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domingo, 12 de abril de 2015

Desabafo



Quando o meu tumulto recrudesce
(tempestade de água num copo)
o meu interior tumulto,
de que me escapa a profunda causa...

Quando falo
e as minhas próprias palavras,
por inúteis,
me espantam e me cansam...

Quando a moral dos outros
me traça à frente
o ridículo sulco dos limites...

Deponho as minhas armas boas ou fracas e rio.
Rio com amargor
e como o vento torço o rumo.

Limites...
Para o coração que tumultua, bofetada.
Para a livre imaginação, queda
Cinza,
cinza atirada àquele quê,
àquele quê nada expansivo e imenso,
ardente e infinito
de um pobre espírito.

Como o vento torço o meu rumo gritando:
Ó lar, ó lar das minhas esperanças!
Ó acolhida dos sem pátria e sem destino!

Risco baço dos meus limites, galguei-te.
Sim, galguei-te.
E perco-me no meu corcel de vento,
infeliz e irritada.

Mas para calar toda esta ansiedade
e, ai!
abafar o meu desprazer,
só alcançando as estrelas,
ultrapassando-as
e desaparecer...

Meu coração inchado rebenta, rebenta!
E tu gasta-te, saudade,
desejo, desespero, paixão do que sonhei

e sempre tive de perder.

Irene Lisboa
in «Seara Nova», 1939
imagem de Miguel Leal

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Lenga-lenga


Maio, maio.
Tarde.
Vejo-me na rua.
Penso? muito pouco.
Terra escura, terra escura!
E soledade...
Pena?
De nada, de mim.
Mas desespero, fastio.
 
Soledade!
Terra escura.
Maio, maio...
 
Camions de presos,
numa rua parados.
Vazios, cheios?
Impenetráveis.
Vazias as ruas.
E as vistas...
Gastas, imutáveis!
Um rio antigo,
de aquário,
longe, estagnado.
As casas maciças,
impávidas, alinhadas.
 
Descidas, só descidas...
As mulheres, adamadas.
E eu só, só, só!
Sempre assim.
Tudo o mesmo,
o que foi.
Soledade, soledade...
 
As ruas com sêlo.
Características e incaracterísticas.
Quentes e escuras.
E eu hei-de morrer,
acabar de passar,
deixá-las.
E elas, ficar!
Sem nenhum mistério.
Corro nelas, como o seu sangue,
surdo, cego, interior.
Um sangue sem qualidade!
Desconsolado.
 
Há vida?
Não há, não a sinto.
Mas o mundo revolve-se.
Mundo de insectos!
Vai aqui uma alma,
como o sangue das ruas,
perdida,
desemparelhada,
para o nada...
 
As ruas, golfos!
De um lado e outro a vida,
mas dissimulada, aberrativa.
E eu que sou o seu sangue,
correndo,
sem olhos nem sentidos....
Afrontada,
apertada, desenganada.
 
A de sempre aqui vai,
a sem coragem!
Maio, maio...
Uma tarde como estas,
tão velha e tão simples,
me ofende e me angustia.
 
Miseráveis, miseráveis!
Tomais a vida vossa

e não me deixais nada!
Sem vos ver, pressinto-vos...
 
Estas ruas, estes golfos,
que sempre me amarguraram...
me invadiram de melancolia,
tão cara!
 
Humilde, hei-de morrer
e elas continuar...
a receber e a desprezar...
Hei-de passar
sem reconhecer a vida,
a esquiva,
toda a sua acuidade!
De nada me desobrigarei,
não trouxe mensagens...
Vadio.
 
Passarei como o sangue,
indiferente, inconsciente,
repetida e esquecida.
Passarei.
 
Mundo de cães,
mesquinho e utilitário,
como me olhaste?
Nem me olhaste,
tudo me roubaste,
de tudo me desenganaste.
Insípido, insípido.

Irene Lisboa
in «Seara Nova»
Junho de 1938
pintura de Jeremy Enecio

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

O que aponto



1
Conversa muda...
A falada cessou, cessara.
Começou a muda, encadeada, sem presenças, solitá-
ria, gostosa, inteligente, reminiscente, recriada.
Ai, as mãos...
O pensamento, ou aquilo que durante os silêncios
connosco fala, evocava as mãos, regalava-se de não sei
que especiosos contactos!
Os que pouco antes se tinham falado, entendidos e
afectuosos, cautelosos...
Falariam, falavam... Mas o que deles mais deli-
cado e mais secreto falava eram as mãos... ligeiras,
tocando-se invisivelmente, buscando-se.
E ainda agora elas falavam, se tornavam lembra-
das! Carnais e etéreas. Irreais e ligadas!

Pois sim.
Mas não será o meu pensamento que tudo materia-
liza, ou inventa?
Impulsos, movimentos, transposições...
Que prolonga as ínfimas sensações, tais, que um
entendimento brusco e claro anularia?
Pensamento! Que necessidades as tuas, e que pra-
zeres! Reanimares e dares extensão a um quasi nada,
aparente...


2
Subtil, como um papel, uma pena, uma folhita de
árvore, um trapo, eu seja, ou fosse!
E não o sou?
Serena, prudente, desconfiada...
Sou.
Só a minha agastada, descolorida serenidade não
tem, não pode ter, nunca terá aquela mansidão, aquele
ar leve, indiferente, descansado, aquele poisar da doce
pena...
A minha serenidade é... e cada vez mais, daqui
para o resto, para o meu sempre, uma serenidade de
decadência.


