domingo, 30 de dezembro de 2012

À Force de les Voir


À force de les voir
Il y a des mots qui vous rendraient malades
Des mots connus mais très dangereux à manier
Sauf si on les entoure de musique
On met bien du sucre autour de amandes amères
Des mots comme sable, herbe
Comme soleil, comme étendus côte à côte
Comme peau dorée, comme cheveux blonds
Comme dents brillantes et lèvres salées
Et puis d'autre mots, encore plus dangereux
" Personne à l'horizon, on peut y aller "
Et les plus dangereux de tous :
" C'est encore meilleur la cinquième fois. "
Heureusement, des tripotées de vieux zingues
Fabriquent de la phénoménologie à tire-larigot
Et vous balancent des bombes atomiques par le travers de la gueule...
Je m'excuse... le souffle de l'inspiration...
C'est pas tous les jours que la muse vous visite.


Boris Vian
Cantilènes en Gelée
1949, ed. Rougerie
desenho de Henri Michaux

Le Sabotage Amoureux de Amélie Nothomb

O AMOR EM TEMPOS DE GUERRA

Já aqui falei da escritora belga Amélie Nothomb, que desde a publicação do seu primeiro romance, 'Hygiène de l'Assassin', em 1992, tem conquistado um lugar especial nas letras francófonas, com vários prémios e com o título de mais importante jovem autora francófona. Nothomb é uma espécie de fenómeno de escrita e não só. Cultivada uma imagem de certa estranheza, a obra tem sabido não ficar àquem. Partindo muitas vezes de referências autobiográficas, as obras de Amélie Nothomb sabem expandir-se para uma série de universos mais vastos e mais densos, o que de certa forma explica a aderência de que a sua obra tem gozado. 


Nascida em Kobe (Japão), filha de diplomatas belgas, Nothomb passa a residir em Bruxelas aos 18 anos e os seus livros não raro se debruçam sobre a infância passada sempre em vários países. É o caso do seu segundo romance, este 'Le Sabotage Amoureux' (Ao contrário do primeiro, não se encontra traduzido para português.), que se centra nos anos em que Amélie viveu em Pequim, vinda do Japão, entre os cinco e os oito anos. Situado no início dos anos 70, o romance começa por narrar-nos uma guerra invulgar. Trata-se da guerra travada pelas crianças do bairro de San Li Tun, crianças de várias nacionalidades, sendo que todas se unem para combater as da Alemanha de Leste, representação simbólica dos mitos sobre comunismo. Chegada do Japão, a narradora pensa que o que define um país comunista é a existência de ventiladores, essas flores metálicas que não existiam no país onde nascera. As batalhas diárias são descritas num tom absolutamente desarmante, uma vez que a visão adulta da escritora se funde na visão simuladamente  infantil e assim, de uma narrativa que se traça a partir do imaginário de uma criança (Com bicicletas que são cavalos, por exemplo.) é posta em causa uma estruturação política, e também uma estruturação educativa, enquanto preparação para a idade adulta e a consciência politizada.
No entanto, o cerne de 'Le Sabotage Amoureux' é uma história de amor. A vida no bairro de San Li Tun altera-se com a chegada de dois irmãos italianos. A narradora rapidamente se apaixona por Elena, uma rapariga bela que não adere à brincadeira da guerra, e cuja frieza exerce a maior das fascinações sobre a jovem narradora.
Desse dia em diante, a grande preocupação da narradora é seduzir a recém-chegada. Inicialmente, tenta cativá-la para o jogo da guerra. Percebendo que essa abordagem não é o caminho certo, tenta acompanhá-la nos seus interesses, mas nada resulta. A situação agrava-se quando Elena arranja um 'namorado' francês, um modelo perfeito e balofo de príncipe encantado. A narradora esforça-se por separá-los e, eventualmente, consegue. No entanto, Elena continua a não estar interessada nela. 
Daqui, rapidamente se gera um jogo de poder perfeitamente cruel, em que a submissão e a humilhação cada vez mais se tornam evidentes.
Amélie Nothomb mostra-se perfeitamente capaz de criar esse jogo doentio sem que ele pareça inusitado para duas crianças. O exercício da crueldade é claro, mas está presente nas situações mais vulgares entre crianças, o que confere ao romance uma tonalidade um tanto sarcástica e negra, que chega mesmo a ser assustadora. 'Le Sabotage Amoureux' coloca-nos perante um facto bastante evidente, a favor do qual argumenta de forma muito eficaz: que a inocência é uma falta de consciência sobre o mal, e não a ausência desse mal. Num derradeiro acto de desespero, a narradora diz a Elena que fará tudo o que ela quiser para lhe provar o seu amor. Elena exige-lhe que corra vinte vezes o recreio da escola. Mesmo sabendo que a sua 'vítima' é asmática, exige-lho repetidamente. Quando se aproxima das oitenta voltas ao recreio, a narradora desmaia. Daqui para a frente, o jogo sofre alterações. A partir de um conselho da mãe, a narradora passa a tratar Elena com indiferença. Perdendo de repente o objecto sobre o qual recaem os maus-tratos, Elena começa a interessar-se pela narradora. Evidentemente, no momento em que a narradora volta a ceder, Elena volta a rejeitá-la. E é entre a rejeição, o controlo e o poder que se nasce a crueldade, assunto verdadeiramente central neste romance.


