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terça-feira, 3 de março de 2015

Cinco novas bandas (parte 4)

(Parte 1: ler aqui)   (Parte 2: ler aqui)   (Parte 3: ler aqui)

Um pensador desiludido e sem esperança como E.M. Cioran pôde reconhecer com bastante acuidade que [n]ous devons la quasi-totalité de nos découvertes à nos violences, à l'exacerbation de notre déséquilibre*. Ao reconhecer a violência como móbil da actividade humana (e consequentemente, da actividade criativa), Cioran atribui-lhe um valor edificante que, em muito, não pode ser negado. Sem discórdia, não há evolução nem revolução. O rock reconhece esta violência. O que ele pressupõe é uma experiência profunda do mundo, que é depois transformada em música. Por isso as grandes canções rock se fazem a partir da agressividade, da raiva, da violência, da angústia, da luxúria: trata-se de reconhecer que vamos à descoberta do mundo através de uma experiência aprofundada da nossa violência.
As páginas do ensaio Penser contre soi podem constituir uma explicação bizarramente verosímil da estrutura básica do rock enquanto género. A expressão extrema pressupõe uma experiência extrema do mundo, uma pesquisa por aquilo que de mais elementar e incontrolável existe na natureza e na consciência humana. Ao ler certas páginas mais angustiantemente realistas de Cioran, não é difícil imaginá-lo a ouvir uma banda como as referidas acima. Aliás, estando em causa essa experiência violenta e derradeira da consciência, não seria estranho dizer que Cioran, bem como Nietzsche, Sade, Kafka, Artaud, Lovecraft, Edvard Munch, Hans Bellmer, Michelangelo ou Caravaggio, se vivessem nos dias de hoje e fossem músicos, estariam provavelmente numa banda de rock. Os seus inquéritos aos estados últimos da consciência deixam-nos estranhamente próximos do trabalho dos melhores músicos rock. Porque esse inquérito é o que o rock tem de mais elementar, e é esse também o seu maior perigo. Encontramos em Cioran: La formule de l'enfer? C'est dans cette forme de révolte et de haine qu'il faut la chercher, dans le supplice de l'orgueil renversé, dans cette sensation d'être une térrible quantité négligeable, dans les affres du «je», de ce «je» par quoi commence notre fin**.
De acordo com isto, o que fica claro é que não outra saída para a experiência realista e profunda do mundo senão a própria violência. Mas, nessa violência, esconde-se igualmente a nossa aniquilação, a possibilidade de encontrar o inferno. O rock reconhece sempre o risco da anulação do próprio «eu», que é o perigo de ir longe demais no conhecimento do mundo e de si mesmo, e de ser incapaz quer de regressar a um estado de inocência ignorante, quer de sobreviver àquilo que encontrou.
Mas nesse sentido, nenhum género tem uma valência tão filosófica e antropológica quanto o monosprezado rock. Só ouvido «de fora», ou então pela estirpe exclusivíssima e mui cultivada dos nossos intelectuais da alta cultura (altíssima até!) o rock parecer um género de 'gente a gritar com guitarras eléctricas estridentes atrás'. 
Perante qualquer canção de uma das cinco bandas de que falei, corremos o risco de ver ruir a barreira que nos separa da realidade e de perdermos a ilusão de um mundo que é ainda capaz de se equilibrar. Há algo de sagrado na ilusão que nos mantém sãos. Sãos, mesmo que iludidos: este podia ser o lema da nossa hipermodernidade (como lhe chama Lipovetsky) .
Mas, utilizando um verso de Coraline dos Ash is a Robot, we are crashing waves on sacred ground. E essa coragem não será necessariamente extensível a todos. Por outro lado, assume Cioran, [s]euls nos séduisent les espirits qui se sont détruits pour avoir voulu donner un sens à leur vie***. Porque só com esses aprendemos a procurar (mesmo que não encontremos) uma saída, ou a tentar diminuir a distância entre essa sagrada ilusão e a temível realidade.

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*Cioran, E.M. (1956). La tentation d'exister. Ed. Gallimard, Paris, 2011. p.9
**Cioran, E.M. (1956). op.cit. p.22
***Cioran, E.M. (1956). op.cit. p.24
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Cinco novas bandas (parte 3)

(Parte 1: ler aqui)    (Parte 2: ler aqui)

Um dos subgéneros do rock, que sofre influências directas do punk, do grunge e de algum metal, tem sido particularmente prolífero nos últimos anos. O que este subgénero parece compreender melhor é uma energia frenética associada à revolta e à tristeza. É uma espécie de avesso da realidade, uma versão interiorizada das situações mais penosas do dia-a-dia, o lado da vontade, em oposição ao lado do comportamento correcto. The greatest rock creations have come out of lust and agression, diz-nos Camille Paglia*. Esta variante específica do rock parece estar de acordo. Daí que seja ruidosa e alta, que assuma uma certa guturalidade e uma visceralidade muito contrárias àquilo que seria socialmente tolerável e aceitável. Esta é a música pré-civilizada, a expressão sorridente e trocista do que subsiste da natureza do ser humano, o pièce-de-resistence das ideias de Hobbes, Nietzsche, Freud e da própria Paglia sobre natureza e cultura. Nessa regressão, o que nos é devolvido é mais real e mais palpável do que todas as concepções sociais que nos possam ser incutidas. Aqui não há espaço para a restrição e a imposição civilizacional. As bandas que fazem este tipo de música dão-nos a besta humana libertada finalmente. A energia fortíssima que atingem é, por isso, uma energia adversária, combativa e revolucionária, sem a qual nenhuma sociedade deveria existir.


É esse o caso da banda belga The Black Box Revelation (BBR), originária da cidade flamenga de Dilbeek. Desde 2007, a dupla formada por Jan Paternoster (voz e guitarra) e Dries Van Dijk (bateria) lançou dois EP, 'Introducing The Black Box Revelation' (2007) e 'Shiver of Joy' (2011) e três álbuns, 'Set your head on fire' (2007), 'Silver threats' (2010) e 'My perception' (2011).
Num registo mais agressivo e descomplexado, com referências ao rock psicadélico e ao blues, os BBR trazem qualquer coisa que por vezes relembra vagamente a fase inicial dos Pearl Jam, mas absorve também Jimi Hendrix, os White Stripes (também eles constituídos por um vocalista/guitarrista e uma baterista), os Black Lab ou mesmo os Pink Floyd ou ainda a rouquidão pesada de uma Janis Joplin. Este tipo de mistura não é estranha àquilo que fazem, neste momento, outras bandas, começando pelos Black Keys ou os We are the ocean. Mas o que os BBR têm que parece não ser tão claro noutras bandas (e particularmente nos sobrevalorizados Black Keys) é a capacidade de recriar toda uma atmosfera em que a restrição e a rejeição veemente dessa restrição soam de uma forma bastante intensa. Os BBR têm pouco dos Nirvana, mas partilham com a banda de Kurt Cobain um certo ambiente ao qual o ouvinte é remetido. Ouvindo as canções ora enérgicas e explosivas (como I think I like you, o magistral High on a wire, Cold cold hands, Set your head on fire, Run wild ou Madhouse) ora tensas e contemplativas (2 young boys, Sleep while moving ou Never alone always together) não é difícil colocarmo-nos a nós mesmos numa pequena cidade-dormitório flamenga à saída de Bruxelas, um lugar pequeno cuja potencial calma é contrabalançada por um peso excessivo sobre a liberdade dos indivíduos. 



