sulfurique' Amélie aumenta largamente a escala do conflito retratado, como o torna mais complexo. Esta mudança de escala torna-se, pelo menos na primeira parte do livro, de certa forma desconcertante. A escrita de Nothomb mantém todas as características que já encontramos desde 'Hygiène de l'Assassin', é uma escrita simples, directa mas poética e sensível, e essa escrita parece, no início, não estar plenamente adaptada à escala do romance. Os capítulos curtos soam como resumos de vários aspectos desta 'crónica' e demora um pouco até que a mão de Nothomb se nos mostre perfeitamente à-vontade na dimensão do romance que escreve. Quando isso acontece, efectivamente, reconhecemos em 'Acide Sulfurique' a pujança e a desenvoltura dos restantes romances da escritora belga, e facilmente nos deixamos arrastar. Ela leva-nos ao extremo das ideias mais violentas, apresenta com uma crueza quase glacial o desespero dos seus personagens, conduz-nos através da verdadeira perversão e da verdadeira maldade, que se torna mais avassaladora ainda quando temos noção de que nada disto parte de uma pessoa apenas, mas de uma multidão vaga, da qual, por assim dizer, todos fazemos parte.
'Acide Sulfurique' é, por isso, um romance que experimenta uma ideia, levando-a às últimas consequências e que resulta, enquanto peça artística, num texto intenso e dramático, que resiste à predicabilidade e à histeria que um assunto destes facilmente provocaria. 

segunda-feira, 15 de julho de 2013

primitivos flamengos
















para os primitivos a
felicidade estava na minúcia
da transcrição do real:
a textura das coisas era

levada muito a sério,
o brilho dos metais, a
perfeição de uma haste
a elevar-se de uma jarra, a

tapeçaria caindo em
largas pregas, outros tecidos
dobrados silenciosamente,
ou, para lá do rosto oval

de alguma santa, a paisagem
a rasgar-se azul e verde,
até se esfumar, longínqua. e
por entre baldaquinos, espaldares,

trabalhados dosséis,
a luz existia na pele das coisas e a
alegria era a serena confiança
de se estar no mundo, podendo

copiar estas aparências


Vasco Graça Moura
O Retrato de Francisca Matroco e outros poemas
1998, ed. Quetzal
pintura de Jan Van Eyck

3 poemas ''belgas'' de Jorge de Sena

















BRUGES

Dórmia cindria canalívia
befróidica de Memling e Filipe
e de Isabel de Portugal e Carlos
o Temerário Flandres e Borgonha
e o Santo Sangue e das beguinas Lago
do Amor e Till Eulenspiegel.
Sonam noctâmbulos de sinos passos
em dórmia cindria canalívia morta.


Exorcismos
1972, ed. Moraes


















ANTUÉRPIA

Na catedral o Cristo faleceu atlético
e tomba de ouro em Rubens por sempre.

Na casa dele patrício, Sir, Grande de Espanha,
a magna oficina tem balcão e tudo

para o grande espectáculo dos heróis e deuses
e as deusas adiposas rubicunda esposa.

Plantinos imprimiram e um soneto
diz aurea de Cristóvão mediocritas

le bonheur de ce monde: avoir une maison...


















ANDERLECHT

Nesta casa de um cónego hóspede peregrino
Erasmo esteve pouco tempo. Mas
não por reconstituída à sua imagem
a imagem se conserva tristemente irónica
do que opôs a loucura e o cavaleiro
cristão além de igrejas e deveres
de crenças pulhas como os homens nelas.
Morreu suspeito a todos. Não aqui.
Os lábios apertados, pega a pena
e mira dos retratos o seu Deus só alma.