3
Belo homem, arisco, violento!
A fala seca, imodulada; o olhar claro; e uma agi-
tação, uma irregularidade, uma leonia!
Animal de presa.
Mas eu, a minha imaginação ou o meu corpo, eu,
tão fria!
Pessoa que nada ufana, nada agita, nem sequer
quebranta...
Mas isto percebendo, sofro, dá-me dor!
Espírito... trabalhas sempre, e talvez te contentes,
te iludas como um delicado.
Pobre! Mesquinho! Impotente!
Relojoeiro, que te distrais e te ocupas com o isocro-
nismo e a finura das rosas, agulhas, pinças, lentes...


4
Pela orla marítima tranquila, tranquila, os namo-
rados, passageiros, despreocupados, de mãos dadas, ou
passadas pelas cintas, pelos ombros, chegados...
Os namorados, tão jovens! renovam não sei que
mitos.
Pela areia húmida, para o sul, para o norte...
Elas, tão finas e castas!
Tantas perspectivas...

Tarde amável, mas indistinta, do acaso, tirada sem
propósitos do calendário.
Velha... É velha a terra, a areia, tudo isto. Mais
eu!
Novos, e espirituais, só os namorados.


5
Eu cantava, havia de cantar...
Mas com que voz?
Falta-me a voz, e os temas.

Eu havia de cantar briosamente (se tivesse voz), o
amor!
Nunca um amor apoetado e correntio...
O amor! O êxtase, o arrebatamento! Ou talvez só
a ternura.

Sons de música...
É a telefonia das minhas vizinhas, das meninas boni-
tas.
São realmente bonitas.
Pois assim, ao som de uma valsa lânguida, de uma
valsa velha e excitante, eu havia de cantar, glosar, as
fantasias, os sonhos de dois jovens pré-amantes.

Havia de cantar?
Não!
Chorar, chorar!
O meu desejo verdadeiro é de chorar, por querer
cantar sem poder.

Irene Lisboa
in «Presença» nº 50
desenho de Robbert Van Wynendaele

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Jeito de escrever


Não sei o que diga.
E a quem o dizer?
Não sei que pense.
Nada jamais soube.
Nem de mim, nem dos outros.
Nem do tempo, do céu e da terra, das coisas...
Seja do que for ou do que fosse.
Não sei o que diga, não sei o que pense.
Oiço os ralos queixosos, arrastados.
Ralos serão?
Horas da noite.
Noite começada ou adiantada, noite.
Como é bonito escrever!
Com este longo aparo, bonitas letras e o gesto _o jeito.
Ao acaso, sem âncora, vago no tempo.
No tempo vago...
Ele vago e eu sem amparo.
Piam pássaros, trespassam o luto do espaço, este sereno luto das horas.
Mortas!
E por mais não ter que relatar me cerro.
Expressão antiga, epistolar: me cerro.
Tão grato é o velho, inopinado e novo.
Me cerro!
Assim:
uma das mãos no papel, dedos fincados, solta a outra, de pena expectante...
Uma que agarra, a outra que espera...
Ó ilusão!
Me cerro.
E tudo acabou, acaba.
Para quê a busca das coisas novas, à toa e à roda?
Silêncio.
Nem pássaros já, noite morta.
Me cerro.
Ó minha derradeira composição! do não, do nem, do nada, da ausência e solidão.
Da indiferença.
Quero eu que o seja! da indiferença ilimitada.
Noite vasta e contínua, caminha, caminha.
Alonga-te.
A ribeira acordou.

Estrela, 1950

Irene Lisboa
Vértice nº 109,
Setembro de 1952
pintura de Miguel Leal

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

O Tempo





















O tempo longo, longo...
Longo...
E simultaneamente tão precipitado!
Tão desordenado, tão vazio.
Este verão das ruas...
Tudo fora, além das casas,
mas invasor, invadindo-as.
Aqui mesmo, rua estreita, comum cidade...
mas...
e em Bruxelas e em Ferreira,
quiçá na China?
Sempre a mesma cálida solidão.
O tempo aniquilado mas irritante.
E a pergunta uniforme:
para que se vive, como se vive?
Isto,
monotíssimo, desenrolando.
Isto, o prazo de uma vida!
«A tua vida tecê-la-ás pela tua mão».
Ah! ah!
Blasfémia.
Estupendo ridículo, imoral até.
Que teceu e que tece,
que poderá ter tecido a minha mão?
Nunca, pelo menos,
a minha primeira vida.
Nem a segunda,
imprevista e sentimental.
Nem esta, esta, derradeira,
descansada ou como tal.

Haveria a minha pobre mão,
ferrenha, convicta e cabalística,
de fazer no ar os seus firmes traços?
Ah! ah!
Os outros apanham os frutos já maduros
e ficam a julgar,
a julgar que o seu desejo os corou.
Tolos!
Que foi que fizeram?
Levantaram este braço.
Mas esse gesto mesmo...
Não, não foi a insuficiência do gesto.
O que foi, foi o meu deserto,
os caminhos áridos.
Áridos, secos, amargos.
Mais um Verão...
Mais um Verão,
mais uma jornada,
mais uma época.
O  verão remata sempre qualquer coisa.
Depois dele é que volta a velha vida.
E quanto mais ela passa,
se repete e se eterniza,
mais ansiada é a nossa pergunta:
porque e para quê?
como se vive?
para onde é a ida?