A música dos BBR parece emergir da necessidade de expressão, da necessidade de movimento. Os solos de guitarra eléctrica que pontuam grande parte das canções são como derivas, agitações interiores que funcionam como um terramoto na quietude de onde surgem, um teste aos limites da consciência. A alternância, em todos os álbuns, entre canções de rock puro e duro e outras mais melódicas e pausadas mantém presente uma dicotomia que cria bissectrizes ou mesmo oposições: eu vs. o mundo; explosividade vs. contenção; acção vs. meditação.
Há, por isso, uma certa espessura, uma certa tridimensionalidade na música dos BBR, que parece ser uma forma de sinceridade mais do que uma premeditação. Nas letras, essa ideia confirma-se. Muitas delas são marcadas por uma vontade de evasão sem destino (High on a wire, Sleep while moving) justificada por um ressentimento quanto ao lugar onde se existe (Sealed with thorns, Shadowman, Our town has changed for years) ou por um romantismo que, sendo desencantado, não é inteiramente derrotista (Love Kicks, I think I like you, Bitter). Jan Paternoster, como autor de letras, várias vezes fica a dever pouco a poetas contemporâneos: pelo contrário, as suas letras são imaginosas sem esquecerem a escrita de canções clássicas para o género.
Há ainda que assinalar que, de álbum para álbum, os BBR têem-se mostrado capazes de amadurecer e de equilibrar de uma forma mais subtil e densa as duas linhas de força que se encontravam mais polarizadas em 'Set your head on fire'. Por outro lado, o LP mais recente, 'My perception' aposta também numa vertente um pouco mais experimental, liga ao rock progressivo, o que é bastante claro no som estranho de 2 young boys ou na energia estranhamente sensual e sinistra de Skin.


A banda portuguesa Ash is a Robot (AIAR) recebe algumas influências que podemos também ligar ao punk e ao metal. Reviver estas tendências, como aprendemos com os Green Day, é uma ideia que fica gasta rapidamente. No caso dos AIAR, no entanto, a fusão entre o punk (ou pós-punk) de bandas como os Mars Volta, os Led Zeppelin, os Sonich Youth ou os Big Black, e o rock musculado dos Nine Inch Nails (sem a electrónica), dos Mastodon, de Marilyn Manson ou dos Tool, é tão extrema que se torna fantasmática. Há qualquer coisa muito reconhecível, muito familiar, na música dos AIAR, ao mesmo tempo que se torna extremamente difícil explicitamente saber de onde vem essa familiaridade, porque o som desta banda soa verdadeiramente puro e, paradoxalmente, novo.
Originária de Setúbal, a banda formada por Cláudio Aníbal (voz), Francisco Caetano (voz e guitarra), Renato Sousa (voz e guitarra), Bernardo Pereira (baixo) e Gonçalo Santos (bateria) editou nos últimos dois anos vários singles que por fim convergiram no álbum 'Ash is a robot' (2013).
Aquilo que ouvimos nos AIAR é menos atmosférico e mais intimista. O recurso ao metal traz consigo os resíduos de uma espécie de força natural demoníaca (que encontra na voz de Cláudio Aníbal uma expressão bastante perfeita) que é contraposta não pela complexidade barroca do gothic ou mesmo do black metal, mas antes por uma sonoridade mais suja que parece mais improvisada e mais linear. Sendo uma banda em que encontramos uma certa maturidade (relembre-se que quase todos os elementos da banda passaram por outros projectos previamente), o formato que por vezes nos remete para o rock de garagem não deixa de soar como uma auto-interpretação bastante irónica.
Se Coraline ou Karma never sleeps se fazem valer de um esquema aparentemente arbitrário entre a raiva e a meditação em voz alta, Philophobia (nas suas duas partes) ou Ariadne são exemplos de canções que alternam entre uma explosividade sólida e uma guturalidade torturada, como se Cthulhu tivesse conhecido a linguagem.



Disse acima que a música dos AIAR é menos atmosférica do que intimista, mas ela pressupõe, como não poderia deixar de ser, um determinado ambiente, que é, na música, mais sugerido do que declarado (apesar de ser confirmado pelas letras, particularmente a de Karma never sleeps). Numa expressão tão descontrolada, é impossível não imaginarmos uma espécie de raiva a partir da qual floresce a raiva que caracteriza a música. Essa atmosfera é possivelmente muito própria das cidades próximas de grandes centros urbanos ou mesmo de capitais. Em Portugal, Lisboa nunca foi capaz de criar uma banda rock verdadeiramente densa. O facto dos AIAR virem de Setúbal, cidade de uma personalidade muito marcada, associada a todo um contexto político, laboral e social de resistência muito stand your ground, talvez explique um pouco aquilo que ouvimos na música da banda. As próprias letras não passam ao lado de uma consciência politizada (mais do que declaradamente política), que é notória em Something something dark side ou em Karma never sleeps, e de uma insubmissão que é a única saída lógica para a própria estrutura das canções e do esquema instrumental, todo ele desmedido e fugidio.

(Parte 4: ler aqui)

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segunda-feira, 2 de março de 2015

Cinco novas bandas (Parte 2)

(Parte 1: ler aqui)

O percurso dos Anathema tem sido de alguma forma discreto no contexto do rock dos últimos anos, mas o seu estatuto de banda de culto dever-se-à, entre outros aspectos, ao facto de terem atravessado de forma exemplar uma espécie de progresso que outras bandas não tiveram a capacidade de fazer. Dificilmente com 'Serenades', o primeiro EP da banda, lançado em 1993, se poderia prever que os Anathema estariam, dez anos depois, a gravar um álbum como 'A Natural Disaster'. O início da banda dos irmãos Cavanagh está no doom-metal, ainda com Darren White como vocalista. Quando este abandona o projecto, os Anathema desviam-se cada vez mais no sentido de um rock progressivo que se vai tornando mais polido e complexo, definido por mutações constantes que, conquanto sejam por vezes arriscadas (e o mais recente 'Distant Satellites' é prova disso), também têm afirmado a banda como um projecto verdadeiramente amplo e variado. Os Anathema parecem ter-se deparado com a adversidade de começar a trabalhar a partir de um extremo. A transfiguração parece ter sido a saída mais inteligente para a banda. 
Os Anathema podem não ser a banda mais comum de referir para músicos que fazem percursos de alguma forma semelhantes (os Opeth seriam uma referência mais usual), mas, perante precisamente alguns projectos mais recentes, percebemos que os Anathema permitiram a uma série de músicos uma aprendizagem sobre como resolver criativamente o problema de se ficar preso num extremo do espectro musical e emocional.



É de certa forma o caso dos finlandeses The Chant. O colectivo formado por Ilpo Paasela (voz), Jussi Hämäläinen (voz, guitarra), Mari Jämbäck (piano e teclados), Kimmo Tukiainen (guitarra), Markus Forsström (baixo), Roope Siven (bateria) e Pekka Loponen (voz, guitarra) lançou em 2008 o primeiro EP, 'Ghostlines' e, desde então, três álbuns: 'This is the world we know' (2010), 'A Healing place' (2012) e 'New Haven' (2014).
É verdade que no EP ouvimos pouco mais que uma banda a experimentar(-se), mas nos dois anos que passaram até ao primeiro álbum, os The Chant parecem ter encontrado um terreno sólido para se expressarem. A capa de 'This is the world we know' talvez explique exactamente aquilo que esse álbum parece representar: um rapaz pendurado numa vedação olha fixamente para um ponto que está fora do campo de visão. Esse encontrar de alguma coisa definida é o que marca a diferença entre 'Ghostlines' e 'This is the world we know'. A música dos The Chant, e particularmente nos seus melhores momentos (Armoured man, November 1983, Will you follow, Safe world, Reflected) tinha uma solidez definitiva, havia nela algo de muito negro e muito pesado, contraposto por uma espécie de aproximação de uma redenção (dizia-se na letra de Will you follow: treasure is the light bearer/ speaking without words to me,/ now is the moment for courage) . Essa solidez não passava ao lado de algumas lições tiradas de bandas como os A Perfect Circle, os Katatonia e da fase 'Alternative 4' – 'Judgement' dos Anathema.
O problema com 'This is the world we know' era no entanto o extremo a que parecia ir, dentro daquilo que era o seu universo. O que era angustiado e sem esperança no primeiro álbum teve então necessidade de efectivamente dar esse passo em direcção à redenção prometida. E é isso que marca o segundo álbum, 'A healing place'. O título é, aliás, auto-explicativo. As canções eram, até certo ponto, mais directas e mais intensas ao encarar uma espécie de mundo doente (Outlines, Riverbed, The black corner), mas que passava também por uma espécie de compreensão profunda desse mesmo mundo. Adoecer e convalescer: eis o que acontecia do primeiro para o segundo álbum dos The Chant. A esperança vinha desse estado em que a doença ainda está presente mas prestes a desaparecer. As composições melódicas e meditativas, que desenvolviam aquilo que no primeiro álbum era mais prototípico, reforçavam precisamente essa ideia. 'A healing place' tinha mesmo alguma coisa de terapêutico e de fascinante, mesmo quando soava mais desesperante (o caso de Outlines sendo o mais extremo de todos).