Será ainda bastante irónico que todos os dias a narradora trave uma guerra com os seus amigos, guerra em que uma boa estratégia garante um bom resultado e em que todas as dificuldades poderão ser vencidas; enquanto o simples enamoramento infantil se apresenta, na mesma personagem, como um caminho sem saída. A narradora encontra-se perante uma figura narcisista, que apenas abdica da sua posição de superioridade quando se sente menos adorada. Uma história assim tem muita mais força quando se passa entre crianças. Se com D.H. Lawrence aprendemos que há em quem se submete um poder equiparável ao daquele que domina (Veja-se 'O Oficial Prussiano'.), a verdade é que no romance de Nothomb isso nunca poderia acontecer, porque uma criança de sete anos não tem consciência das potencialidades do seu papel de submissão. E assim a crueldade se torna unilateral e, portanto, mais intensa.
A restante dimensão, política, do romance, surge-nos também com um fulgor interessante, pois, como se disse, mascaradas sobre um imaginário infantil, há uma série de concepções que começam a desenhar-se e que, ainda que passem um pouco para segundo plano na trama da história, não deixam de ter a sua importância e também de exercer sobre o leitor um certo efeito de fascínio.
Mais ainda, 'Le Sabotage Amoureux' mostra-nos ainda qual a natureza verdadeira do universo de Nothomb, que é o do confronto. Tal como no seu primeiro romance (Falo apenas desse, pois este é o segundo.), há, acima de tudo, um confronto entre duas pessoas, em que a resolução significará, provavelmente, a perdição de um, mas não necessariamente a salvação do outro. Nesse jogo, em que não chega a existir propriamente um vencedor, em termos de ideologia ou ética, se situa a narrativa deste livro, que nos assusta, nos diverte e nos entristece, incluindo-nos a nós mesmos, enquanto leitores, no jogo.

sábado, 29 de dezembro de 2012

Beguinage de Valenciennes

Beguinage de Valenciennes (França)

Begijnhof de Turnhout

Begijnhof de Turnhout (Província de Antuérpia, Flandres, Bélgica) em 1930

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Sarah McLachlan: Fallen


Letra de Sarah McLachlan
Do álbum 'Afterglow' (2004)

(...)
But we carry on our back the burden
Time always reveals
In the lonely light of morning,
In the wound that yould not heal
It's bitter taste of losin' everything that I've held
So dear I'm

Fallen, I have
Sunk so low, I messed up,
Better I should know
So don't come 'round here
Tell me «I told you so»
(...)

domingo, 23 de dezembro de 2012

Placebo: Blind



Letra de Brian Molko, Stephan Olsdal e Steve Hewitt
Do álbum 'Meds' (2005)

(...)

If I could tear you from the ceiling
I’d freeze us both in time
And find a brand new way of seeing
Your eyes forever glued to mine.
(...)

[The devil also offers his spirit]


The devil also offers his spirit
To those who in hatred and proud desire
Are ready for the worst.
Such know not that love leads to all good,
They become poor from hatred
And the fury of the devil,
So that it becomes impossible
They should ever again find or follow
The love of God.
True love praises God constantly;
Longing love gives the pure heart sweet sorrow;
Seeking love belongs to itself alone;
Understanding love loves all in common;
Enlightening love is mingled and sadness;
Selfless love bears fruit without effort;
It functions so quietly
That the body knows nothing of it.
Clear love is still, in God alone,
Seeing that both have one will
And there is no creature so noble
That it can hinder them.
     This is written by Knowledge
Out of the everlasting book.
Gold is often heavily flecked by copper,
Just as falseness and vain honor
Blot out virtue from the human soul.
The ignoble soul to whom passing things are so dear
That it never trembled before Love
Never heard God speak lovingly in it --
Alas! to such this life is darkness!



Mechtild von Magdebourg
trad. Lucy Menzies
in 'German Mystical Writings: Hildgard von Bingen, Meister Eckhart, Jacob Boehme and others'
1991, ed. Continuum
pintura de Marianne von Werefkin


Nous Deux Encore (fragmentos)


Air du feu, tu n’as pas su jouer. Tu as jeté sur ma maison une toile noire. Qu’est-ce que cet opaque partout? C’est l’opaque qui a bouché mon ciel. Qu’est-ce que ce silence partout? C’est le silence qui a fait taire mon chant. 
***
L’espoir, il m’eût suffi d’un ruisselet. Mais tu as tout pris. Le son qui vibre m’a été retiré. 
***
Tu n’as pas su jouer. Tu as attrapé les cordes. Mais tu n’as pas su jouer. Tu as tout bousillé tout de suite. Tu as cassé le violon. Tu as jeté une flamme sur la peau de soie. Pour faire un affreux marais de sang.

Henri Michaux
Nous Deux Encore
1948
desenho de João Alves

Carrie Underwood: Blown Away


Letra de Chris Tompkins e Josh Kear
Do álbum 'Blown Away' (2012)

(...)
Shatter every window 'till it's all blown away
Every brick, every board, every slammin' door blown away,
Till there's nothing left standing, nothing left of yesterday
(...)

Lo Que Queda Después de los Violines



Lo que queda después de los violines
XAVIER ABRIL

Cuando te olvides de mi nombre,
cuando mi cuerpo sea sólo una sombra
borrándose entre las húmedas paredes de aquel cuarto.
Cuando ya no te llegue el eco de mi voz
ni el resonar cordial de mis palabras,
entonces, te pido que recuerdes que una tarde,
unas horas, fuimos juntos felices y fue hermoso vivir.
Era un domingo en Hampstead, con la frágil primavera
de abril posada sobre los brotes de los castaños.
Pasaban hacia la iglesia apresuradas monjas
irlandesas, niños, endomingados y torpes, de la mano.
Arriba, tras los setos, en la verde penumbra
del parque dos hombres lentamente se besaban.
Tú llegaste, sin que me diera cuenta apareciste y empezamos a hablar
tropezando de risa en las palabras, titubeantes
en el extraño idioma que ni a ti ni a mi pertenecía.
Después te hiciste pequeña entre mis brazos
y la hierba acogió tu oscura cabellera.
A veces las cosas son simples y sencillas
como mirar el mar una tarde en la infancia.
Luego la escalera gris, larga y estrecha,
la alfombra con ceniza y con grasa,
tus pequeños pechos desolados en mi boca.
Sí, a veces es sencillo y es hermoso vivir,
quiero que lo recuerdes, que no olvides
el pasar de aquellas horas, su esperanzado resplandor.
Yo también, lejos de ti, cuando perdida en la memoria
esté la sed de tu sonrisa me acordaré, igual que ahora,
mientras escribo estas palabras para todos aquellos
que un momento, sin promesas ni dádivas, limpiamente se entregan.
Desconociendo razas o razones se funden
en un único cuerpo más dichoso
y luego, calmado ya el instinto
y rezumante de estrenada ternura el corazón,
se separan y cumplen su destino,
sabiendo que quizá sólo por eso
su existir no fue en vano.



