sábado, 17 de novembro de 2012

Pas Comme Il Faut

Sobre 'Houselife', o documentário sobre a casa de Bordeaux de Rem Koolhaas



Na mitologia grega, Kronus é o deus que que devora os seus filhos logo que estes nascem, mostrando metaforicamente o quão breve é a vida de uma pessoa na sucessão do Tempo. Outro dos efeitos do tempo, que fica excluído do mito grego, mas que é visível em qualquer estudo de História, é o de operar alterações significativas em certas questões que, uma vez alterado o contexto, encontram significações totalmente diferentes.

Em Mies Van Der Rohe, a depuração a nível de meios, de forma e de materiais, não prejudicava a eficácia das estratégias encontradas para resolver os problemas arquitectónicos implicados na grande maioria da obra. Para este arquitecto, que definia as suas obras como pele e ossos, tinha sentido acreditar que deus está nos detalhes, pois efectivamente era nos detalhes das estratégias, dos programas e das articulações que a obra contrariava a sua simplicidade formal e, na maioria dos casos, material.

Rem Koolhaas, arquitecto holandês cuja obra tem conhecido uma considerável internacionalização, é um dos arquitectos europeus contemporâneos que nos apresenta propostas mais complexas, conceptuais e, daí, polémicas. O próprio discurso do arquitecto, por vezes de uma agressividade algo redutora (Fuck the context, por exemplo), já se tem ocasionalmente sobreposto ao pensamento que fica expresso, por exemplo, em 'S/M/L/XL' e que, independentemente de se concordar ou não, tem uma certa amplitude. A obra construída prima pela exuberância formal, pela independência relativamente ao contexto directo do espaço envolvente e por uma relação estreita com a ideia de movimento, que está presente tanto na organização espacial desses edifícios, como no seu aspecto mais plástico.

Se bem que a junção de todos estes factores possa resultar em que, muitas vezes, as obras de Koolhaas sejam mais notadas pela sua aparência escultórica e geometricamente surpreendente, é verdade igualmente que os seus edifícios estão cheios de detalhes que alimentam tanto a poética como a utilização desses mesmos edifícios. O documentário 'Houselife' de Ila Bêka e Louise Lemoîne mostra precisamente a importância dos detalhes numa obra de Koolhaas, a casa em Bordeaux (França).

Mies Van Der Rohe é uma confessa influência de Rem Koolhaas, mas se a força dos detalhes, para Mies, funcionou como Deus, para Koolhaas acaba por funcionar como o Diabo. A opção dos realizadores deste filme, de filmar a empregada nas lides domésticas, acaba por revelar um pouco aquele que parece ser o objectivo, algo tendencioso, do filme, que é o de mostrar como a casa não funciona.

De facto, a casa de Bordeaux é construída com algumas contingências desafiadoras para o arquitecto, principalmente o facto do cliente ser paralítico. A preocupação em não só garantir como facilitar a circulação do cliente pela casa, que se desenvolve em três pisos, é claramente estruturante ao longo de todo o projecto, que conta com plataformas eleváveis, com como com algum mobiliário pensado especificamente para o handicap do chefe de família. Mas, excluindo este tipo de pormenores, Koolhaas emprega uma série de outros, quer tirando partido de tecnologias várias (caso dos joysticks que controlam a abertura das portas e que respondem perante os alarmes), quer para criar toda uma gramática estética e plástica que em muito definirá a casa (portas circulares, degraus de escadas minúsculos, armários removíveis, bancas de betão, etc).

A grande eficácia do documentário não é, na verdade, a de mostrar a casa ou de a observar do seu ponto de vista mais directo, enquanto obra de Arquitectura. Pelo contrário, são os aspectos mais prosaicos da vida naquela casa que os realizadores pretendem mostrar.

Lídia Jorge afirmava, no seu romance 'A Costa dos Murmúrios' que não é possível suster uma ruína só com a vontade. 'Houselife' poderia muito bem confirmar que também não é possível suster uma casa só com a vontade. É a manutenção da casa de Bordeaux que é mostrada e, então, vemos como os detalhes de Koolhaas se tornam difíceis de utilizar (portas demasiado pesadas, escadas por onde não é possível transportar nada), difíceis de limpar (uma janela acessível só para quem está dentro da banheira), de uma fragilidade excessiva e custosa (um joystick partido implica a inutilização de uma ou várias portas) e até mesmo negligentes (caso dos pequenos degraus da escada que a empregada sobe carregando o aspirador; ou das varandas sem qualquer tipo de guarda).

O que parece ressaltar de 'Houselife' é que, nesta casa, Koolhaas demonstra uma perícia impressionante no que toca a dominar não só a plasticidade da casa (conseguida não só através da concepção do edificado em si, mas também a nível das texturas dos materiais), mas também do controlo irrepreensível dos campos visuais (os cheios e vazios construídos são formas de relacionar os espaços da casa uns com os outros, e também os espaços da casa com os espaços envolventes, criando, efectivamente, uma atmosfera poética no interior da casa). Mas a durabilidade de um edifício é garantida através da utilização e da manutenção que, neste caso, oferecem inúmeras dificuldades e falibilidades. Koolhas exercita o seu virtuosismo, mas, não podendo destacar-se pela eficácia total do trabalho, acaba por destacar-se pela surpresa que causa, como um adolescente talentoso. E, no fim, a casa de Bordeaux acaba por nos sugerir precisamente o título de um dos capítulos deste filme: pas comme il faut.



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