Com o terceiro álbum, os The Chant parecem ter chegado à possibilidade de sintetizar as duas vertentes que experimentara primeiro em separado. 'New haven', lançado há pouco mais de um mês, é uma espécie de fusão entre o rock pesado e cabisbaixo de 'This is the world we know' e o lado mais experimental e intimista de 'A healing place'. Mas 'New haven' é realmente qualquer coisa nova para os The Chant. É uma conquista talvez daquilo que nos álbuns anteriores era mais embrionário. A concentração num esquema instrumental mais complexo e pausado, com canções longas e imprevisíveis, leva-os num sentido mais sinfónico sem recurso a orquestra que as letras de Ilpo Paasela e Maari Jämback integram de uma forma quase orgânica. Mas mais do que nunca, 'New haven' situa os The Chant no campo do atmospheric rock, com bastante segurança (uma vez que facilmente neste subgénero encontramos propostas que resvalam para o lamechas). O imaginário que sugerem em canções como Drifter, Come to pass, Cloud Symmetry ou Earthen são dificilmente imediatos, pelo contrário, apresentam uma estranheza que nos exige tempo e um certo investimento emotivo para verdadeiramente sermos capazes de os compreender. É também um conjunto de canções (particularmente Earthen, Playwright e Come to pass) um tanto cinematográficas. Há um ambiente muito nórdico e glacial que se cria nos longos solos sem voz. Quando a voz intervém, parece em diálogo consigo mesma. Pergunta-se, responde-se, engana-se e desengana-se. Discretamente, os The Chant criaram uma espécie de pequena tragédia íntima, um progresso pessoal num mundo desviado daquilo que dele se esperava. 


Também influenciados pelo metal e por uma tendência para o atmospheric rock são os belgas Steak Number Eight (SN8), banda originária de Wevelgem, formada por Brent Vanneste (voz, guitarra), Joris Casier (bateria), Jesse Surmont (baixo) e Cis Deman (guitarra), que lançou já os álbuns 'When the candle dies out...' (2008), 'All is chaos' (2011) e o mais recente 'The hutch' (2013).
Desde o primeiro álbum, é notória a intenção de canalizar a brutalidade e a atmosfera apocalíptica do black metal para um registo que ficasse a meio caminho para o rock industrial. As influências dos Mastodon, dos Cult of Luna, dos Dimmu Borgir ou das primeiras experiências de Trent Reznor são assim contrabalançadas por uma melancolia tensa que é herdada da fase de transição dos Anathema ('The Silent Enigma' de 1995, particularmente) ou ainda da influência mais estrutural dos Slayer ou dos Iron Maiden.
No essencial, no entanto, aquilo que os SN8 fazem está distanciado do metal tanto quanto do rock. Esse meio-caminho é o que lhes permite a flexibilidade que caracteriza a sua música: conquanto uniforme, ela oscila frequentemente entre a atmosfera mais pesada e psicadélica e a deriva quase improvisada mais sentimental e comovente. O trabalho dos SN8, e particularmente o seu álbum inicial, dá ênfase efectiva à forma, por assim dizer: as composições são de tal forma exacerbadas que têm qualquer coisa de wagneriano, de profundamente trágico, que poderá passar despercebido devido à tendência para o descontrolo e para a brutalidade. Em canções como The holy truth, Falling out of a dream ou no imponente The sea is dying, esta dimensão trágica e violenta é bastante notória, e ela representa, de resto, aquilo que de melhor existe na música dos SN8.
No entanto, a edição de 'All is chaos' parece ter sido um exercício de radicalização por parte dos SN8. Aquilo que se encontrava diluído e sintetizado em 'When the candle dies out...' surge aqui nitidamente separado. As canções assumem praticamente todas um cariz mais directo e contundente, baseado numa estrutura de repetições e pausas que, apesar de representar uma regressão em comparação ao álbum anterior, não deixa de proporcionar os seus momentos intensos, como acontece com The calling, Blackfall ou Man vs. Man. Ao longo do álbum, no entanto, vão surgindo alguns momentos que, dir-se-ia que intencionalmente, funcionam como interrupções, canções como Trapped, Stargazing ou Track into the sky, que se distinguem claramente das outras por uma aproximação ao lado mais directamente melódico e poético. O que parece acontecer entre os dois álbuns é que, onde o primeiro era extremamente bem sucedido ao diluir duas vertentes quase diametralmente opostas na mesma canção, o segundo se esforça por separar essas vertentes, assumindo-as com morfologias diferentes e com um desequilíbrio propositado: os momentos mais contemplativos acabam sempre por, a dado momento, resvalar para o lado mais violento e apocalíptico. Ainda que 'All is chaos' esteja longe de soar como um projecto falhado (contém, é preciso dizê-lo, algumas das melhores canções que a banda já produziu), é também verdade que ele causa uma certa estranheza ao recuar na síntese perfeita e estranha que 'When the candle dies out...' representava.



Até certo ponto, talvez a própria banda tenha tido consciência disso. 'The Hutch' é o seu trabalho mais complexo e mais conseguido até à data. Há neste terceiro trabalho dos SN8 um lado experimental muito acentuado, que passa também pela inclusão de uma electrónica discreta, e ainda por uma completa liberdade a um nível estrutural. As canções parecem, logo desde a primeira, Cryogenius, não ser propriamente canções, mas peças, com variantes, pormenores e afluentes, que transformam cada faixa num pequeno conjunto de elementos que, somados, resultam numa estranheza muitíssimo conseguida. É um regresso à síntese entre o lado mais barroco e emocional e a componente metal mais do que assumida. A matriz parece, paradoxalmente, vir dos Mastodon e dos Katatonia, ou particularmente dos álbuns mais recentes dos primeiros e dos mais antigos dos segundos. Mas o resultado é denso e pessoal. Mais do que nunca, os SN8 parecem ter ganho uma identidade, um caminho definido. A expressão da raiva e do descontrolo conhece com esta banda uma densidade convincente, que soa muitíssimo madura. Quem esperar uma raivinha adolescente, não vai encontrá-la aqui. Quem grita nestas canções parece ter acumulado durante anos a vontade de o fazer.