Conheço o Sal... e Outros Poemas
1974, ed. Moraes

sábado, 13 de julho de 2013

OFFICE Kersten Geers & David Van Severen (parte 1)

Alguns apontamentos sobre a 2G nº 63

1.
O número 63 da revista 2G é dedicado à dupla de arquitectos flamengos OFFICE Kersten Geers e David Van Severen. E antes de mais nada, realce-se e louve-se que a revista da editora Gustavo Gili dedique um número a uma firma de arquitectos relativamente jovens, e cuja grande maioria da obra se encontra no país de origem, a Bélgica neste caso. Penso que nunca é de mais chamar a atenção para a tendência que a maioria das publicações (Revistas e livros.) tem de concentrar os seus esforços em arquitectos já estabelecidos, cuja obra obteve já reconhecimento e um posicionamento. Isto é negligenciar o facto de o futuro próximo e eventualmente até o futuro menos próximo da Arquitectura passará por uma série de soluções, interesses o orientações de uma camada mais jovem que, não estando ainda estabelecida, poderá estar já a experimentar no seu trabalho as pequenas e não tão pequenas revoluções que sucederão aos seus predecessores. A inovação não vem com o reconhecimento, este é, na grande maioria dos casos, um resultado da inovação. Debruçarmo-nos, então, sobre o trabalho de arquitectos jovens, é começar mais cedo uma preocupação com o presente e com o futuro.
Esta ideia vale duas vezes para uma firma como os Office KGDVS, uma vez que o seu trabalho é declaradamente experimental e por vezes mesmo subversivo.
A 2G apresenta-nos uma selecção muitíssimo completa e transversal do trabalho dos Office KGDVS, passando tanto pelos seus projectos de habitação, como por projectos não vencedores de concursos, como por trabalhos puramente conceptuais que culminam com a instalação After the Party (2008, Bienal de Veneza). Será esse o primeiro aspecto a realçar neste número da 2G, a sua compreensão profunda do projecto arquitectónico, aliás, artístico, dos Office KGDVS, que não passa exclusivamente pela obra arquitectónica necessariamente construída. Esta, aliás, parece muitas vezes decorrer de uma série de trabalhos mais teóricos ou conceptuais, que aqui aparecem também representados sumariamente.

2.
Para introduzir o trabalho dos Office KGDVS, apresentam-se três ensaios, no início do volume.
O primeiro, 'Picturing the Present' de Ellis Woodman concentra-se essencialmente em dois tópicos: por um lado, a unidade de uma obra (Representada pela monografia sobre esse obra.) e, por outro, algumas das âncoras do trabalho dos Office KGDVS tem nas artes plásticas. 
Na questão da monografia, enquanto representação da unidade da obra, Woodman contrapõe o trabalho desenvolvido com o objectivo de gerar lucro com o trabalho desenvolvido afim de um conseguimento artístico que ajudará a criar a narrative _ a discourse, even (p.4). Definindo a obra dos Office KGDVS como uma obra de cariz essencialmente artístico, ressalta como características essenciais dela the orthogonal plan; the box-like profile, the perimeter wall that establishes a near absolute division between inside and out; the shiny metal surface; the grid (both in plan and elevation) that is rolled out relentlessly; the tautly framed glass envelope; the peristyle of identically paced columns; the enfilade of identically dimensioned rooms (p.4), características que mais tarde resumirá como pragmatic in conception, The practice employs only the most straightforward construction methods and incorporates them into its architecture unmuddied by decoration (p.11). 
No entanto, no levantamento da unidade ou do fio-de-ariadne que liga todos os trabalhos dos Office KGDVS, Woodman acaba por deixar-se levar pela questão traiçoeira da imagem. Ao definir os edifícios destes Arquitectos como machines for making images (p.7), Woodman está a ser conscientemente provocatório, mas, ao longo do seu ensaio, não resolve a provocação com uma explicação aprofundada da sua leitura do trabalho dos Office KGDVS como criação de imagens. A imagem vale por si só ou vale enquanto forma de pesquisa para o pensamento arquitectónico? O texto vai explicando a importância da imagem, mas não é claro sobre a questão essencial: a imagem serve para mostrar, para descrever, o espaço ou vale enquanto meio de experimentação e estudo sobre esse espaço?
É nesse contexto, o do problema da imagem, que Woodman introduz o contraponto das imagens dos Office KGDVS com a pintura de David Hockney e as colagens de Mies van der Rohe. É uma observação bastante arguta da parte do ensaísta reconhecer essas influências, que resultam em imagens que, como é muito bem dito no ensaio, as exceptionally deterministic in some respects as it is permissive in others (p.6). Ao descrever, no entanto, alguns aspectos das imagens desta firma, fala de uma ausência de controlo sobre as representações urbanas nessas imagens, exigir-se-ia do ensaísta que aprofundasse esse tema, uma vez que ele pode ser uma forma de definir uma postura urbanística, um comportamento crítico dos Arquitectos perante os contextos (geográficos, culturais e temporais) em que trabalham.
Relativamente a este assunto, mais à frente, Woodman falará da postura dos Office KGDVS em relação ao contexto temporal: Their project's temporal situation is always ambiguous (p.11). É bastante importante falar deste assunto, uma vez que precisamente o posicionamento temporal da Arquitectura tem interessado a uma série de arquitectos. Sou Fujimoto, cujo universo artístico é em muitos aspectos completamente distinto do dos Office KGDVS interessou-se também por essa questão em 'Primitive Future' e, tal como a firma belga, concluiu que o arcaísmo apresenta uma série de soluções que fazem completo sentido ainda na modernidade. Woodman refere isto a propósito dos Office KGDVS e acrescenta ainda, inteligentemente, a influência maneirista e neopalladiana, aliás muito frequentes na Arquitectura belga.
No geral, o artigo de Woodman toca numa série de questões essenciais para definir o trabalho dos Office KGDVS, e falha apenas no desenvolvimento dessas questões. Não se exigiria uma interpretação unívoca da obra, mas, no mínimo, a colocação de uma série de hipóteses, das quais o ensaísta acaba por descartar-se, prejudicando o ensaio.