Juan Luis Panero
Poemas
2005, ed. Relógio d'Água
pintura de Graça Martins

Kate Walsh: It's Never Over


Letra de Kate Walsh
Do álbum 'Clocktower Park' (2003)

(...)
But a memory of distant diesel nights
You put a crown in my head
But I'm wishin' you never had
'Cause now I have less than I ever had
(...)

Poe-Mas-Com-Sentidos 11


como que se constrói a solidão
altissonante e invisível
nos descaminhos da inconsciência
se tranquilo te afogas no sono
não sendo ainda palpável a madrugada
indo a cidade a meio da noite
vazar seus contornos de lixo
seus estertores de vasa e lodo
a cada esquina em cada descampado
_e cedo um círculo isolúvel de luz
persiste horas adentro
nesta mesma folha de insónia
que tão pérfida se faz silêncio

ah! hão-de os meus braços tolher
a vibração dum grito amanhã todos os dias.

Wanda Ramos
Poe-Mas-Com-Sentidos
1986, ed. Ulmeiro
pintura de Paul Klee

sábado, 22 de dezembro de 2012

It's Allright, Ma...


Está tudo bem, mãe,
estou só a esvair-me em sangue,
o sangue vai e vem,
tenho muito sangue.

Não tenho é paciência,
nem tempo que baste
(nem espaço), deixaste-me
pouco espaço para tanta existência.

Lembranças a menos
faziam-me bem,
e esquecimento também
e sangue e água a menos.

Teria cicatrizado
a ferida do lado,
e eu ressuscitado
pelo lado de dentro.

Que é o lado
por onde estou pregado,
sem mandamento
e sem sofrimento.

Nas tuas mãos
entrego o meu espírito,
seja feita a tua vontade,
e por aí adiante.

Que não se perturbe
nem intimide
o teu coração,
estou só a morrer em vão.



Manuel António Pina
Cuidados Intensivos
1994, ed. Afrontamento
fotografia de Slava Mogutin

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Amália: Grito



Letra de Amália Rodrigues
Do álbum 'Lágrima' (1983)

The Prince's Progress (fragmento)


Till all sweet gums and juices flow, 
Till the blossom of blossoms blow, 
The long hours go and come and go, 
 The bride she sleepeth, waketh, sleepeth, 
Waiting for one whose coming is slow
:— Hark! the bride weepeth. 

'How long shall I wait, come heat come rime?'
— 'Till the strong Prince comes, who must come in time' 
(Her women say), 'there's a mountain to climb, 
 A river to ford. Sleep, dream and sleep; 
Sleep' (they say): 'we've muffled the chime, 
 Better dream than weep.' 

In his world-end palace the strong Prince sat, 
Taking his ease on cushion and mat, 
Close at hand lay his staff and his hat.
'When wilt thou start? the bride waits, 
O youth.'— 'Now the moon's at full; I tarried for that, 
Now I start in truth. 

'But tell me first, true voice of my doom, 
Of my veiled bride in her maiden bloom; 
Keeps she watch through glare and through gloom, 
 Watch for me asleep and awake?'
— 'Spell-bound she watches in one white room, 
 And is patient for thy sake. 

'By her head lilies and rosebuds grow; 
The lilies droop, will the rosebuds blow? 
The silver slim lilies hang the head low; 
 Their stream is scanty, their sunshine rare: 
Let the sun blaze out, and let the stream flow, 
 They will blossom and wax fair. 

'Red and white poppies grow at her feet, 
The blood-red wait for sweet summer heat, 
Wrapped in bud-coats hairy and neat; 
 But the white buds swell, one day they will burst, 
Will open their death-cups drowsy and sweet
— Which will open the first?' 

Then a hundred sad voices lifted a wail, 
And a hundred glad voices piped on the gale: 
'Time is short, life is short,' they took up the tale: 
 'Life is sweet, love is sweet, use to-day while you may; 
Love is sweet, and to-morrow may fail; 
 Love is sweet, use to-day.'

Christina Rossetti
The Prince's Progress and Other Poems
1866, ed. McMillan
gravura de Dante Gabriel Rossetti
(feita para a 1ª edição deste livro)

[podes levar os dias que trouxeste]


podes levar os dias que trouxeste

os pássaros soterraram agosto
e sem lugar um homem cega pela janela
o mar que jura ter tocado com o sangue

podia ter sido o amor se não tivesse vindo
tão directamente da sede
um duplo rosto de enganos e os braços
que saíram desertos
o eco da morte reverbera na pele
com que vejo a tua ausência encher as ruas
um choro de papel cai pela terra
e nunca foi tão tarde ser depois

daqui onde o grito surdo incendeia
a refutação da madrugada
donde o crânio esmaga o coração
um homem corta pela janela
a própria certeza de ter sido

não    é tarde demais para uma manhã
que foi a enterrar em tantas noites

as escadas morreram de sede
a terra caiu em nunca

podes levar os dias que trouxeste

Pedro Sena-Lino
Zona de Perda/ Livro de Albas
2006, ed. Objecto Cardíaco
imagem de David Penprase

[Anoitece em inferno a minha casa.]


Anoitece em inferno a minha casa.
Fico com este começo de verso
a serenar a exaltação de não dizer nada.
Deixem-me com este sorriso a morrer
por uma sílaba mais real onde um verso
me sossegue
com unhas de lama e sangue,
como garras.
Anoitece em inferno a minha casa.
Fica a certeza de não ter fim o que
de inutilidades se basta,
ou apenas o instante em que,
por um verso, eu fui
à outra parte da casa.