Uma proposta também concentrada no potencial emotivo e melódico do rock pesado surge-nos com os suíços Last Leaf Down (LLD). O colectivo formado por Benjamin Schenk (voz e guitarra), Danny Bruno Dorn (baixo), Sascha Jeger (guitarra) e Patrick Hof (bateria) lançou, desde 2012 vários singles: 'Disengage' (2012), 'In dreams' (2012), 'Truth is a liar' (2012), 'Fake lights in the sky' (2013) e 'The thought that I saw you' (2013). O álbum de estreia, 'Fake lights', lançado recentemente, reúne estas e outras canções.
De todas as bandas que este texto refere, os LLD são a que menos trabalho tem apresentado. No entanto, há uma solidez no trabalho que mostram até agora que faz prever um pouco mais do que uma mera promessa. Dizer que, na sua fusão entre rock, metal e a ''escola'' britânica do shoegaze, os LLD são influenciados pelos My Bloody Valentine, por algum do trabalho dos Cocteau Twins e por, principalmente, os Anathema e os Katatonia, será dizer parte da verdade. Conquanto estas influências sejam assumidas e reconhecíveis, há na forma como os LLD interpretam estas influências qualquer coisa que é diferente. Das suas influências, os LLD aprenderam o poder da beleza, a forma de criar atmosferas, a articulação entre o agressivo e o comovente. Mas há neles qualquer coisa de glacial e de etéreo, de quase fantasioso. Mas é uma fantasia até certo ponto distópica. Em todas as canções lançadas desde 2012, há uma angústia densa, uma incursão quase fenomenológica por reinos desencantados. Talvez essa ambiência tenha que ver com o clima de um país do norte da Europa, como a Suíça. Na música dos LLD parece haver neve, tudo nela recria um ambiente solitário, isolado, parado mas profundamente vivo, no sentido em que há uma tristeza vibrante que é sugerida por essas sensações de distância em relação ao mundo.
Esta energia contemplativa e depressiva faz-se sentir com especial intensidade no mais recente The thought that I saw you, uma invulgar canção de amor, cuja letra procura, nos elementos mortos e frios da natureza, uma espécie de transcendência do fiasco amoroso. Esta canção retoma aquilo que acontecia já no inicial Disengage, uma canção um pouco mais áspera, mas que era já eficaz, particularmente pela capacidade de estruturar uma série de momentos díspares (solos de guitarra eléctrica, por exemplo) numa mesma canção que, de uma forma um tanto barroca, parecia ser a assimilação de várias canções.


Em Born dead há até uma certa influência da música medieval (não é difícil recordar Hildegard Von Bingen, outra compositora vinda do frio), que se coaduna de uma forma surpreendentemente perfeita com a atmosfera da música dos LLD.
Outra canção que importa referir é In dreams, eventualmente aquela onde as referências da banda são mais audíveis, mas onde surgem, igualmente, sintetizadas de uma forma mais conseguida. Aqui, parece haver a presença fantasmática de uma sonoridade mais urbana, mas mesmo essa não soa a mais do que uma reminiscência longínqua.
E é isso que faz dos LLD, mesmo antes da publicação do álbum de estreia, um projecto interessante. A sua música parece operar no campo da imagem (e os videoclips simples e quase abstractos remetem-nos para isso mesmo), como se o som tivesse um qualquer poder cinestésico. É nesse sentido que toda a sua música chega a parecer scy-fy, no sentido em que nos coloca na própria aniquilação do mundo construído, e nos conduz a uma espécie de tempo pós-futuro, em que sobra apenas o vazio deixado pela civilização. A memória do mundo construído assombra as composições, mas é sobre o vazio que ficou que elas se debruçam de forma mais concreta. Assim, ficamos perante uma emotividade desfeita, comovida e saudosa mas parca em esperança. A sua beleza resulta de um olhar sobre a morte, o abandono e o fiasco, mitificados e embelezados porque são tudo aquilo que sobrou. A música dos LLD é profundamente imaginativa. O que nela soa familiar parece uma reminiscência do futuro, mais do que uma memória nostálgica. 

(Parte 3: ler aqui

domingo, 1 de março de 2015

Cinco bandas novas (Parte 1)


Quem olhar profundamente para dentro de si mesmo, trará de volta uma canção que vai soar a qualquer coisa como rock.
Apesar de votado a uma espécie de ignorância propositada por parte da ilustre elite dos auto-proclamados intelectuais,  a um nível geral o rock não é senão um dos herdeiros mais directos da música barroca. Na sua estética repetitiva, exacerbada e do explosiva, a música barroca tomava as emoções humanas e trabalhava sobre elas de uma forma sufocante e carnal, erótica e violenta. Ao contrário da música romântica, exaltadora da beleza, a música barroca nem sempre é bela, pode ser tortuosa e inusitada, chega nalguns casos a ser aborrecida (por efeito de repetições e recomeços contínuos): mas em tudo isto mantém uma extrema verosimilhança para com a verdadeira natureza dos sentimentos e da vida. Como o rock, a música barroca é feita de vísceras e agonia.
A influência da música barroca no metal está apesar de tudo acertada: passa ao lado de muitos dos que ouvem, por efeito da forma mais do que do conteúdo, mas está lá. Em muitos aspectos, se resumirmos as características essenciais bandas de rock, encontraremos muito da música barroca: uma tensão pressentida entre o indivíduo e o mundo (que era subreptícia na música barroca e é clara no rock), uma sinceridade desarmante perante os sentimentos (que passava pela música no século XVIII e que se estende muitas vezes à letra no rock) e a busca declarada por aquilo que é dissonante, estranho, perturbante. A sensibilidade barroca, como a do rock, é uma procura do extremo e do excesso, é uma expiação. A ideia de harmonia e regularidade que caracterizava não só a música mas toda a Arte do primeiro neoclássico foi abandonada pela emotividade efusiva dos compositores barrocos. A estética do deslumbramento e da sedução que a Contra-Reforma transmitiu às artes visuais e particularmente à Arquitectura tiveram também reflexo na música. Tendo em conta os valores antropocêntricos e racionais do Renascimento, a atitude barroca é paradoxal: conquanto articulada com o poder religioso, representa uma ruptura cronológica, uma reacção às características estruturantes do Renascimento.
Essa insubmissão, essa busca do diferente e da individualidade, seria retomada em força pelo Romântico em moldes diferentes, mais preocupados com o que era belo e comovente (e deixando de lado a agressividade e a aspereza que se faziam sentir nalgumas composições barrocas). O rock sintentiza estas duas tendências de uma mesma atitude. É romântico pela rebeldia, mas frenético como o Barroco.
Só uma profunda incompreensão (ou, para dizer de uma forma mais clara: uma atitude reacionária e um nadinha ignorante) mantém os ouvintes ''sérios'' e ''cultos'' longe do rock e das suas propostas.