Irene Lisboa
Diário Ilustrado,
8/10/1957
pintura de Michele del Campo

terça-feira, 20 de agosto de 2013

[fragmento]


Ando com tanta vontade de chorar...
Estar só cria uma melancolia tão profunda!
Só e sem uma ilusão de gosto! Esta impressão de completo deserto moral é acabrunhante. Uma impressão em mim contínua, actualmente. Mas houve dias, de quando? nunca se podem localizar bem estas impressões! _em que eu me sentia com a ânsia de viver, o gosto da vida. E tolerante, quase alegre...
Deve ter sido há muito tempo. Não me reconheço nessa que fui, nem sei quando é que assim fui.
Olho para o que me rodeia, para esta casa, estes bocados de parede tão indiferentes e pergunto-me que é que tenho aqui feito, se isto é viver?
Como tenho gasto o meu tempo?
Eu desejo o que os outros desejam, com certeza, mas eles satisfazem-se e eu não.
A vida repele-me. Tudo me constrange e me desassossega, quase me aterra.
A minha vontade é de perguntar sempre, mesmo sem saber a quem:
É assim que se vive, a isto chama-se viver?
Que tristes horas tem um dia! Tão aflitivas e desacompanhadas!
O inferno vive-se, conhece-se... e não é a rispidez das lutas que o dá, nem a violência dos sentimentos. É este viver à parte, este viver sufocado.
Já houve quem me dissesse que eu sou simples, estupidamente simples, naturalmente, e que o capricho é o sal da vida...
Deve ser isso. Decepciono, desencanto. Das minhas portas e do meu coração para dentro não há senão humildade. 
Mas eu não sei bem porque é que tudo o que me cerca me parece vazio ou irreal. Vivo disparatadamente, à toa, quase sem hábitos nem propósitos.


Irene Lisboa
Solidão
1939, ed. Seara Nova

sábado, 6 de julho de 2013

Pequenos Poemas Mentais


I
Quem não sai da sua casa,
não atravessa povos, montes, vales,
não vê as cenas bíblicas das eiras,
nem mulheres de infusa, equilibradas,
nem carros lentos chiadores,
nem homens suados,
quem vive como o insecto cativo no seu redondel,
cria mil olhos para nada...
Mil olhos implacáveis!
E um dia diz: odeio o que ontem amava,
sentindo indómitos ódio.
E diz depois: ó tempo vazio, vazio, vazio...
sem amor nem ódio, terrivelmente pobre.
E ainda volta a dizer: mas eu que sei, que sou?
Não sei nem sou, não me reconheço...
Nunca ninguém, sequer, me deteve, me falou, me interrogou.
Sou uma sombra, ou menos.

E o insecto,
ou o quer que é como o insecto no seu redondel, pára.
Pára circunvagando os mil olhos desgostosos
pela païsagem pobre, irrenovada.


IV
Ó luxúria brutal, perversa e felina,
dos outros, alheia,
sem pensamentos nem repouso!
retira-me da frente o venenoso cálice,
a tua peçonha adocicada.
Que a morte, o nirvana, a indiferença
dos longuíssimos anos sem sobressaltos, me retome.

Abro os braços e meço: cá, lá... cá, lá...
solidão, infinita solidão!
E, neste momento, neste balouço, adormeço.
Cá, lá... morte, vida... morte, vida...
Tôdas as ausências, tôdas as negações.

Irene Lisboa
'Pequenos Poemas Mentais'
Revista de Portugal, nº 3, Abril de 1938
pintura de James Ensor

quarta-feira, 20 de março de 2013

Um 'Apontamento'


Muitas vezes me pergunto a mim mesma o que é um livro.
O mesmo que as pessoas! apetecia-me responder. Ou: são tão diversos os livros como elas... Mas estabelecendo uma comparação destas eu daria grandes âmbitos à obra escrita, dar-lhe-ia foros de extraordinária variedade. E não me sinto com esse direito.
Eu penso nos livros, lembro-os, distingo-os, com a maior calma. Um livro é sempre uma mensagem entregue, por mais banal que seja o dito. E uma pessoa, qualquer que seja, é uma verdadeira incógnita... É um ser incompleto, defendido e misterioso, sempre apto a desdobrar-se, a confundir-nos.
Um livro tem uma conclusão e uma única alma, aquela que lhe deu existência numa dada época. E as pessoas são eternamente variáveis! Complicadas e irregulares. Não vamos nós tantas vezes com bondade ao seu encontro, para lhes oferecermos o que temos acumulado no coração; doçura ou virilidade? E não voltamos desiludidos? A alma alheia é uma perfeita antagonista da nossa.
Podemos fazer dela a ideia que se faz de um livro, julgá-la definida e característica... mas enganamo-nos. Um livro deixa-nos umas tantas impressões, que se guardam ou que lentamente se dissolvem. E as pessoas têm mil pequenas almas, todas elas vivas e contraditórias. Constantemente inquietas, vaidosas, reprimidas e prontas a saltar.
As pessoas são infinitamente desanimadoras e diversas. E os livros não; são simples. São uns produtos artificiais e ocasionais dos nossos estados; passaram a viver fora de nós, tornam-nos apenas lembrados.