Helga Moreira
Os Dias Todos Assim
1996, ed. &etc
pintura de Luis Caballero

Annie Lennox: The Saddest Song I've Got



Letra de Annie Lennox.
Do álbum 'Bare' (2003)

Darling are you feeling
The same thing that I'm seeing
The troubles of the day
Took my breath away
Took my breath away
Now you're no longer talking
And I'm no longer hearing
There's nothing left to say
Said it anyway
Said it anyway
And I want you not
I need you not
I'm dying
Cos this is the saddest song I've got
The saddest song I've got
Darling are you healing
From all the scars appearing
Don't it hurt a lot
Don't know how it stops
Don't know how it stops
Now there's no sense in seeing
The colours of the morning
Can't hold the clouds at bay
Chase them all away
Chase them all away
And I'm frozen still
Unspoken still
Heartbroken
Remembering something I forgot
Something I forgot

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Calor de Agosto


O excesso
que de ti acumulo, como se o mundo fosse apenas caos
mal, catástrofe, leva-me a questionar que sentido
tem, nele, o caldo cultura
onde esvoaçam as borboletas
de Nabokov.
O da fusão do negro
fogo?
Outubro. Outubro.
Calcinado.
De vermes contaminando as flores que, no deserto,
crescem bíblicas
e ásperas.
Quantas vezes me fizeste morrer de incêndio
e susto: do colapso
aguardado?
Colapso. Colapso.
Foi o que provocaste.
Constrição.
Vulnerabilidade.
Mas olha as térmitas que se alimentam da noite
e diz-me, animal predador, o que é o perigo? Que perigo corro,
e porque corro para o perigo de te ler em escuras,
em viscosas águas,
onde tudo acontece terminal: uma osga,
uma carraça,
e na loucura que contamina o calor raivoso
deste Outubro.
Ossos de ouvido, tragam-me de novo
os dias curtos e felizes da chuva _os dias quer da razão
quer do real.

Eduarda Chiote
O Meu Lugar à Mesa
2006, ed. Quasi
pintura de Francis Bacon

Ainda a Tua Partida


Deixaste-me a boca cheia
de lágrimas, como se
o choro sufocasse.
Devastado, o rosto
ainda não conseguiu
erguer-se da lama.
Como pudeste fazer tanto
mal?

A vida, por vezes,
é uma imitação grosseira
se si própria e castiga-nos
assim, sem beleza.

Parece que a cidade
está deserta. Há sombras,
cintilações de lixo.
Procuro nos poetas
algum alívio
para esta mágoa.
Os livros são seguros,
fiéis ao nosso olhar.

Isabel de Sá
Erosão de Sentimentos
1997, ed. Caminho
pintura de Paul Gauguin

Mumford and Sons: Broken Crown



Letra de Marcus Mumford
Do álbum ''Babel'' (2012)

Fragmentos de ''Solidão''




Tantas lágrimas no chão, que ninguém enxuga! Tantas!
Quem as chorou? Fui eu, sim, fui eu...
Dói-me o coração. Sinto nele uma opressão, uma amargura solta e grande, sem fim, só de olhar para este chão molhado.
São as minhas lágrimas... Eu chorei, estou-o vendo. O meu coração chora sempre, sempre, dentro de mim, até inconscientemente!
Esta vista do chão líquido, com as luzes fixas nele magoa-me. E desperta-me. Fala-me. Quem chorou? Quem podia ter chorado, senão eu? Ninguém tinha a minha fonte de lágrimas em si!
A este chão tão húmido há-de haver quem chame espelho, lago e rio... Quem lhe dê bonitos nomes. E lhe ligue ideias festivas. Eu só lhe chamo chão molhado. Molhado de lágrimas! Chão sombrio, não de luz.

[...]

Flutuamos sempre ao sabor das boas e das más impressões...
A minha doce impressão desta tarde! Um desejo quase sem fundo, inaplicado, de bondade e de ternura.
Pego nesta revista francesa, sem a mínima vontade de a ler. Olho-a e sinto um instintivo recuo, um choque. Inveja... Apesar de me sentir apaziguado. Inveja de quê? De tudo o que eu julgo ter sido dado aos outros! Do que nunca ninguém me concedeu ou me permitiu; a agitação, a posse, a vida... Tudo. Muitíssima coisa!
Existência monótona, monótona... Cai-lhe hoje em cima a doçura de uma tarde destas. Mas nunca a perfeita paz.

Irene Lisboa
Solidão
1936, ed. Seara Nova
pintura de Giulio Aristide Sartorio

sábado, 17 de novembro de 2012

Agustina tem destas coisas... (33)

«(...) No Mundo, passo por todos, vendo alguns; na vida esqueço-me de quase todos, esquecendo-me de mim. Quase tudo me é indiferente.»
Há nesta carta o característico tom provocador de Florbela. Dirige-se a uma presa, tem que paralisá-la pelo espanto, pela admiração e até pelo desgosto que lhe causar. Mas não deixa de ser certo o que diz.





de 'Florbela Espanca' (1978)

Pas Comme Il Faut

Sobre 'Houselife', o documentário sobre a casa de Bordeaux de Rem Koolhaas



Na mitologia grega, Kronus é o deus que que devora os seus filhos logo que estes nascem, mostrando metaforicamente o quão breve é a vida de uma pessoa na sucessão do Tempo. Outro dos efeitos do tempo, que fica excluído do mito grego, mas que é visível em qualquer estudo de História, é o de operar alterações significativas em certas questões que, uma vez alterado o contexto, encontram significações totalmente diferentes.

Em Mies Van Der Rohe, a depuração a nível de meios, de forma e de materiais, não prejudicava a eficácia das estratégias encontradas para resolver os problemas arquitectónicos implicados na grande maioria da obra. Para este arquitecto, que definia as suas obras como pele e ossos, tinha sentido acreditar que deus está nos detalhes, pois efectivamente era nos detalhes das estratégias, dos programas e das articulações que a obra contrariava a sua simplicidade formal e, na maioria dos casos, material.

Rem Koolhaas, arquitecto holandês cuja obra tem conhecido uma considerável internacionalização, é um dos arquitectos europeus contemporâneos que nos apresenta propostas mais complexas, conceptuais e, daí, polémicas. O próprio discurso do arquitecto, por vezes de uma agressividade algo redutora (Fuck the context, por exemplo), já se tem ocasionalmente sobreposto ao pensamento que fica expresso, por exemplo, em 'S/M/L/XL' e que, independentemente de se concordar ou não, tem uma certa amplitude. A obra construída prima pela exuberância formal, pela independência relativamente ao contexto directo do espaço envolvente e por uma relação estreita com a ideia de movimento, que está presente tanto na organização espacial desses edifícios, como no seu aspecto mais plástico.