Há, para sermos breves, dois problemas essenciais quando falamos de como o rock é apreciado. Um prende-se com a falta de um trabalho crítico sério*: conquanto isto garanta uma posição de certa forma marginal aos músicos, também resulta numa profunda ignorância quanto ao género ou à cultura. O outro é o da apreciação dos ouvintes, onde convergem uma série de ideologias quanto à sociedade, aos sistemas políticos e económicos e mesmo em relação à própria música e ao cenário desconexo que parece ser o actual.
Ambos os factores não deixam de parecer compreensíveis. A sinceridade e a crueza que caracterizam o rock podem ser, até certo ponto, incompatíveis com um estudo como o que encontramos nas Ciências Humanas (e que contaminam de certa forma o trabalho dos críticos culturais) pois não deixa de ser uma cultura que só pode ser conhecida de dentro e que não pode ser sujeita a determinadas metodologias, sob risco de se perder a ligação com a realidade. Por outro lado, o rock traça a nossa ligação com aquilo que de menos ''civilizado'' temos em nós. O rock, com as suas guitarras eléctricas, com as suas vozes gritadas e a sua sonoridade agressiva (mesmo que melancólica), com a sua expressão descarnada e a sua paixão pelo ruidoso apresenta algo que é diametralmente oposto ao que entendemos como pop. Onde o pop é um glamour e um imaginário sedutor e leve (mesmo nos seus momentos tristes), o rock apresenta-se como uma espécie de glamour decadente, de energia invertida. Onde o pop valoriza a celebração, o rock apresenta a depressão e a violência. Onde o pop marca a luta do indivíduo pela sua afirmação, o rock lamenta a impossibilidade dessa afirmação. Onde o pop é cântico de vitória, o rock é uma elegia da derrota**. Ora, se sabemos que o pop é, por definição, aquele que move milhões de ouvintes, será porque, à partida, esse modelo soa mais aceitável à maioria. Posto isto, não é de todo incompreensível que, quando uma banda vende mais, se torna ''comercial'', os ouvintes originais se sintam defraudados: os músicos que admiravam parecem defender posteriormente valores incompatíveis com os iniciais.
É frequente que os ouvintes de rock se prendam aos grandes clássicos. Esta é uma postura que devemos, no entanto, evitar. O olhar profundo para o interior das coisas não deixa de pressupor uma relação com tempo. Muitas das angústias pessoais que sentimos nascem de uma cisão com aquilo que nos rodeia e que vai mudando de acordo com o tempo em que estamos. Pode ser verdade que nunca mais se fará um álbum como 'Ten' dos Pearl Jam. Mas também já não estamos em 1991. E ainda que muitas das pesquisas estruturais permaneçam as mesmas, é preciso saber continuar.

Aqui ficam alguns (breves) comentários sobre algumas bandas recentes, as seguintes:


Parte 2 (aqui)

The Chant (Finlândia)
Steak Number Eight (Bélgica)
Last Leaf Down (Suíça)

Parte 3 (aqui)

The Black Box Revelation (Bélgica)
Ash is a Robot (Portugal)

Parte 4 (aqui)


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*Refiro-me a trabalho crítico académico, ou mesmo a uma crítica mais ampla levada a cabo em trâmites diferentes dos das revistas especializadas. Basta pensar que nenhum crítico cultural de peso se debruçou com seriedade e profundidade sobre o rock. O exemplo de Susan Sontag é ilustrativo disto mesmo: a crítica que tornou possível falar de cultura popular a par com cultura erudita podia ir a um concerto dos Pearl Jam, mas não sentiria necessidade de escrever sobre eles (vd. https://www.youtube.com/watch?v=7GRx3KgKauY). Camille Paglia incluiu no seu ''Sex, art and american culture'' (1991) um artigo sobre o rock como arte, sério e interessante, mas que peca por ser breve.

** Assinale-se, para ambos os casos, que existem excepções. O pop de Lana Del Rey é dificilmente uma celebração e o rock de algumas bandas mais adolescentes (rock ainda assim) como os Guano Apes ou os Korn não passa necessariamente por um aprofundamento do que é triste ou depressivo.

sábado, 17 de janeiro de 2015

Sobre o vídeo de "Elastic heart"


Sia Furler, cujo percurso começa no final dos anos 90, e esteve ligada Zero7, só conheceu sucesso a sério depois de participar um tanto inesperadamente nalgumas canções de David Guetta. O álbum mais recente, "1000 forms of fear", longe de ser a sua melhor produção, é sem dúvida o mais badalado, com o primeiro single, Chandelier a tocar irritantemente em tudo o que é bar, café, loja, discoteca, etc.
Elastic Heart, o single mais recente, não é muito melhor, mas apresenta algo decurioso: o videoclip, à volta do qual se criou uma enorme polémica, com direito a acusações de incitamento à pedofilia, o que levou Sia a justificar-se e desculpar-se, o que me parece despropositado, pelo menos na segunda parte.
Não há nada de pedófilo no vídeo de Elastic Heart, realizado pela própria Sia e por Daniel Askill. Pelo contrário. Um acto de pedofilia pressupõe um mínimo de duas pessoas. E, na verdade, este vídeo tem factualmente dois corpos, mas apenas uma pessoa. Trata-se de uma das melhores peças recentes no campo do videoclip e a sua observação deve orientar-se, penso, pelo valor artístico e videográfico, e não pela paranóia excessiva dos nossos tempos tão pós-modernos, em que limpamos com lixívia pura qualquer indício de sexualidade, enquanto nos indignamos porque, durante séculos, a religião reprimiu o sexo. As contradições!
O vídeo de Elastic Heart só é erótico se o olharmos de forma muito desantenta. Pelo contrário, o impulso que anima este vídeo prende-se mais com a violência do que com o erotismo.
Maddie Ziegler e Shia LaBeouf interpretam, no fundo, a mesma personagem, vista apenas de pontos-de-vista diferentes, que não são apenas dois mas, quanto a mim, quatro.
A interpretação mais imediata do vídeo (excluindo a da pedofilia, que não tem sentido algum) é a de que LaBeouf nos apresenta o indivíduo adulto e civilizado, enquanto Ziegler é a criança, ainda livre, em estado quase selvagem. O espaço da gaiola, que se torna uma arena para o confronto entre estes dois lados de um mesmo ser humano, representaria, desse ponto de vista, a consciência do indivíduo ou, indo mais longe, o super-ego freudiano, a voz da punição que força o ego a obedecer a convenções, socializações e comportamentos normativos e que, principalmente, pune a fuga a estes. Vários momentos do vídeo sustentam esta ideia, inclusivamente a capacidade que Maddie Ziegler tem, mas Shia LaBeouf não, de passar entre as grades da gaiola e sair: só uma criança consegue atravessar as barreiras da estruturação imposta a um adulto, porque, nela, o super-ego não está formado, mas em formação. Assim, não é de admirar o contraste nas coreografias de Ryan Heffington. Enquanto a de Ziegler é animalesca e atacante, a dele é uma defesa contida e impotente apesar de pujante.
Mas o confronto pode ser outro. Representar apenas a luta entre a idade adulta e a infância de uma mesma pessoa seria até mais evidente se se procurasse uma semelhança entre os dois intérpretes, mas é exactamente isso que não acontece. O que abre espaço para uma tensão paralela: a do masculino e do feminino. A violência do confronto entre a infância e a idade adulta não é menor do que a violência que ocorre quando nos apercebemos de que a nossa energia sexual e mesmo a nossa os limites do nosso sexo/ género não são necessariamente unilaterais. O que este vídeo nos pode oferecer é um retrato da dificuldade de um homem em assumir o seu lado feminino. Isto torna-se mais pungente quando percebemos que, principalmente na figura de Shia LaBeouf, não há nenhum apontamento de androginia. O seu corpo definido, os pelos corporais, a barba, são emblemas de uma masculinidade que não é ameaçada pela existência de um lado feminino. Portanto, este não devia constituir um problema: mas constitui. Ao ponto de despertar nele a necessidade de reafirmação. Para isto, podemos atentar na sequência em que LaBeouf trepa pelas grades da gaiola e, pendurado no centro, ergue o seu próprio corpo como se fizesse musculação. A câmara muda de ponto de vista e mostra-nos que, abaixo dele, Ziegler dança como se fizesse ballet. Usando dois actos tradicionalmente conotados com o masculino e o feminino, o que Elastic Heart nos propõe é que qualquer insistência sobre um não anulará o outro: intensificá-lo-á. O espaço da gaiola recupera assim a ideia de um super-ego que não esquece as convenções: neste caso, as convenções que pesam sobre ser-se homem na sociedade, por exemplo. No entanto, o final do vídeo apresenta um certo sinal de esperança, quando ele a toma aos ombros e começa a caminhar com ela, mesmo que incapaz de sair dos limites da jaula: dos seus próprios limites, afinal.
Seja na oposição criança/adulto, seja na oposição masculino/feminino, o vídeo de Elastic Heart é uma peça de extrema sensibilidade e de uma beleza simples. Quando se desculpou pelo videoclip, Sia explicou que Shia LaBeouf e Maddie Ziegler lhe haviam parecido os dois actores apropriados para fazer este vídeo. Está correcta. De Ziegler, só conheço os vídeos de Sia, mas Shia LaBeouf, um actor estranhamente monosprezado, tem um particular à-vontade para lidar com a problematização do sexo: isso viu-se no vídeo de Fjögur Píanó dos Sigur Rós, mas mais ainda no prodigioso "Nymphomaniac" de Lars Von Trier. Porque LaBeouf já foi capaz de incorporar a androginia no primeiro e o pior drama sexual masculino (a incapacidade de satisfazer aquela/e que desejamos) no segundo, o actor parece ter uma compreensão fluida e plural da sexualidade, e só alguém assim poderia ter feito este vídeo. No resultado final, a tensão entre os dois corpos (e não duas personagens) é credível e intensa e, o que será mais interessante, consegue multiplicar os seus próprios significados e tornar Elastic Heart uma proposta complexa mas imediatamente cativante, como convém a um videoclip.