Irene Lisboa
Apontamentos
1943, ed. da autora
desenho de Dante Gabriel Rossetti

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Fragmentos de ''Solidão''




Tantas lágrimas no chão, que ninguém enxuga! Tantas!
Quem as chorou? Fui eu, sim, fui eu...
Dói-me o coração. Sinto nele uma opressão, uma amargura solta e grande, sem fim, só de olhar para este chão molhado.
São as minhas lágrimas... Eu chorei, estou-o vendo. O meu coração chora sempre, sempre, dentro de mim, até inconscientemente!
Esta vista do chão líquido, com as luzes fixas nele magoa-me. E desperta-me. Fala-me. Quem chorou? Quem podia ter chorado, senão eu? Ninguém tinha a minha fonte de lágrimas em si!
A este chão tão húmido há-de haver quem chame espelho, lago e rio... Quem lhe dê bonitos nomes. E lhe ligue ideias festivas. Eu só lhe chamo chão molhado. Molhado de lágrimas! Chão sombrio, não de luz.

[...]

Flutuamos sempre ao sabor das boas e das más impressões...
A minha doce impressão desta tarde! Um desejo quase sem fundo, inaplicado, de bondade e de ternura.
Pego nesta revista francesa, sem a mínima vontade de a ler. Olho-a e sinto um instintivo recuo, um choque. Inveja... Apesar de me sentir apaziguado. Inveja de quê? De tudo o que eu julgo ter sido dado aos outros! Do que nunca ninguém me concedeu ou me permitiu; a agitação, a posse, a vida... Tudo. Muitíssima coisa!
Existência monótona, monótona... Cai-lhe hoje em cima a doçura de uma tarde destas. Mas nunca a perfeita paz.

Irene Lisboa
Solidão
1936, ed. Seara Nova
pintura de Giulio Aristide Sartorio

terça-feira, 8 de maio de 2012

Um apontamento


Deixo que o silêncio que acentue. Foi um instante de silêncio, apenas, mas destes que se repetem. Os pregoeiros de voz conhecida voltaram, mas hão-de desaparecer, afastar-se. Os silêncios agradáveis dps doas de chuva tornarão. E se não tornarem...
Os pássaros já se aproximam. Foi mesmo o pio de um, que oiço de novo mas ainda afastado, que me fez apreciar aquêle silêncio que começava a reinar. Êste tempo chuvoso abafa o mundo, serve-lhe de redoma.

Irene Lisboa
Apontamentos
1943, ed. autora
pintura de Isabel de Sá

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Diários e outras representações do eu (Prosa)