Se bem que a junção de todos estes factores possa resultar em que, muitas vezes, as obras de Koolhaas sejam mais notadas pela sua aparência escultórica e geometricamente surpreendente, é verdade igualmente que os seus edifícios estão cheios de detalhes que alimentam tanto a poética como a utilização desses mesmos edifícios. O documentário 'Houselife' de Ila Bêka e Louise Lemoîne mostra precisamente a importância dos detalhes numa obra de Koolhaas, a casa em Bordeaux (França).

Mies Van Der Rohe é uma confessa influência de Rem Koolhaas, mas se a força dos detalhes, para Mies, funcionou como Deus, para Koolhaas acaba por funcionar como o Diabo. A opção dos realizadores deste filme, de filmar a empregada nas lides domésticas, acaba por revelar um pouco aquele que parece ser o objectivo, algo tendencioso, do filme, que é o de mostrar como a casa não funciona.

De facto, a casa de Bordeaux é construída com algumas contingências desafiadoras para o arquitecto, principalmente o facto do cliente ser paralítico. A preocupação em não só garantir como facilitar a circulação do cliente pela casa, que se desenvolve em três pisos, é claramente estruturante ao longo de todo o projecto, que conta com plataformas eleváveis, com como com algum mobiliário pensado especificamente para o handicap do chefe de família. Mas, excluindo este tipo de pormenores, Koolhaas emprega uma série de outros, quer tirando partido de tecnologias várias (caso dos joysticks que controlam a abertura das portas e que respondem perante os alarmes), quer para criar toda uma gramática estética e plástica que em muito definirá a casa (portas circulares, degraus de escadas minúsculos, armários removíveis, bancas de betão, etc).

A grande eficácia do documentário não é, na verdade, a de mostrar a casa ou de a observar do seu ponto de vista mais directo, enquanto obra de Arquitectura. Pelo contrário, são os aspectos mais prosaicos da vida naquela casa que os realizadores pretendem mostrar.

Lídia Jorge afirmava, no seu romance 'A Costa dos Murmúrios' que não é possível suster uma ruína só com a vontade. 'Houselife' poderia muito bem confirmar que também não é possível suster uma casa só com a vontade. É a manutenção da casa de Bordeaux que é mostrada e, então, vemos como os detalhes de Koolhaas se tornam difíceis de utilizar (portas demasiado pesadas, escadas por onde não é possível transportar nada), difíceis de limpar (uma janela acessível só para quem está dentro da banheira), de uma fragilidade excessiva e custosa (um joystick partido implica a inutilização de uma ou várias portas) e até mesmo negligentes (caso dos pequenos degraus da escada que a empregada sobe carregando o aspirador; ou das varandas sem qualquer tipo de guarda).

O que parece ressaltar de 'Houselife' é que, nesta casa, Koolhaas demonstra uma perícia impressionante no que toca a dominar não só a plasticidade da casa (conseguida não só através da concepção do edificado em si, mas também a nível das texturas dos materiais), mas também do controlo irrepreensível dos campos visuais (os cheios e vazios construídos são formas de relacionar os espaços da casa uns com os outros, e também os espaços da casa com os espaços envolventes, criando, efectivamente, uma atmosfera poética no interior da casa). Mas a durabilidade de um edifício é garantida através da utilização e da manutenção que, neste caso, oferecem inúmeras dificuldades e falibilidades. Koolhas exercita o seu virtuosismo, mas, não podendo destacar-se pela eficácia total do trabalho, acaba por destacar-se pela surpresa que causa, como um adolescente talentoso. E, no fim, a casa de Bordeaux acaba por nos sugerir precisamente o título de um dos capítulos deste filme: pas comme il faut.



quinta-feira, 15 de novembro de 2012

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Lei da Bola


Vulgarmente
os amantes desambientam
estes muitos se deram
em troca de bala.

Pequenas bandeiras a meio pau
adejam um rei
no de cabelos chamuscados (Valsa-Se).

Nenhuma construção domina
a paisagem que Há
e não se avista.

Cavalos sim, q.b.,
tão planetariamente cães num flash
que Eu ar
rombo. Pousadas vacas,

com uma só mancha preta
que se pode prolongar,
ninguém está livre de ser apanhado.

Pela sombra.

Regina Guimarães
Anelar, Mínimo
1985, ed. &etc
imagem de Floria Sigismondi


domingo, 4 de novembro de 2012

L'Homme Approximatif IV (fragmentos)



filtre la fleur passoire de clairière
la fraise tourne son oeil gras à l'intérieur matelassé de lèvres
et l'index du pistil touche l'incrédule plaie du ciel
saccagé par les attaques nocturnes des loutres
étendu auprès de nous où les louches équilibristes se laissent tomber
                                                                             [dans le filet
au saule sont accrochés les harnais de la tristesse
que les longues journées d'automne ont graissées avec caresses
                                                                           [de hamac

*

le linge aux flammes blanches rit dans sa langue d'alcool
et l'insecte voiture d'enfant plie bagages et ressorts
il s'en va sur la route imberbe où la parole brode le liège
et l'arbre suce la résine aux gamelles des coeurs torrides

Tristan Tzara
L'Homme Approximatif
(1ª edição: 1931)
2007, ed. Gallimard
imagem de Lazlo Moholy-Nagy