3.
O segundo ensaio do volume, da historiadora e crítica americana Joan Ockman, 'Radical Reticence', é o mais sucinto e, provavelmente, o mais eficaz dos três aqui apresentados.
Ockman começa por dizer que no trabalho dos Office KGDVS, Architecture's reduction to elemental forms belies its historical density (...) an extreme distillation and concentration of aesthetic thought. (p.13) Desta forma, acaba por corroborar a caracterização que encontramos no ensaio de Ellis Woodman. Também como Woodman, Ockman faz contrapontos do trabalho destes arquitectos com o trabalho de Mies van der Rohe, David Hockney e Philip Johnson, acrescentando ainda breves referências a Allison e Peter Smithson e a Ed Ruscha. Mas a nível das influências directas no trabalho dos Office KGDVS, Ockman é bem mais perspicaz ao apontar o ascendente intrínseco de todo o ambiente (quer o climático, quer o cultural) belga, e especificamente flamengo, que acaba por fazer-se sentir até na percepção psicológica das obras destes arquitectos: The architects explained their inward-looking scheme as a response to the harsh climate (p.15). Relativamente ao ambiente cultural especificamente, Ockman não hesita em colocar os Office KGDVS em oposição à maioria dos seus contemporâneos: The position they have staked out is a rebuke to technological virtuosity and ostentatious avant-gardism (...) the Belgians remain circunspect about architecture's efficacy as an instrument of social improvement (...) They also share Koolhaas' interest in programmatic analysis and reinvention. But they reject the facile school of diagrams he has spawned and remain considerably more romantic about aesthetic experience and its poetics (p.15).
Dado que actualmente uma legião de deslumbrados se rende às maravilhas da tecnologia, como se aí estivesse o futuro, quando na verdade, a tecnologia será sempre um instrumento de trabalho, mas nunca poderá, por si só, ser suficiente para refazer ou revolucionar a Arquitectura, é particularmente importante realçar que uma firma em crescimento como são os Office KGDVS se posicione criticamente em relação à tecnologia, mantendo as saudáveis reservas que evitam a histeria. Mais ainda, é também importante que Ockman analise a relação entre uma figura tutelar como Koolhaas e uma firma de arquitectos mais jovens que, como a ensaísta explica, souberam aproveitar o melhor do pensamento do holandês, mas mantiveram uma perspectiva mais sensível e menos espectacular em relação à Arquitectura.
E se uma das falhas do texto de Woodman era precisamente a sua relutância em abordar o problema da relação dos edifícios com o seu envolvente, Ockman refere esse assunto e, ainda que resumidamente, consegue explicá-lo: their conviction is that however multifarious the contextual conditions to wich architectural projects are subject, the designer needs only deploy a limited repertory of compositional devices; these, in turn, in their adaptation to the contingencies of site and programme, are capable of generating endless subtle variations. (p.17)
E no final do ensaio, Ockman consegue sintetizar perfeitamente o resultado de todas as características que foi apontado. Quando nos diz que na obra dos Office KGDVS what you see is not so much what you see as what you sense: namely the fragility and temporality of that wich purports to be solid (p.18), percebemos que dificilmente se conseguiria definir a obra da firma de uma maneira mais adequada e ao mesmo tempo mais poética.