sábado, 20 de setembro de 2014

''Anything could happen'': Ellie Goulding/ Floria Sigismondi




Um videoclip de Ellie Goulding, realizado por Floria Sigismondi, fotógrafa e artista plástica que admiro bastante. O feliz encontro entre estas duas mulheres dá origem a um vídeo em que convergem a mitologia clássica (Penélope e Ulisses) e o imaginário cristão (a figura de Goulding a lembrar uma santa). 
O que admiro essencialmente no trabalho de Sigismondi, como fotógrafa e como realizadora de videoclips, é a sua capacidade de, atrás do que parecem meras imagens de inspiração surrealista e simbolista, convocar vários momentos da história cultural europeia, e de reintegrá-las no contexto actual, trabalhando igualmente com a ruptura e com a continuidade. Neste caso, Ulisses e Penélope transformam-se num casal urbano destroçado por um acidente de automóvel junto ao mar onde ela o espera. Por outro lado, Goulding aparece convertida numa andrajosa figura mítica, que não assenta sobre uma nuvem (como no imaginário comum católico), mas que é arrastada sobre o mar por essa nuvem.
A produção visual que acompanha o trabalho de Ellie Goulding já várias vezes invocou estéticas semelhantes, por exemplo no vídeo de Figure 8, realizado por W.I.Z., ou então no vídeo, já mais antigo, de Guns and horses, realizado por Petro.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Uma promessa do mundo

Urbanização*

Tudo o que vivêramos
um dia fundiu-se
com o que estava 
a ser vivido.
Não na memória
mas no puro espaço
dos cinco sentidos.
Havíamos estado no mundo, raso,
um campo vazio de tojo seco.

Depois, alguém
urbanizou o vazio,
e havia casas e habitantes
sobre o tojo. E eu,
que estivera sempre presente,
vi a dupla configuração de um campo,
ou a sós em silêncio
ou narrando esse meu ver.

Neste poema, pertencente à última recolha publicada em vida da autora, Fiama Hasse Pais Brandão escreve no sentido de, através do espaço, abolir o tempo, ou a passagem do tempo, no sentido em que estamos habituados a compreendê-la. Mas o que Urbanização tem de mais intenso é a forma como, logo nos primeiros versos, se recusa a fazê-lo através da colocação do poema no espaço da memória. A fusão entre o passado e o presente dá-se ''no puro espaço/ dos cinco sentidos''. Assim, ''a dupla configuração de um campo'' não é narrada como se se contasse uma história. É facto que primeiro existe ''o mundo, raso/ um campo vazio de tojo seco'' e que depois ''alguém/ urbanizou o vazio''. Mas não se trata de um exercício de memória. Neste poema, a visão é dupla, e só assim pode actuar sobre o mundo que tem diante de si, com o qual se encontra. O que aqui temos, quando o eu do poema nos narra o seu ver, é uma espécie de fenomenologia, uma imaginação sensorial do próprio espaço. A visão dupla (que Fiama reclamara já no poema Do Amor IV, do mesmo livro), é a própria imaginação, que se desenha como uma forma de consciência. É assim que o eu consegue intuir o vazio sob a urbanização, o tojo sob as casas.
Por isso, o poema de Fiama apresenta-nos não menos do que uma verdade elementar sobre o espaço construído: cidade e casa, urbanismo e arquitectura. A acção humana de alguém que urbaniza o vazio opõe-se ao que existe inicialmente. O ''campo vazio de tojo seco'' é uma imagem do deserto. Esse deserto subsiste mesmo quando é preenchido por construção. Não só porque o eu é capaz ainda de o ver, de saber que ele continua ali sob as construções, mas também porque o próprio deserto é, de certa forma, um espaço sempre de ''dupla configuração''. Sabemos disso porque o poema não se faz nem pela memória nem pela linguagem, mas pelos cinco sentidos. Isto significa que é através do corpo do eu que a fusão do passado e do presente ocorre. Nesse sentido, sempre o vazio do deserto e a vastidão do vazio serão espaços privilegiados para a imaginação do mundo. No poema de Fiama, o espaço deserto é uma matriz inicial, uma promessa do mundo, ele contém já a urbanização que nele virá a erguer-se. Essa cidade já existe ali, mas é visível só pelo olhar sensorial e ilimitado da imaginação. Reciprocamente, a urbanização erguida não pode deixar de conter o ''mundo raso'' de onde nasceu.


A linguagem do poema é simples mas enigmática, os versos curtos são fluidos mas tensos. Essa tensão justifica-se nos últimos versos, em que o eu nos diz que assiste ao crescimento da urbanização ''ou a sós em silêncio/ ou narrando esse meu ver''. O poema está assim na tangente entre silêncio e fala. Ele depende de uma imaginação, de uma experiência total que só em parte pode ser resolvida pela linguagem. Daí o tom enigmático do discurso: a experiência é sensível, quase sensual, e só parte dela é transmissível por palavras. O não-escrito, que descobrimos ao ler o poema, pode ser uma forma de acesso ao resto do que foi experienciado. Talvez este poema só possa ser entendido se repetirmos por nós mesmos o movimento que lhe dá origem: se olharmos imaginosamente para o espaço da cidade e conseguirmos sentir o vazio iniciático, que não nos levará ao início do tempo, mas criará uma espécie de experiência simultânea dos tempos. Como a que acontece neste poema.


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*Fiama Hasse Pais Brandão. As Fábulas. ed. Quasi. Vila Nova de Famalicão, 2002. p.32

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Memorial Temporário #4


"A morte do debate público'', um texto meu sobre debates, conversas e trocas de opiniões em redes sociais, que podem ler aqui.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Memorial Temporário #3


''A batota inocente de Florbela Espanca'', um texto meu sobre algumas cartas da escritora ao segundo marido, que podem ler aqui.