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Elogio de Maria Teresa


Eu que às vezes encontro sem saber porquê
um simples não sei quê em estátuas retratos antigos
de límpidas mulheres desconhecidas
eu que de súbito à primeira vista me apaixono adolescentemente
por essas mulheres mortas mas contemporâneas
de um pobre poeta português do século vinte
levadas até ele talvez por um discreto gesto
às formas e às cores impresso por um homem
que na arte encontrava a única razão de vida
abro a pasta e deparo com o teu retrato
um retrato de passe anos atrás tirado
no sítio suburbano onde primeiro vivemos
e juntos suportámos com surpresa a solidão
de sermos dois e ela só vergar os ombros onde os dias nos poisavam
Conheço outros retratos teus onde também estás viva
um deles bem me lembro estava à minha espera em saint-malo
uma tarde ao voltar do monte saint michel
nesse verão bretão onde então procurava
justificação por mínima que fosse para a vida
numa das muitas fugas de mim próprio
que às vezes empreendo embora antecipadamente certo
de que só pela morte enfim me encontrarei comigo
com todos quantos verdadeiramente amei
alguns desconhecidos e alguns mesmo inimigos
sobretudo sedentos de justiça
de que depois somente de bem morto hei-de dispor daquela paz
que sempre apeteci mas nunca procurei
até por não ter tempo para isso nem sequer para saber
coisas simples como saber quem sou porque ao certo só sei
que muito mais passei naquilo em que fiquei
nem que fossem os filhos ou os versos
que fiquei muito mais naquilo onde passei
como passos na areia no inverno ou repentinas sensações
de me sentir de súbito sensivelmente bem
encher o peito de ar sentir-me vivo
São retratos diferentes de quem foste um breve instante
e nele floriste e apenas não murchaste
por haveres ficado um pouco mais em tais fotografias
Mas há em todos eles uma graça inesperada
a surpresa da corça ou restos dessa raça
que há em ti talvez um pouco mais que nas demais mulheres
expressão sempre surpreendente da surpresa
mesmo até para quem te conhece tão bem como eu te conheço
Se nuns mais do que noutros sem excepção desponta
a madrugada que era e é esse teu riso claro
quem primeiro falou de riso claro
talvez houvesse ouvido a água quando corre sobre os seixos de
um ribeiro
talvez a houvesse visto branca e fresca
mas teve de inventar pra conquistar essa metáfora
quando eu que te ouvi rir não fiz mais do que ouvir
e sei que o som da água imita o teu sorriso
Talvez dentro de séculos se não fale já de ti
coisa aliás sem maior importância
que a de não ter alguém deixado o teu retrato
em qualquer dos museus esparsos pelo mundo
Eu estarei morto e pouco poderei fazer
por ti simples mulher da minha vida
Mas isso não importa importa esta manhã
este bar de milão onde olho o teu retrato
enquanto espero o meu pequeno almoço
saboreio as cervejas em jejum tomadas
e começam de súbito a chegar aos meus ouvidos
inesperados os primeiros acordes do concerto imperador
Se um dia penso porventura te perder
mulher simples recôndita e surpreendente
sobre quem recaiu o peso do meu nome
só então saberei quanto valias verdadeiramente
Estás presente em mim como ninguém
e sabes quão terrivelmente amei e amo outras mulheres
além de ti além de minha mãe
Mas tu tens o meu nome clara rilke tu trocaste
a tua alegre vida irrequieta
no único infeliz dos teus negócios
por um poeta pobre velho e feio como eu
Contigo aprendi coisas tão simples como
a forma de convívio com o meu cabelo ralo
e a diversa cor que há nos olhos das pessoas
Só tu me acompanhaste súbitos momentos
quando tudo ruía ao meu redor
e me sentia só e no cabo do mundo
Contigo fui cruel no dia a dia
mais que mulher tu és já hoje a minha única viúva
Não posso dar-te mais do que te dou
este molhado olhar de homem que morre
e se comove ao ver-te assim presente tão subitamente
Bons dias maria teresa até depois
preciso de tomar o meu pequeno almoço
a cerveja era boa mas é bom comer
como come qualquer homem normal
e me poupa ao perigo de até pela idade
me converter subitamente num sentimental


Ruy Belo
Transporte no Tempo
1973, ed. Moraes
desenho de Elizabeth Eleanor Siddal