Portugal não lhes dá grande atenção e é pena. A escrita dos diários não é rara entre escritores e artistas, a sua publicação é frequente nalguns países. Portugal, claro, não é um deles. Não só há poucos autores a publicarem os seus, como pouco se traduz dos diários publicados por autores estrangeiros.
Para mim, é de lamentar, visto que um diário, ou, pelo menos, um bom diário, pode ser uma forma de entender melhor a obra de um autor ou, mais importante ainda, de nos inteirarmos do seu pensamento, das suas motivações e da sua visão do mundo que, em última análise, é força motora de toda a obra.
Há autores portugueses cuja obra de poesia ou ficção é atravessada frequentemente por vislumbres autobiográficos mais amplos ou menos. É o caso de Irene Lisboa, na grande maioria dos seus livros, mas também de Luísa Dacosta e Maria Ondina Braga.
Na obra de Irene Lisboa é frequente que não consigamos distinguir o que é o ficcional do que é autobiográfico ou auto-representativo, partindo do princípio que Irene chegou a aceitar o ficcional como integrante da sua obra.  Depois dos '13 Contarelos' (1926) para crianças, Irene publica dois livros de poesia, 'Um Dia e Outro Dia: Diário de uma Mulher' (1936) e 'Outono Havias de Vir, Latente e Triste' (1937). A designação de diário surge, inclusivamente, no título do primeiro e é, aliás, a relação desta poesia com o real e com o quotidiano que fará dela moderna e intemporal, anos-luz à frente do seu tempo. No que à prosa diz respeito, Irene escreve três livros que podemos considerar diários, e um outro ainda que, afastando-se do registo diarístico, se aproxima do relato autobiográfico, fazendo uma espécie de narrativa que começa na família, passa com intensidade pela infância e termina no tempo, mais ou menos, em que o texto está a ser escrito. Chama-se este livro 'Começa Uma Vida', e foi editado pela primeira vez em 1940, ou seja, um ano depois da primeira edição do emblemático 'Solidão'. 'Solidão: Notas do Punho de Uma Mulher', além das datações, aproxima-se assumidamente da escrita do diário, na sua tendência para o fragmentário e para a atenção minuciosa dada a pormenores do quotidano, que ajudam um 'eu' feminino (Importa apontá-lo quando o livro é assinado com o pseudónimo de João Falco.) que se encontra frequentemente numa tremenda solidão. Continuação deste registo e, até certo ponto, continuação deste livro, é 'Solidão II', de 1966, publicado, portanto, postumamente. 'Apontamentos', de 1943, constitui também uma espécie de diário, este especificamente orientado para a observação de aspectos do quotidiano principalmente citadino, contendo ainda preciosos apontamentos sobre a relação do 'eu' com o mundo e com o tempo, elemento essencial para a estruturação de um diário.
Luísa Dacosta, a par de uma obra onde o autobiográfico tem presença tutelar, publicou dois diários, 'Na Água do Tempo' (1990) e 'Um Olhar Naufragado' (2008) e são bons exemplos do que de melhor um diário pode oferecer. Além de apontamentos pessoais que não tocam um confessionalismo de mau-gosto, estes dois diários oferecem-nos textos que podem perfeitamente ser contos ou até poemas em prosa que, por várias razões, não tenham integrado os restantes livros da autora. Mais ainda, todas as preocupações da obra de Luísa têm grande presença nos diários, e estes textos vêm aumentar as dimensões literária, humana e sociológica que encontramos nos seus livros de contos e crónicas e no seu romance 'O Planeta Desconhecido e Romance da que fui Antes de Mim' (2002). O gosto pela observação minuciosa que se constrói dentro da tendência pelo fragmentário fica no diário mais do que clarificado e o conjunto desses dois livros está longe de ocupar um lugar secundário na bibliografia de Luísa Dacosta.
O caso de Maria Ondina Braga tem contornos diferentes. Maria Ondina nunca publicou um diário propriamente dito. No entanto, vários dos seus livros -penso em 'A Personagem' (1978) ou 'A Casa Suspensa' (1981)- ficcionam a escrita de um diário, ficando nessa ficção de certa forma esfumados os limites do autobiográfico. Ou seja, projectando-se numa personagem que escreve um diário, Maria Ondina escreve subliminarmente o seu próprio diário. Da sua bibliografia, destaca-se 'Estátua de Sal' (1969), um dos livros mais importantes de Maria Ondina, reeditado duas vezes (O que é interessante no caso de uma autora cuja maioria dos livros nunca conheceu reedição.) que se apresenta como uma 'autobiografia romanceada'. Esta designação, de certa forma, faz com que este livro ocupe um lugar especial entre os livros da autora bracarense. Não sendo necessariamente um diário, 'Estátua de Sal' cumpre muitos dos aspectos que um diário por norma cumpre. Ele centra-se na vida da autora enquanto plano narrativo, mas não abdica, em nome disso, de uma atenção dada ao lado literário, à inserção do texto final no conjunto de uma obra. Talvez mais do que qualquer outro livro de Maria Ondina, 'Estátua de Sal' dá-nos a dimensão do seu mundo interior, da sua solidão e dos assuntos que pautarão a sua obra desde 'Eu Vim Para Ver a Terra' (1965) e até dos dois livrinhos de poesia publicados na juventude, 'O Meu Sentir' (1949) e 'Almas e Rimas' (1952).
Bastante diferente é o caso de José Saramago, cuja escrita sempre recusou, de vários pontos de vista, o autobiográfico. Com o primeiro romance publicado em 1947, 'Terra do Pecado', e com um ritmo de publicação que só se torna frequente a partir de 1966, com 'Os Poemas Possíveis', a edição dos 'Cadernos de Lanzarote' começa apenas em 1994 e estende-se por cinco volumes.  A perspectiva de escrita é a de que, nas palavras do próprio Saramago, um diário não passa de um modo incipiente de fazer ficção. De facto, a descrição de aspectos do quotidiano roça, nestes livros, a malha ficcional na forma como está feita; mas, quanto à parte do incipiente, permitam-nos discordar. De facto, estes 'Cadernos de Lanzarote' em muito nos dão a ver o pensamento literário e político de José Saramago, e muito do que neles é abordado de uma forma algo meditativa, está presente em vários dos romances, o que nos confirma estes diários como, eventualmente, uma maneira de, mais directamente, nos aproximarmos das motivações do autor.
O caso de Maria Gabriela Llansol apresenta-se-nos, como sempre, desafiante. Ao contrário do que acontece com José Saramago ou Luísa Dacosta (Ou outros casos aqui não referidos, como os de Vergílio Ferreira ou José Régio.), foi bastante cedo que Llansol preparou uma edição de um diário. Em 1985, data em que é editado 'Um Falcão no Punho', a escritora contava com dois livros praticamente invisíveis ('Os Pregos na Erva', 1962, e 'Depois de Os Pregos na Erva', 1973.), com a trilogia da 'Geografia de Rebeldes', e com 'Causa Amante' (1984), que seria o primeiro volume da trilogia 'O Litoral do Mundo'. À data da primeira edição do primeiro diário de Llansol, ela não era ainda uma escritora com um longo percurso. Por isso, o facto de editar um diário não deixa de constituir uma certa surpresa. Isto, até percebermos o que é, para Llansol, um diário. Nada tem a ver com a descrição do quotidiano e, por vezes, parece nem sequer ter a ver com uma representação auto-biográfica. Para entender o contexto deste diário, bem como do segundo volume, 'Finita' (1987), é preciso compreender que, em muito, os textos diarísticos não se distinguem daqueles que integram os romances, e que, quando deles divergem, se deslocam no sentido do pensamento sobre a escrita. A dissolução dos limites entre géneros de escrita pode muito bem explicar alguns aspectos da estranha natureza da escrita de Llansol, e os diários ajudam a compreender as regras, que constantemente se alteram, dessa dissolução. 'Inquérito às Quatro Confidências' (1996) ocupa, de certa forma, um lugar àparte nos diários de Llansol, uma vez que é escrito para Vergílio Ferreira, no sentido de estabelecer com ele uma espécie de diálogo, sem, no entanto se afastar da natureza reflexiva dos dois diários anteriormente publicados. Até à publicação do último romance de Maria Gabriela, 'Os Cantores de Leitura' (2007), não temos mais diários. Nos últimos meses de vida, no entanto, a escritora parece ter decidido regressar ao diário. A edição da série dos cadernos de escrita, com o título genérico de 'Livros de Horas', vai já no segundo volume, e, de certa forma, vem dar continuação àquilo que os três diários editados em vida nos mostravam: não só o pensamento constante que sempre desagua no pensamento sobre a escrita, como também a obsessão de Maria Gabriela com a vida, uma vez que o texto se torna o lugar onde tudo está num estado vivo e actuante, desde as pessoas fisicamente vivas ou mortas, às plantas, aos animais, aos objectos.
Apesar da sua actividade literária ter começado bastante antes, o polémico Luiz Pacheco só se apresenta a título individual em 1958, com a 'Carta Sincera a José Gomes Ferreira com Uma Nota do Autor por Causa da Província'. Pacheco sempre escreveu textos curtos que podem, na melhor das hipóteses, ser considerados contos. Estas curtos textos raramente se inclinam para a ficção, tendendo todos eles para uma carga, no mínimo, auto-representativa. Textos como a 'Comunidade' (1964) são exemplo de como a escrita de Pacheco reflecte uma realidade bastante concreta e que, sabemos, era a da sua atribulada vida. Em 2005 é editado o 'Diário Remendado 1971-1975', um diário propriamente dito, que acompanha Pacheco nas suas meditações sobre o desejo de ser escritor profissionalmente, e nas dificuldades que isso causa, a vários níveis. Como sempre, a escrita de Luiz Pacheco surge-nos despudorada e directa, perfeitamente adequada para o texto diarístico, a que não falta uma profundidade que os desvia da vulgaridade.
São alguns casos de diários em prosa publicados em Portugal, onde o diário é um género literário quase inexistente e ao qual não se dedicam estudos em número suficiente para deles se entender a verdadeira dimensão.
Isto afecta ainda as traduções, sendo muito raro encontrarmos em português diários traduzidos. A título de exemplo, cito 'Odeio-me e Quero Morrer', a recolha de fragmentos autobiográficos de Kurt Cobain e 'Antologia de Páginas Íntimas', que selecciona páginas do 'Diário', das 'Meditações' e da 'Carta ao Pai' de Franz Kafka.

