Na mitologia grega, Kronus é o
deus que que devora os seus filhos logo que estes nascem, mostrando
metaforicamente o quão breve é a vida de uma pessoa na sucessão do Tempo. Outro
dos efeitos do tempo, que fica excluído do mito grego, mas que é visível em
qualquer estudo de História, é o de operar alterações significativas em certas
questões que, uma vez alterado o contexto, encontram significações totalmente
diferentes.
Em Mies Van Der Rohe, a
depuração a nível de meios, de forma e de materiais, não prejudicava a eficácia
das estratégias encontradas para resolver os problemas arquitectónicos
implicados na grande maioria da obra. Para este arquitecto, que definia as suas
obras como pele e ossos, tinha sentido acreditar que deus está nos
detalhes, pois efectivamente era nos detalhes das estratégias, dos
programas e das articulações que a obra contrariava a sua simplicidade formal
e, na maioria dos casos, material.
Rem Koolhaas, arquitecto
holandês cuja obra tem conhecido uma considerável internacionalização, é um dos
arquitectos europeus contemporâneos que nos apresenta propostas mais complexas,
conceptuais e, daí, polémicas. O próprio discurso do arquitecto, por vezes de
uma agressividade algo redutora (Fuck the context, por exemplo), já se
tem ocasionalmente sobreposto ao pensamento que fica expresso, por exemplo, em
'S/M/L/XL' e que, independentemente de se concordar ou não, tem uma certa
amplitude. A obra construída prima pela exuberância formal, pela independência
relativamente ao contexto directo do espaço envolvente e por uma relação estreita
com a ideia de movimento, que está presente tanto na organização espacial
desses edifícios, como no seu aspecto mais plástico.
Se bem que a junção de todos
estes factores possa resultar em que, muitas vezes, as obras de Koolhaas sejam
mais notadas pela sua aparência escultórica e geometricamente surpreendente, é
verdade igualmente que os seus edifícios estão cheios de detalhes que alimentam
tanto a poética como a utilização desses mesmos edifícios. O documentário
'Houselife' de Ila Bêka e Louise Lemoîne mostra precisamente a importância dos
detalhes numa obra de Koolhaas, a casa em Bordeaux (França).
Mies Van Der Rohe é uma
confessa influência de Rem Koolhaas, mas se a força dos detalhes, para Mies,
funcionou como Deus, para Koolhaas acaba por funcionar como o Diabo. A opção
dos realizadores deste filme, de filmar a empregada nas lides domésticas, acaba
por revelar um pouco aquele que parece ser o objectivo, algo tendencioso, do
filme, que é o de mostrar como a casa não funciona.
De facto, a casa de Bordeaux é
construída com algumas contingências desafiadoras para o arquitecto,
principalmente o facto do cliente ser paralítico. A preocupação em não só
garantir como facilitar a circulação do cliente pela casa, que se desenvolve em
três pisos, é claramente estruturante ao longo de todo o projecto, que conta
com plataformas eleváveis, com como com algum mobiliário pensado
especificamente para o handicap do chefe de família. Mas, excluindo
este tipo de pormenores, Koolhaas emprega uma série de outros, quer tirando
partido de tecnologias várias (caso dos joysticks
que controlam a abertura das portas e que respondem perante os alarmes), quer
para criar toda uma gramática estética e plástica que em muito definirá a casa
(portas circulares, degraus de escadas minúsculos, armários removíveis, bancas
de betão, etc).
A grande eficácia do
documentário não é, na verdade, a de mostrar a casa ou de a observar do seu
ponto de vista mais directo, enquanto obra de Arquitectura. Pelo contrário, são
os aspectos mais prosaicos da vida naquela casa que os realizadores
pretendem mostrar.
Lídia Jorge afirmava, no seu
romance 'A Costa dos Murmúrios' que não é possível suster uma ruína só com
a vontade. 'Houselife' poderia muito bem confirmar que também não é
possível suster uma casa só com a vontade. É a manutenção da casa de Bordeaux
que é mostrada e, então, vemos como os detalhes de Koolhaas se tornam difíceis
de utilizar (portas demasiado pesadas, escadas por onde não é possível
transportar nada), difíceis de limpar (uma janela acessível só para quem está
dentro da banheira), de uma fragilidade excessiva e custosa (um joystick
partido implica a inutilização de uma ou várias portas) e até mesmo negligentes
(caso dos pequenos degraus da escada que a empregada sobe carregando o
aspirador; ou das varandas sem qualquer tipo de guarda).
O que parece ressaltar de
'Houselife' é que, nesta casa, Koolhaas demonstra uma perícia impressionante no
que toca a dominar não só a plasticidade da casa (conseguida não só através da
concepção do edificado em si, mas também a nível das texturas dos materiais),
mas também do controlo irrepreensível dos campos visuais (os cheios e vazios
construídos são formas de relacionar os espaços da casa uns com os outros, e
também os espaços da casa com os espaços envolventes, criando, efectivamente,
uma atmosfera poética no interior da casa). Mas a durabilidade de um edifício é
garantida através da utilização e da manutenção que, neste caso, oferecem
inúmeras dificuldades e falibilidades. Koolhas exercita o seu virtuosismo, mas, não podendo destacar-se pela eficácia total do trabalho, acaba por destacar-se pela surpresa que causa, como um adolescente talentoso. E, no fim, a casa de Bordeaux acaba por
nos sugerir precisamente o título de um dos capítulos deste filme: pas
comme il faut.
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