4.
O terceiro texto, de Pier Paolo Tamburelli e Andrea Zanderigo, 'Cutting holes into the trash and other stories' é, diga-se desde já, um poderosíssimo ensaio, logo pela forma orginalíssima como é escrito. As análises destes teóricos sobre o trabalho dos Office KGDVS são apresentados em textos curtos, que funcionam como contos num conjunto.
Tratando-se então de um texto escrito de forma tão impressionante e que toca em aspectos muito importantes que não encontraram igual atenção nos dois primeiros ensaios da revista, é apenas de lamentar que Tamburelli e Zanderigo insistam constantemente numa questão em que, se não estão errados, pelo menos não estão inteiramente correctos: a indiferença dos edifícios dos Office KGDVS pelo terreno e pela cidade.
Talvez o problema comece, logo no início, pela maneira como o terreno flamengo (Onde a maioria da obra desta firma se encontra.) é lido pelos autores. Para eles, o trabalho desta dupla corresponds to their native landscape: the mediocre, confused and domestic sprawl of contemporary Flanders (p.19), o que significa que é, aqui, ignorada a imensa história cultural que persiste na Flandres e de que a Arquitectura é, em muitos casos, testemunho; bem como as características bastante específicas da paisagem natural e construída de uma série de cidades que, pertencendo ao mesmo país ou à mesma região autónoma, apresentam especificidades várias que impediriam, normalmente, que as víssemos como um todo monótono ou descritível em tão parcas palavras (Visitem-se duas cidades como Antuérpia e Leuven para o comprovar.). Poucos países comportarão em si paisagens, arquitecturas, culturas e funcionamentos tão diversificados entre si como a Bélgica. Os contrastes entre as regiões (Flandres, Valónia e Bruxelas-Capital) são evidentes, mas o observador atento reparará que as províncias também fazem alguma diferença e que mesmo as próprias cidades conservam um pouco da autonomia e da diversidade que existem desde há séculos, quando a Bélgica não existia e aquele território era composto por uma série de condados, ducados, bispados e principados. A visão de Tamburelli e de Zanderigo do território flamengo, que dá de si em mais do que um momento do ensaio, é então redutora e superficial, e afecta directamente as opiniões dos ensaístas sobre a postura dos Office KGDVS enquanto intervenientes no Urbanismo do seu país. O que é de lamentar, pois este é também o ensaio que mais se preocupa em estabelecer precisamente essa relação entre os arquitectos e o seu país de origem.
Ainda que admitam no início do ensaio que While the rooms leave out the urban debris accumulated in this landscape, they would not make sense without it (p.19), na grande maioria do resto do texto, os ensaístas parecem defender uma espécie de frieza urbanística por parte dos Office KGDVS, a quem atribuem um fenómeno de 'King Midas urbanism' ou seja, every single corner touched by the architects suddenly turns into gold (p.19). Este 'fenómeno' é interpretado, em vários momentos do ensaio, como uma forma de indiferença perante a cidade ou perante o território quando, na verdade, a optimização de determinados pontos da cidade levada a cabo pelos arquitectos pode ser vista, por outro lado, como uma atitude tudo menos indiferente: esses 'King Midas urbanism' seria, assim, uma forma de precisamente valorizar a cidade, de tornar a paisagem menos 'medíocre' (nas palavras dos ensaístas). Isso é visível até em trabalhos menos importantes da firma, como é o caso da ponte em Ghent (Fotografia acima deste fragmento.).