sábado, 12 de março de 2011

Assim se Vive


Anda uma pessoa fechada consigo.
Assim se vive.
Se vive, se finge que vive.

Lindos dias.
Atravessam-se jardins, vê-se gente.
E a paz e o movimento e fora e dentro de casa
um vácuo, um vácuo!

Não dei aquele beijo...
Não o podia dar.
Mas senti que mo pediram.
Aquela mansidão!
Não era bondade, era só desejo.

Não dei aquele beijo que devia ter dado e acei-
tado se fosse mais hábil.
Dado e aceitado sem amor profundo.
Amor profundo!...
Dado e aceitado por gosto, gosto de beijar.
Tão raro, tão imprevisto, tão mal praticado!
Gosto do amor? Talvez.
Desespero, desespero apaixonado.

Irene Lisboa
Outono Havias de Vir
1937, ed. Seara Nova
fotografia de Ralph Eugene Meatyard

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Irene Lisboa: Começa Uma Vida

UMA HISTÓRIA SIMPLES


"Começa Uma Vida" (ed. Seara Nova, 1940, reed. Presença, 1991) é, de certa forma, uma espécie de primeiro romance de Irene Lisboa. Fora os "13 Contarelos" (ed. autora, 1936), Irene publicara antes "Um Dia e Outro Dia- Diário de Uma Mulher" (ed Seara Nova, 1937) e "Outono Havias de Vir- Latente e Triste" (ed Seara Nova, 1938)- ambos reeditados em 1990 pela Presença no volume "Poesia I"- livros de poemas em verso e ainda a famosa "Solidão" (ed. Seara Nova, 1939, reed. Presença, 1991) que, ainda que leve de subtítulo "Notas do Punho de Uma Mulher" e tendo várias vezes em bibliografias elaboradas pela autora sido descrito como "notas e críticas", me parece ainda dentro de um registo muito poético. É discutível se "Solidão" pode ou não ser considerado um conjunto de poemas em prosa, e se o argumento contra pudesse ser o facto de nele encontrarmos frequentemente um registo diarístico, relembre-se o subtítulo do primeiro livro de poemas para percebermos que, dentro do estilo de Irene Lisboa, esse argumento se torna um tanto inválido.




"Começa Uma Vida" inicia com uma pequena introdução com a definição de "novela" em epígrafe. É de concluir que em definitivo Irene Lisboa pretendia que este livro fosse uma novela. Se com o tempo a distinção entre romance e novela foi desaparecendo, a verdade é que, considerando este livro à luz do ano em que foi lançado, ele representa mesmo uma novela, uma narrativa.
"Solidão" seguia mais o sabor do pensamento, da recordação, ao passo que "Começa Uma Vida" segue uma estrutura definida em termos cronológicos. E repare-se ainda que, reforçando a ideia de estrutura, "Começa Uma Vida" inicia com um texto sobre a madrinha da narradora, que será a própria Irene Lisboa, e termina com um texto sobre a morte da madrinha, ou seja, de certa forma, em termos estruturais, a madrinha é a personagem que mais define este livro.
Esta comparação entre "Solidão" e "Começa Uma Vida" poderá, de certa forma, ser inútil, mas faço-a com o propósito de justificar a minha ideia de que o segundo constituirá uma "novela" no sentido específico do termo, ao passo que o primeiro tem mais a ver com o registo do poema em prosa, evidentemente diferente do poema em verso por questões outras que a forma.