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

L'Orage Rompu de Jacqueline Harpman

O JOGO DE NÓS MESMOS
Já aqui, a propósito de Amélie Nothomb falei sobre a ausência de fluidez cultural da Europa. Depois de uma investigação mais ou menos detalhada, posso dizer que não existe nenhuma tradução para português da autora, também belga, Jacqueline Harpman. Isto, apesar de Harpman, que aliás faleceu em Maio deste ano, ser uma autora bastante apreciada na Bélgica e em França, tendo inclusivamente sido laureada em 1996 pelo Prix Médicis, pelo romance 'Orlanda'.
Esta nota de leitura, no entanto, será sobre o livro seguinte, editado em 1999, 'L'Orage Rompu', romance em que a formação de Jacqueline Harpman, psicanalista de profissão, é bastante notória.
'L'Orage Rompu' fala-nos do encontro entre dois desconhecidos, a bordo do TEE entre Paris e Bruxelas. Cornélie havia-se deslocado à capital francesa para o funeral do seu ex-marido, Gustave, onde reencontra os dois filhos. Henri é um homem de negócios, que se senta perto de Cornélie, que ela imagina como sendo o mais comum dos mortais. A conversa entre os dois começa quase por acaso. Eventualmente, juntam-se à mesma mesa, a conversa passa do tom circunstancial para um tom íntimo. Em pouco tempo, Cornélie e Henri entram num jogo verbal que parte e chega às suas infâncias, às suas origens e às suas referências. O jogo, realmente, parte e chega a essas questões, mas entre partida e chegada, passa por zonas psicológicas em que a especulação ganha vantagem relativamente à verdade dos factos.
Cornélie, a narradora da história, ocupa o lugar central da trama. O texto em si oscila entre os diálogos dos dois e as memórias que ocorrem a Cornélie. Através destas duas 'formas', podemos perceber a reinvenção que Cornélie faz de si mesma, podendo também partir do princípio que o mesmo acontecerá com Henri.
Na vida de Cornélie, parece haver uma espécie de linhagem de três mulheres de importância crucial: a sua avó, a sua mãe e a sua filha. É através da comparação com estas mulheres que Cornélie se define, uma vez que, logo no início do texto, se define como uma mulher indecisa, dividida e anti-confrontacional. Mas Harpman consegue evitar com bastante eficácia os caminhos mais óbvios e mais básicos da análise psicológica. Se entendemos, por um lado, a tendência da autora para inserir a sua personagem num sistema de correlações familiares e amorosas, por outro também conseguimos ler o texto sem que isso se sobreponha à lógica ou à veracidade que, notoriamente, Harpman procura. Isto é tanto mais importante num romance como 'L'Orage Rompu', que vive da complexidade dos seus personagens, e não da complexidade do seu enredo.
Cornélie conta e reinventa o seu passado sempre através das pessoas que a rodeavam. Fala do pai, falecido precocemente, cuja profissão como gestor de empresas em via de falência, fez com que a família se mudasse frequentemente durante a infância da filha, entre a Holanda, Inglaterra e várias cidades belgas. Só após a morte do pai Cornélie passou a ter residência fixa, em Bruxelas, pnde passa a viver com a mãe e a avó. Uma e outra são figuras fortes. A mãe retoma os clientes do falecido marido e a avó leva a sua vida com uma espécie de leviandade séria, preocupada em ser resoluta face aos sofrimentos. Em plenos anos 60, Cornélie econtra-se a viver na grande cidade, atravessa as reformulações sociais, o feminismo, as revoluções sexuais, enfim, a conquista de uma certa forma de liberdade, no que diz respeito à sexualidade, aos comportamentos, ao trabalho, etc. As colegas de escola de Cornélie, cujos comportamentos são ora conservadores ora modernos, fazem-na descobrir a sua própria psicologia, e, consequentemente, o seu próprio desencaixe, com o qual acaba por ter dificuldades em lidar, durante muito tempo, e que diz essencialmente respeito à descoberta passional.
«Et l'amour, grande-mère? Faut-il aimer?» Elle m'a répondu: «Eh bien, moi, je me suis mariée, alors, je ne sais pas.»
(p.101)
apesar de 'L'Orage Rompu' ser, no geral, uma história de pendor triste, protege-se de excessos porque Harpman domina com relativa facildade uma série de processos de ironia, que reforçam a tendência especulativa que, no fundo, está sempre implicada no (re)contar duma história íntima, como o próprio Henri acabará por constatar:
Nous jouons tous un jeu. On crée un personnage, on le prend pour soi et on s'y enferme. Tout à l'heure, quand vous m'avez parlé de mon complet trois-pièces, j'ai sursauté intérieurement mais bien entendu vous n'en avez rien vu car je suis un homme d'affaires, je négocie, donc je dissimule, c'est comme le poker, on ne doit pas se révéler avant le moment utile.
(p.183)
no fundo, toda a conversa, que faz entrever uma espécie de ligação amorosa subliminar, passa por esse jogo entre o que se esconde e o que se revela, uma espécie de jogo de nós mesmos. Isto porque, como percebemos com a leitura de 'L'Orage Rompu', a própria manipulação dos factos, o eterno jogo interpretativo, não nos afastam da verdade. Porque a interpretação dos factos, sendo pessoal, acaba sendo também autobiográfica. E, por assim dizer, o que gostaríamos de ser, ou o que gostaríamos de ter sido, diz de nós tanto ou mais do que o que somos ou o que desejaríamos ter sido. E, assim, a infidelidade aos factos pode ser uma fidelidade à verdade.
Vous revêz. Tout ceci est un rêve qui se passe entre deux réalités. Nous ne sommes nulle part, nous ne savons pas par où nous passons, nous traversons une campagne toute noire, ce moment ne compte pas, c'est un leurre. Je n'existe pas. Ce que vous coyez que je suis n'existe pas, c'est une effect du hasard, une illusion d'optique qui disparaît quand on bouge la tête.
(p.191)
diz Cornélie, quando o comboio está próximo de Bruxelas. No fundo, toda a viagem, entre duas cidades, através de uma massa negra, parece uma espécie de regresso a essa infância em que a sua família se mudava constantemente, enquanto tudo ainda estava por definir, ou se redefinia constantemente. Assim, enquanto o encontro está prestes a terminar, Cornélie diz que não existe, e que tudo aquilo que deu a Henri não existe, não é verdadeiro. No entanto, apesar de ter suspendido o encontro com Henri por achar que o nascer da paixão (O romper da tempestade que dá título ao livro.) a afastara da verdade e a levara a criar uma melhor versão de si mesma, encontramo-la, no epílogo, dez anos depois recordando esse encontro.
E se, por um lado, o desenlace de 'L'Orage Rompu' nos pode parecer um tanto derrotista, é também verdade que o romance nos deixa uma noção muito clara: que a duração de uma paixão não é o que define a sua intensidade, mas sim a verdade que foi tocada nessa paixão. E assim, um encontro de duas horas, entre duas pessoas, pode ser o mais intenso de uma vida.

domingo, 21 de outubro de 2012

Anathema no Paradise Garage (20.10.12)

Nem sempre acontece que uma banda consiga ter um percurso em que a quantidade de trabalhos conhece uma regularidade na qualidade. Em vinte e dois anos os Anathema produziram duas minicassetes, quatro EPs, nove álbuns e dois álbuns de revisitação própria, enquanto várias vezes alteraram a sua constituição e se atravessaram do doom/death-metal para o rock progressivo, progressivamente. Conquistaram um lugar de culto, tendo alguns dos seus álbuns sido aclamados como sendo dos melhores deste último género.
Quando pensamos que tudo isto é feito por uma banda que, mesmo agora, é uma espécie de banda de família (Os irmãos Cavanagh e os irmãos Douglas.) que, de certa forma, vive a dinâmica de garagem eternamente, é difícil não ficarmos impressionados. A grande solução é, ainda e sempre, a música. Os Anathema são uma feliz rara junção de vários cérebros criativos, que têm sabido, da melhor forma, fazer e crescer daquilo que fazem. Em 'We're Here Because We're Here' (De que falei aqui.) álbum lançado em 2010, ficava claro que a atmosfera depressiva estava, talvez, a desaparecer, dando lugar a ambiências mais luminosas, que mesmo assim não deixavam de ser pesadas. O pesado, aqui, significa profundo. É essa a principal característica da música dos Anathema: parece sondar aquilo que de mais íntimo e verdadeiro trazemos em nós, falam directamente ao âmago dos sentimentos, dos conflitos, das esperanças e dos pensamentos. Nunca foram lamechas, mas foram sempre emotivos.
A passagem, em 2011, pelo Vagos Open Air (Falei dela aqui.) só poderia ter corrido melhor se não tivessem acontecido os desastres técnicos que aconteceram. Em vésperas do lançamento de 'Falling Deeper' (Também dele se falou aqui.) que revisitaria a fase inicial da banda, os Anathema traziam na bagagem 'We're Here Because We're Here', bem como uma série de clássicos, que puderam ser apreciados, ainda assim, independentemente das constantes falhas de som. No entanto, dois álbuns volvidos, incluindo um de originais, o mais recente 'Weather Systems' (Estava-se mesmo a ver que falei dele. Aqui.), os fãs portugueses estavam mesmo em necessidade de um concerto dos Anathema. O facto deste decorrer numa sala fechada e intimista como a do Paradise Garage só podia ser uma boa notícia, uma vez que reuniria a banda de uma forma mais próxima com o público e, bem vistas as coisas, também prometia um maior controlo sobre os aspectos técnicos, completamente diferente do que contece num festival.
A primeira parte do concerto ficou entregue aos californianos Astra. Sinceramente, tenho uma relação estranha com primeiras partes de concertos. É verdade que bandas de que gosto já as fizeram, usando-as como forma de divulgar o seu material, mas o facto é que, na maior parte das vezes, a primeira parte é uma parte que ninguém está completamente interessado em ouvir. Os Black Box Revelation começaram por fazer primeiras partes dos dEUS, e no entanto são uma banda perfeitamente apetecível, mas até conquistarem o direito a concerto próprio, é difícil pensar que tenham sido realmente ouvidos. Os próprios Anathema por aí começaram. Mas, pormenores destes àparte, os Astra apresentaram, ao longo de meia hora um interessante conjunto de canções, em que a sonoridade rock se deixava tocar pelo metal e pelo folk, que deixam certamente a vontade de ouvir mais, particularmente Black Chord.