(na imagem, o retrato de Florbela por Graça Martins)

domingo, 22 de dezembro de 2013

Memorial Temporário #2




''As virtudes da desadequação'', um texto meu sobre os Mumford & Sons que podem ler aqui.


sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Memorial Temporário #1


''A expropriação da realidade'', um texto meu sobre o tríptico ''Plot Point'' do realizador belga Nicolas Provost, aqui.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

o gafanhoto andrajoso

De certo ponto de vista, a pintura sofreu, desde os Egípcios e os Greco-Romanos, várias evoluções mas poucas revoluções. Quando a obra de Giotto experimenta nervosamente a perspectiva, sabemos que uma revolução se avizinha mas, ainda antes do Renascimento, essa evolução seria concretizada não por italianos, mas pelo grupo de pintores ligados à chamada Escola de Brugge que hoje conhecemos como Primitivos Flamengos. Para estes pintores, o domínio da perspectiva foi pouco mais que um instrumento técnico para algo bem mais revolucionário, que foi a substituição do realismo pelo real. Mesmo nos frequentes temas religiosos, os trabalhos de Robert Campin/ Mestre de Flémalle, de Rogier Van Der Weyden ou de Jan Van Eyck, inauguram um senso do real, um elogio do quotidiano que mantém a mística em quadros pouco distanciados da realidade do dia-a-dia. Particulamente Jan Van Eyck, com o seu genial 'Casamento dos Arnolfini', virou costas à mitificação e trouxe a atenção sobre a dignidade e a complexidade do quotidiano.
Mas noutros trabalhos, aparentemente mais circunspectos, o pensamento de Van Eyck não se revela menos inovador. Os retratos individuais que fez apresentam-se-nos segundo uma tradição burguesa, mostram-nos pessoas que ora sabemos ora não sabemos quem são, mas que invariavelmente nos são mostradas como pessoas distintas. A partir dessa aparência, Van Eyck sabe manipular elementos e símbolos para uma compreensão do estatuto e ocupação da pessoa, por exemplo. O retrato individual de Giovanni di Nicolao Arnolfini mostra-nos precisamente isso _o traje escuro denuncia o homem abastado por exemplo (uma vez que só os muito ricos conseguiam pagar o dispendioso tecido escuro). Os fundos negros são diferentes daqueles que se popularizariam no Renascimento, em que o retratado surgia em frente de uma paisagem que aludia ao seu poder sobre determinado espaço. Nos retratos de Van Eyck os retratados dispensam a paisagem: têm o poder por si mesmos.
No entanto, os retratos individuais mais interessantes de Van Eyck terá pintado não chegaram aos dias de hoje. Os polémicos retratos de Isabel de Portugal ocupam um lugar especial no conjunto da obra de Van Eyck. Mais do que serem encomendas, eram uma missão diplomática.
Mudando-se de Lille (actualmente pertencente a França) para Brugge, Van Eyck passa a trabalhar para o corte de Filipe III, Duque de Borgonha, do Brabante e dos Países Baixos Borgonheses. O Duque preparava para o ano de 1428 as suas terceiras núpcias, com Isabel de Portugal, filha de D. João I. A viagem de Van Eyck a Lisboa teve portanto esse propósito _o de retratar Isabel, para que Filipe III pudesse ter uma ideia do aspecto físico da sua pretendente.
Seis séculos depois, restam-nos trabalhos de outros pintores, copiados ou pelo menos baseados nos originais de Van Eyck. Nos três, Isabel surge como uma mulher elegante, bem vestida, evidenciando luxo e requinte. Mas nos três, o que vemos é um rosto demasiado alto, um nariz desproporcionalmente protuberante, uns olhos pequenos de olhar conspícuo e um queixo aguçado que evidencia demasiado a boca.
 
 
 
Particularmente o retrato em que a infanta surge de três quartos (e de que temos apenas uma cópia feita na oficina de Van Der Weyden) denuncia uma espécie de sobrecompensação. Isabel parece uma espécie de gafanhoto andrajoso, a beleza diáfana das suas vestes, o brilho rigoroso dos véus parecem tentar compensar o seu rosto que tem algo de insecto. De um insecto sereno de sorriso contido que, apesar de tudo, indica uma mulher escorreita e submissa que conviria àquele início do século XV num casamento entre nobres. O mesmo acontece com o retrato em que Isabel surge quase de perfil (existente apenas uma cópia do século XV), plasticamente menos conseguido, mas igualmente rigoroso em mostrar as características físicas da infanta.


Num outro retrato (de que temos uma cópia coeva), metade de um díptico que, do outro lado, apresenta Filipe III, Isabel parece mais jovem e sorridente, mais virginal quase. Não tem o ar adulto e maduro dos retratos que a mostram até à cintura, mas continua envolvida numa série de véus luxuosos e minuciosamente decorados que, tapando-lhe o cabelo, também afogam o seu rosto numa profusão de ornamentos e decorações que a defendem não de parecer feia, mas de parecer apenas feia.
Não é de assumir que a forma verista como Van Eyck pinta Isabel a tenha prejudicado. Filipe III casaria efectivamente com ela, dando até origem à Ordem do Tosão de Ouro, para assinalar a união entre as duas cortes.
Passada a missão diplomática, fica acima de tudo o significado daqueles retratos. Se Jan Van Eyck e aqueles que reproduziram os seus retratos, foram rigorosos na representação do real, sabemo-lo graças aos retratos de Isabel. Seria de esperar que, naquela missão diplomática, para viabilizar um casamento entre dois desconhecidos, Jan tivesse embelezado a infanta, que tivesse disfarçado os seus defeitos. Mas o pintor não fez isto. Ele mostra uma Isabel digna e elegante, mas não ignora a realidade: o seu rosto tem delicadeza mas é tosco e desproporcional. Ela tem outras qualidades, de gosto, por exemplo, é certamente de uma corte abastada, mas a beleza física natural não a contemplou.
Van Eyck não abdica do real, não o força, ainda que o teatralize. E essa foi a verdadeira revolução que representam os Primitivos Flamengos. O domínio da perspectiva que Giotto inicia em Itália não tem grande interesse por si só. O grande interesse da perspectiva é que a saída do bidimensional para o tridimensional prevê uma maior aproximação ao real. E essa aproximação dá-se na Flandres muito mais do que em Itália, concretiza-se esplendidamente no trabalho de Van Eyck, mais do que noutro qualquer.
A prova disso está nos retratos de Isabel de Portugal, que recusam manipular a verdade, preferem o gafanhoto andrajoso que Filipe haveria de conhecer à princesa endeusada que nunca existiu.

terça-feira, 29 de outubro de 2013

A matter of pop

Às vezes para nos fazer ver determinada questão de uma forma diferente, basta que alguém saiba dar um ou dois argumentos realmente lógicos. Foi o que aconteceu comigo em relação à cultura pop, quando lia, recentemente, 'Vamps & Tramps' de Camille Paglia. Eu sou uma dessas pessoas que Paglia acha inacreditáveis, que não tem televisão nem ouve rádio, que consulta apenas alguns sites e blogs muito específicos. Por outras palavras, estou, intencionalmente, um pouco distanciado da cultura pop. Mas entendo o ponto de vista de Paglia. A cultura pop é sintoma e consequência de um pensamento geral, é uma forma de compreender uma grande massa de indivíduos. Direi um pouco distanciado, e não totalmente, porque creio que é impossível que alguém esteja totalmente distanciado dela. Se há característica que define a pop é que ela prolifera de tal forma que é impossível evitá-la de todo. Na música principalmente. 
Aliás, a minha aversão pela pop começa com dois pontos: primeiro, a obra de Andy Warhol que, por mais que seja interessante enquanto atitude, enquanto arte é, quanto a mim, uma das obras mais sobrevalorizadas de todos os tempos: parece-me um trabalho fútil cujo único objectivo é a rentabilização, uma pintura esvaziada de conteúdo que se contenta em ser uma prostituta do capital. Nisto aliás, o trabalho de Andy Warhol é um completo estandarte de tudo o que a pop é, e também daquilo que me faz detestá-la. O que nos leva ao segundo ponto: a música. Eu cresci com o surgir de cantoras como Britney Spears e Jennifer Lopez, assisti à ascensão e queda do conceito de girls-band e boys-band, com as últimas glórias mal conquistadas das Spice Girls e dos Backstreet Boys, tinha colegas na escola que sonhavam namorar com o Nick Carter e que dançavam músicas das Destiny's Child. Tal como a obra tutelar de Warhol, esta música tem em vista sempre o consumo, por norma as letras eram superficiais, quer cultivassem o power-positive-thinking, quer apresentassem queixas sobre amores mal resolvidos, recorrendo sempre às mesmas ideias e às mesmas rimas, acompanhadas de ritmos dançantes e catchy com refrões orelhudos, ou então melódicos e envolventes que proporcionassem uma meditação superficial. Não se trata tanto de despertar sentimentos ou ideias, ou de criar uma obra de arte, quanto se trata de criar um objecto vendável, o mais vago e óbvio possível, para garantir que um grande número de pessoas se identificará com ele. Precisamente a falta de conseguimento artístico, a falta de risco e a baixa criatividade me separaram do pop. A estranheza, a poética e a intensidade, encontrei-as sempre noutros géneros com os quais me conseguia identificar, porque, apesar de tudo, é ainda disso que se trata: ficamos ou não frios perante uma canção?
Se não fosse Camille Paglia, provavelmente eu nunca teria sequer tentado encontrar um outro lado para essa música que me deixa quase sempre indiferente.