Centrando-me agora em "Começa Uma Vida", nele não encontramos a novela que é habitual encontrarmos (Salvo em questões de estrutura que acima expus.). Sem qualquer tipo de demérito, "Começa Uma Vida" não é uma história, no sentido em que não estamos perante um enredo que contém uma intriga e a sua resolução como "clímax" final. De facto, é raro encontrarmos em Irene Lisboa uma escrita que esteja dentro das convenções. Como já noutros textos advoguei, será esse o motivo por que a escrita de Irene se mantém tão extremamente actual. Este livro compreende a evocação de uma série de memórias, organizadas cronologicamente, que nos dão uma visão privilegiada da biografia da autora. É de notar a vontade explícita desta escrita obedecer à realidade, sem acrescentar nada.
Seria injusto, no entanto, dizer que "Começa Uma Vida" se esgota na descrição de memórias: note-se que existe a designação do livro de memórias, mas essa designação não se aplica, de todo, a este livro. Irene assume a distância que a separa das pessoas e dos acontecimentos que narra, e aí reside a sua inteligência: na capacidade de analisar, de chegar a uma interpretação de tudo. E essa interpretação começa no lado pessoal, mas passa também para o lado social. No fundo, aquilo que Irene Lisboa tem de interessante, e ainda mais para a sua época em que tanta prosa hoje nos soa frouxa ou pelo menos desactualizada, é a sua capacidade de cruamente falar do real. Não encontramos aqui artifícios nem dissimulação, mas precisamente um olhar livre sobre as pessoas e os acontecimentos: livre, no sentido em que não há qualquer tipo de preconceito ou de pré-categorização: Irene observa primeiro e analisa depois, ao passo que frequentemente encontramos na literatura a atitude contrária, que é a vontade de fazer coincidir determinada pessoa a uma categoria. Por isso em "Começa Uma Vida" não existem personagens-tipo, mas personagens que, justificadamente, têm determinado lugar.
Outra característica que gostava de apontar é a dualidade de visão que se nota no discurso da narradora: ele divide-se entre a visão cueva, a visão que a narradora teria de tudo na sua infância, e depois a visão presente, da idade adulta, que se umas vezes confirma a primeira, outras naturalmente a desmente ou, pelo menos, reformula.
Não sou também um apologista da separação ente literatura feminina e masculina, porque penso que tal distinção é obsoleta- senão completamente irreal- no entanto, penso ser de referir o facto de Irene Lisboa ser uma mulher. Não por querer fazer comparações, mas para apontar uma série de limitações que autora sofreria à altura: "Começa Uma Vida" é assinado como João Falco, pseudónimo que a autora manteve até este livro, um pseudónimo masculino. De certa maneira, seria impossível no início dos anos 40 uma mulher assinar textos desta natureza, porque não raras vezes se movimenta no sentido dos "assuntos dos homens": a análise muitas vezes se prende com a parte social, como acima referi, e essa leitura das coisas é essencialmente política; além disso a autora expõe de forma clara o universo do comportamento sexual masculino, na pessoa do pai, referindo os vários casos paralelos ao matrimónio e todos os problemas aí originados- questões de paternidade ilegítima, de heranças, etc. Num tempo em que o que se queria de uma mulher escritora era o louvor do macho- sina a que tão poucas escaparam- falar disto não era, de todo, conveniente. Não esqueçamos também que os motivos por que Irene Lisboa foi reformada pelo Estado do ensino não são, ainda hoje, claros.
E por estas e outras razões é absolutamente correcto afirmar que Irene Lisboa estava a anos-luz do seu tempo. A força essencial deste romance é realmente a verdade com que ele é escrito, a sua profundíssima humanidade; mas não se pode deixar de parte o facto de ele poder ter sido escrito nos nossos dias.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Irene Lisboa: Um Dia e Outro Dia

Não foi há tanto tempo assim que me cruzei com os livros de Irene Lisboa, e ainda não os li em considerável quantidade, mas o que já li é-me suficiente para estranhar a relutância do público em lê-la. Poderia dizer que o nosso público é ignorante e reaccionário, mas se calhar é melhor não dizer, podem levar-me a mal.
A verdade é que Irene Lisboa, cujo primeiro livro (Excluindo um pequeno livrinho de contos infantis em 1926.) vem a lume em 1937, sob o pseudónimo de João Falco. Na altura, autores como José Régio, Alberto de Serpa ou Vitorino Nemésio estavam também a publicar as suas primeiras obras. A poesia de Florbela Espanca era já apreciada, mas, a meu ver, num "grupo" que lhe era inferior, e que era, como é hábito sexista, a poesia feminina. O exemplo de Virgínia Vitorino é citado por José Gomes Ferreira a propósito deste assunto, e é certo que haverá mais a dizer sobre esta senhora do que aparenta, a verdade é que ainda se insere num certo tipo de poesia escrita por mulheres que faz louvor aos homens, e da qual só à custa de uma considerável depressão (Digo eu.) Florbela Espanca escapou através de um sofrimento e de uma revolta memoráveis.
No entanto, Irene Lisboa parece-me estar acima de tudo isto. Aqui, a utilização de um pseudónimo masculino actua em dois sentidos: se por um lado ele mascara um nome feminino que poderia ser acusado de subversão, por outro também distancia o autor desse universo de louvor do macho, ainda que o livro leve como subtítulo "Diário de Uma Mulher" e esteja escrito numa primeira pessoa feminina.
Se a partir de Natália Correia, do Poesia 61 com Luiza Neto Jorge, Fiama e Maria Teresa Horta, e nos anos 80 Isabel de Sá, já vimos em definitivo que uma mulher é capaz de uma poesia equiparável (Ou superante?) à dos homens, nos anos 30, mais do que agora, a escrito dos homens é que era a sério.