O que parece existir da parte dos Office KGDVS é precisamente a criação de microcosmos arquitectónicos ou urbanísticos. Mas a já referida frieza fará sentido, quando muito, para o edifício em si, não no seu comportamento perante o território. Esta parece não ser a opinião dos ensaístas, quando escrevem que Even if the architecture of OFFICE Kersten Geers David van Severen shows an explicit monumental ambition, this monumentality is completely non-didactic. Their buildings never try to do anything for the environment arount them; they do not suggest possible transformations. Like black holes, they suck energy from the context they erasem producing small regions in wich the field is provisionally suspended. (p.20, bold meu). Aliás, na parte destacada, os ensaístas contrariam absolutamente aquilo que Joan Ockman havia afirmado no seu ensaio. A leitura da questão urbanística no trabalho destes arquitectos é a maior fragilidade deste ensaio, resultando contraditória ou, no mínimo, muito mais subjectiva do que seria desejável.
Por outro lado, este ensaio reconhece alguns aspectos essenciais para a arquitectura propriamente dita dos Office KGDVS: a geometria pura enquanto instrumento de trabalho; a gramática fixa de elementos que origina aquilo que Tamburelli e Zanderigo definem muito adequadamente como dialetic of repetition and exception (p.22); a importância matricial do fragmento e das relações entre fragmentos.
Dois aspectos ainda convém salientar neste ensaio: por um lado, as descrições que vão surgindo ao longo dos texto, são bastante eficazes em mostrar que um trabalho tão cerebral como o dos Office KGDVS não abdica de uma dimensão sensível e poética. Por outro lado, tal como Ockman, Tamburelli e Zanderigo esforçam-se por posicionar estes arquitectos num determinado contexto e, para isso, deixam-nos, em particular no último texto do ensaio, um importante apontamento acerca dos excessos do Moderniso e dos seus efeitos nefastos sobre a cultura arquitectónica posterior: Ignorance, the specific, architectural ignorance of contemporary architecture, was created when, for a variety of reasons (and there were actually reasons for this), the Modern Movement decided to burn all the books and start again without anu knowledge of what had previously been known as architecture. This attitude, in the long term, lost its polemical charge and became a standard of practical men (the ones ''who believe themselves to be quite exempt from any intellectual influence and are usually the slaves of some defunct economist.'' as John M. Keyes once noted). (p24-25). E se, como se conclui no ensaio, esta ignorância começa agora a ser reconhecida e combatida, certamente um trabalho da dimensão intelectual que tem o dos Office KGDVS é importante para a reformulação da cultura arquitectónica.


5.
A selecção de obras que a revista compreende comprova a grande maioria dos aspectos apontados pelos três ensaios introdutórios. Como se disse, esta selecção inclui não só os projectos construídos, como uma série de participações em concursos e ainda alguns trabalhos de índole puramente conceptual; o que nos permite formar uma visão, muito mais do que da obra, do pensamento de Kersten Geers e David van Severen, complementada ainda pelos textos dos próprios que se apresentam no final. E num momento em que, como se apontava no último ensaio, a ignorância ou a frigidez cultural entraram em vigor na Arquitectura como se fossem, mais que um direito, um requisito, torna-se duplamente importante compreender o pensamento daqueles que a combatem. E que a combatem na totalidade da sua obra, seja em que vertente for, como aqui é o caso.