sexta-feira, 15 de novembro de 2013

O que aponto



1
Conversa muda...
A falada cessou, cessara.
Começou a muda, encadeada, sem presenças, solitá-
ria, gostosa, inteligente, reminiscente, recriada.
Ai, as mãos...
O pensamento, ou aquilo que durante os silêncios
connosco fala, evocava as mãos, regalava-se de não sei
que especiosos contactos!
Os que pouco antes se tinham falado, entendidos e
afectuosos, cautelosos...
Falariam, falavam... Mas o que deles mais deli-
cado e mais secreto falava eram as mãos... ligeiras,
tocando-se invisivelmente, buscando-se.
E ainda agora elas falavam, se tornavam lembra-
das! Carnais e etéreas. Irreais e ligadas!

Pois sim.
Mas não será o meu pensamento que tudo materia-
liza, ou inventa?
Impulsos, movimentos, transposições...
Que prolonga as ínfimas sensações, tais, que um
entendimento brusco e claro anularia?
Pensamento! Que necessidades as tuas, e que pra-
zeres! Reanimares e dares extensão a um quasi nada,
aparente...


2
Subtil, como um papel, uma pena, uma folhita de
árvore, um trapo, eu seja, ou fosse!
E não o sou?
Serena, prudente, desconfiada...
Sou.
Só a minha agastada, descolorida serenidade não
tem, não pode ter, nunca terá aquela mansidão, aquele
ar leve, indiferente, descansado, aquele poisar da doce
pena...
A minha serenidade é... e cada vez mais, daqui
para o resto, para o meu sempre, uma serenidade de
decadência.


3
Belo homem, arisco, violento!
A fala seca, imodulada; o olhar claro; e uma agi-
tação, uma irregularidade, uma leonia!
Animal de presa.
Mas eu, a minha imaginação ou o meu corpo, eu,
tão fria!
Pessoa que nada ufana, nada agita, nem sequer
quebranta...
Mas isto percebendo, sofro, dá-me dor!
Espírito... trabalhas sempre, e talvez te contentes,
te iludas como um delicado.
Pobre! Mesquinho! Impotente!
Relojoeiro, que te distrais e te ocupas com o isocro-
nismo e a finura das rosas, agulhas, pinças, lentes...


4
Pela orla marítima tranquila, tranquila, os namo-
rados, passageiros, despreocupados, de mãos dadas, ou
passadas pelas cintas, pelos ombros, chegados...
Os namorados, tão jovens! renovam não sei que
mitos.
Pela areia húmida, para o sul, para o norte...
Elas, tão finas e castas!
Tantas perspectivas...

Tarde amável, mas indistinta, do acaso, tirada sem
propósitos do calendário.
Velha... É velha a terra, a areia, tudo isto. Mais
eu!
Novos, e espirituais, só os namorados.


5
Eu cantava, havia de cantar...
Mas com que voz?
Falta-me a voz, e os temas.

Eu havia de cantar briosamente (se tivesse voz), o
amor!
Nunca um amor apoetado e correntio...
O amor! O êxtase, o arrebatamento! Ou talvez só
a ternura.

Sons de música...
É a telefonia das minhas vizinhas, das meninas boni-
tas.
São realmente bonitas.
Pois assim, ao som de uma valsa lânguida, de uma
valsa velha e excitante, eu havia de cantar, glosar, as
fantasias, os sonhos de dois jovens pré-amantes.

Havia de cantar?
Não!
Chorar, chorar!
O meu desejo verdadeiro é de chorar, por querer
cantar sem poder.

Irene Lisboa
in «Presença» nº 50
desenho de Robbert Van Wynendaele

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