A injustiça do caso Irene Lisboa parece-me muito óbvia quando se lê os livros pelos livros, e não pelo sexo dos autores, porque, em muitos aspectos, a escrita de Irene Lisboa não é só mais moderna do que a das mulheres do seu tempo, é-o também em relação à de muitos dos homens. Sem retirar crédito a Régio ou a Sena ou a Casais Monteiro, a verdade é que Irene Lisboa soube ver e escrever as coisas de uma forma muito menos dependente do tempo e do contexto em que se insere. A utilização do verso livre e da métrica irregular é só um exemplo.
"Um Dia e Outro Dia" é o primeiro de dois livros de poesia que Irene publicaria em vida, com excepção das folhas volantes e das revistas da Seara Nova.
No entanto, uma análise aos livros seguintes em prosa, como seja a famosa "Solidão" mostram-nos que, mais do que dividir a escrita em poesia e prosa, Irene Lisboa teve a preocupação de narrar a vida, aquilo que é humano e comum a todos nós. Daí que os seus livros, mais de setenta anos depois, não estejam ainda ultrapassados ou sequer datados (A não ser por algumas questões de pontuação ou de algumas palavras entretanto caídas em desuso.).
O livro divide-se em quatro partes, uma primeira sem título em que o primeiro poema se chama "Um dia" e os restantes "Outro dia"; a segunda, "Dias soltos", com algumas indicações de mês; "Mais Dias Soltos", primeiro poema "Outono. Um Dia" e os restantes "Outro dia"; e a quarta "Últimas, Rápidas Notas", primeiro poema "Mais Um dia" e os restantes "Outro Dia".
Parecendo este levantemento de títulos um tanto obsoleto, a verdade é que ele é importante, uma vez que o livro é escrito com o propósito de ser um diário, noção que inova através da utilização do verso e através da não-indicação dos dias, dando apenas uma ou outra nota temporal muito vaga. Isto, não só reforça a ideia de um "documento humano", expressão que muitas vezes vemos associada à obra de Irene Lisboa, como também vai de encontro ao poema de abertura, que termina dizendo
"Como poderá um diário
deixar de ser monótono,
corrente
e vulgar?"

pondo em causa a importância da indicação de um dia como elemento de definição de uma coisa. A verdade é que indicação de um dia, mês e ano não acrescentaria nada aos poemas, porque o que lemos são fragmentos da vida da autora, quer presentes, quer de memória, e aos quais o dia seria uma nota praticamente inútil.
Além disto, ao ler os poemas, percebemos que parte do espírito e da escrita de Irene é uma ironia subtil mas assumida. E portanto, apesar de nos apresentar um livro de poesia/diário com setenta poemas, começa logo por dizer que o formato diário será "monótono, corrente e vulgar".
Claro que, nesses setenta poemas, que a autora define como pensamentos sem forma e sem arte, percebemos que ela atinge aquilo que muitos "poetas" cheios de forma e arte não atinge, que é a capacidade de transmitir uma coisa tão humana como a pele, uma imagem pura da vida, sem artifícios, quer de representação quer de linguagem.
Aquilo que Irene Lisboa nos deixa em "Um Dia e Outro Dia" é, parece-me, uma prequela para os seus livros seguintes, tanto "Outono Havias de Vir" (1937) de poesia, como "Solidão" (1939), prosa. Mas, para todos os efeitos, o que nos lega, é um relato daquilo que faz parte de cada um de nós, daí me parecer apropriada a expressão "documento humano", que implica uma personalidade sem pretensões e incorruptível, como a obra de Irene nos mostra que ela foi. O preço pela originalidade e pela invulgaridade, pagou-o a autora durante a sua vida, e parece-me que continua a pagá-lo a sua obra.

Se até aos anos 90 havia a desculpa de que a obra de Irene Lisboa estava esgotada e inacessível, a verdade é que a Presença lançou uma colecção com os livros que Irene publicou (Ficam, por enquanto, de fora os dispersos.)
E acho muito mau que essas edições não estejam já esgotadas.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Nova, Nova, Nova, Nova!


Não era a minha alma que eu queria ter.
Esta alma já feita, com seu toque de sofrimento
e de resignação, sem pureza nem afoiteza.
Queria ter uma alma nova.
Decidida, capaz de tudo ousar.
Nuna esta que tanto conheço, compassiva,
torturada, de trazer por casa.
A alma que eu queria e devia ter...
Era uma alma asselvajada, impoluta, nova, nova,
nova, nova!


Irene Lisboa
"Outono Havias de Vir"
1937, edições Seara Nova.


imagem: fotografia interior de um pormenor de
SPLITTING de Gordon Matta-Clark

quinta-feira, 5 de março de 2009

a verdade

Parece impossível que tudo à roda de nós seja ou se mostre sempre tão passivo, que a nossa desordem seja só interior, se não comunique ao que nos cerca...
O trabalho obstinado do meu pensamento é o de desarticular as causas do meu mal-estar, mas é um trabalho impotente, de pancadas cegas.

IRENE LISBOA, "Solidão"