 
Os Anathema entraram em palco com as duas partes de Untouchable, do álbum mais recente. Numa versão um pouco mais eléctrica do que a de estúdio, a canção brilhou nas suas duas partes, especialmente pela harmonia perfeita entre as vozes de Vincent Cavanagh e de Lee Douglas, que ganha mais destaque na segunda parte da canção. Mas perceber-se-ia logo que seguinda que nem só 'Weather Systems' estava directamente sob o microscópio. De uma assentade, os Anathema tocaram Thin Air, Dreaming Light e Everything, alguns dos pratos-fortes mais luminosos do álbum anterior, que mantiveram a abertura do concerto do lado mais positivo da música dos Anathema, sendo esta última uma boa oportunidade para destacar o trabalho de Daniel Cardoso nos teclados.
Logo a seguir, deu-se uma inversão de atmosfera, com o regresso a 'Judgement', o álbum de 1999, de que se rebuscou, para começar, Deep, uma das canções mais tristes mas mais libertadoras da discografia dos Anathema, e uma das melhores letras de Vincent Cavanagh. Ainda do mesmo álbum, ouviram-se a seguir Emotional Winter e Wings of God, momentos mais calmos, mas bastante mais tristes, que soarem muitíssimo bem antes do regresso a 'We're Here Because We're Here' com A Simple Mistake, onde, além de uma vez mais podermos apreciar a junção das vozes de Vincent e Douglas, contámos com o brilhante solo de guitarra eléctrica de Daniel Cavanagh que termina a canção.
Lee Douglas brilharia ainda, sozinha, a seguir, com Lightning Song, do álbum mais recente, uma canção bela e pesada que o público soube acompanhar devidamente. Esta canção veio confirmar aquilo que já desde há vários anos se pressentia: que Lee Douglas é, de facto, uma mais-valia para os Anathema. Lee haveria de estar presente para The Storm Before the Calm, também do álbum mais recente, uma longa odisseia escrita por John Douglas, o baterista, que dum começo violento chega a momentos de uma beleza contemplativa que em muito representam aquilo que os Anathema estão a fazer agora. Seguiu-se um dos melhores momentos de 'Weather Systems', bem como um dos melhores momentos dos Anathema, The Beginning and The End, uma das canções mais emotivas e mais explosivas de todo o álbum, que resultou muitíssimo bem ao vivo.
Outro regresso a 2010 deu-se com Universal, uma das canções mais orquestrais, mas que não perdeu a sua força na transposição para o palco, bem pelo contrário.
Para o final, os Anathema reservaram três clássicos do álbum de 2003, 'A Natural Disaster': Closer, onde uma vez mais se notou o papel de Daniel Cardoso, A Natural Disaster, outro grande momento de Lee Douglas, e Flying, que termina com mais um esplendoroso solo de guitarra eléctrica de Daniel Cavanagh.

Para os encores, ficaram reservados One Last Goodbye, momento emocional por excelência (Recorde-se que se trata de uma despedida à mãe dos irmãos Cavanagh.) que, efectivamente comoveu e, claro, o clássico Fragile Dreams do álbum 'Alternative 4', que foi um final muito à altura de um concerto realmente perfeito.
Em duas horas, os Anathema conseguiram tocar algumas das suas melhores canções. A violência, a emotividade e a profunda beleza das canções falou por si, e se a sala do Paradise Garage era quase pequena demais para o público, para conter a força da música dos Anathema, não parece haver sala grande o suficiente.
 

Untouchable part1/ Untouchable part2/ Thin Air


Dreaming Light


Everything/ Deep

Emotional Winter/ Wings of God

A Simple Mistake/ Lightning Song


The Storm Before the Calm (fragmento1)
The Storm Before the Calm (fragmento2)


The Beginning and the End/ Universal/ Closer
´

A Natural Disaster

Flying

One Last Goodbye

Fragile Dreams

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Manuel António Pina

(1943-2012)

O seu primeiro poema começava assim
 
Os tempos não vão bons para nós, os mortos.
 
isto, em 1974. Em 2012 não estamos, os vivos, muito melhores. Manuel António Pina escreveu sobre isso, tanto na sua poesia, como nas suas crónicas. O seu olhar, arguto, melancólico, lúcido e até saudoso deixa-nos algumas páginas (Poéticas e não só.) que muito terão a dizer sobre estes tempos, que não estão bons para nós, estejamos mortos ou vivos, páginas que inclusivamente lhe mereceram, no ano passado, o Prémio Camões.
Hoje, Manuel António Pina junta-se a esses de quem falava no seu primeiro poema. A obra fica-nos e, esperar-se-ia, talvez nos ajude a melhorar os tempos.