1. A desculpa do coração

O pop de hoje não é o pop de há três ou quatro décadas atrás, que está sob o microscópio de Paglia em 'Vamps & Tramps', colectânea de ensaios editada no início dos anos 90. Antes, portanto, do nascimento de certas estrelas pop que são hoje os seus nomes de primeira água. Gostemos ou não, não existe hoje um único nome que tenha o peso que Madonna teve, logo desde o início. Para Madonna (mais do que para qualquer outro), a música não se ficava pelos clichés mais simples, o seu trabalho comportava uma dimensão subversiva cuja consequência última era a política e que, hoje, se encontra completamente ausente da música pop. Talvez porque essas já não são as preocupações do público-alvo. As mulheres acreditam que já conquistaram a plenitude da sua libertação sexual e da sua identidade face ao mundo, por exemplo, o que não acontecia quando Madonna lançou 'Like a Virgin'.


Eu creio, aliás, que nunca houve no pop ninguém tão profundamente inteligente quanto Madonna. Ainda que eu não tenha uma apreciação especial do seu trabalho, reconheço que a sua postura combativa e politizada foi sempre canalizada para a música com inteligência e coragem. Mais ainda, a conquista do estatuto de rainha da pop foi utilizada como forma de fazer uma diferença social. Enquanto ícone, Madonna soube usar a sua importância a favor de várias causas e defendeu ideias que, na altura, só poderiam ser aceites se advogadas por alguém que o público admirava com o fervor que a admirava a ela. O exemplo do álbum de fotografias 'Sex' (1992) que Madonna publica com fotografias de Steven Meisel é extraordinário: por mais que precisamente Camille Paglia discordasse de mim, eu diria que aquele livro foi a subversão certa no momento certo, produziu um choque completamente transformador que só poderia ser assumido por um artista destemido e preocupado em utilizar a sua fama em favor de uma ideologia.
Hoje não temos Madonnas. Uma observação muito geral do universo pop actual mostra-nos que a política e o posicionamento ideológico, mesmo que existam no discurso dos cantores, estão ausentes da música. Mais do que nunca, impõe-se o problema das vendas, e a afirmação politizada que causou tantos dissabores da Madonna é um risco que ninguém deseja correr.
A pop hoje tenta ir de encontro às angústias e alegrias adolescentes, apela à frivolidade disfarçada do mundo, neutraliza-se politica e socialmente através da desculpa do coração. E se os problemas emocionais são comuns em quase todos os géneros de música, o grande problema da pop, que é também o seu segredo para o sucesso, é a superficialidade com que esses problemas são tratados. Pensemos por exemplo nas letras previsíveis de uma Taylor Swift (que de um início country se tem desviado cada vez mais para a pop) ou de um Chris Brown e veremos como tudo no seu discurso é vago para ser abrangente. É uma contenção de riscos, a especificidade eliminará ouvintes, enquanto que um discurso mais lacónico acabará por ir de encontro as vários desgostos amorosos, independentemente dos seus contornos.
Se Kate Bush ou Joni Mitchell alguma vez foram verdadeiramente pop, então os seus herdeiros migraram para o folk, para a alternativa, para o indie e para o rock. Raros artistas verdadeiramente pop abrem o seu coração de uma forma mais detalhada, o que gera uma crise de conteúdo. A pop, neste momento, não tem assunto, faz-se com cada vez mais futilidade, uma futilidade que, ainda por cima, quase sempre é dissimulada de várias formas, disfarçando-se de sinceridade.


2. a futilidade sai do armário

Não é sempre assim, no entanto. Artistas pop vai havendo que conseguem assumir a sua falta de profundidade. A música pode não deixar de ser superficial, mas tem a decência de não se fazer mascarar, e tem ainda um valor muitíssimo mais alto: é sintoma fortíssimo do pensamento mais comum. 


Para mim, não haverá melhor exemplo do que o de Ke$ha. O primeiro álbum, 'Animal' veio a lume em 2010, e seguiram-se o EP 'Cannibal' (2010) e o álbum 'Warrior' (2012). Ke$ha vive num mundo de unicórnios e discotecas, faz a constante apologia do álcool e do glitter, apresenta-se com uma estética colorida e excessiva, ainda que, de party-girl no seu primeiro álbum esteja a sofrer uma espécie de transformação num contrasenso pop-hipster, que tem tornado a sua sonoridade bastante mais interessante, como atestam canções do último disco, caso de Supernatural. No entanto, o maior logro da sua música tem sido, desde o início, a sua seriedade em assumir que se trata de um universo fantasioso e supérfluo, não se esconde atrás de supostos sofrimentos. O seu primeiro single, Tik Tok falava de um saída louca à noite, tal como o segundo, Blah Blah Blah e o quarto, Take it Off. Pelo caminho, fica Your Love is My Drug, uma canção de amor descomplexada e festiva, que, em termos de som, não se afasta nada das restantes. Os dois singles do EP são também sobre grandes saídas a bares, We R Who We R e Blow, sendo que, neste último, Ke$ha apresenta um videoclip efabulado que não faz, declaradamente, sentido nenhum: apenas tenta (e consegue, sejamos sinceros) ser divertido. Em 'Warrior', regressamos aos grandes temas da festa com Die Young, C'Mon e Crazy Kids, contando a segunda com a participação de Iggy Pop.
A sua música tem qualquer coisa de opiáceo enquanto música dançável, a sua mensagem é completamente oca. O facto de uma mensagem assim chegar a tanta gente só nos mostra precisamente que a festa é a grande preocupação do público-alvo, no fundo. Isto porque Ke$ha não tem sequer a faceta erotizada que Madonna tinha: pelo contrário, a questão do erotismo não tem grande presença nesta música, a figura de Ke$ha é mais fantasista do que sexualizada. Trata-se de uma ideia de sair e divertir-se, com a diferença de que isto se faz todos os dias ou, pelo menos, em todas as canções. 
Argumente-se ainda que o último álbum se afasta em termos sonoros em direcção a uma electrónica irregular, que lhe dá realmente uma roupagem um tanto hipster. Ainda assim, a mensagem mantém-se.

3. a questão da voz

Bem diferente é a proposta de Christina Aguilera, que muitos apontam como a única digna sucessora de Mandonna, esse espectro eterno. Concordo. Isto porque Aguilera não só se revela uma artista de uma versatilidade impressionante, como é das poucas artistas pop que mostra uma inteligência e uma sensibilidade acima da média.
O primeiro álbum, homónimo, de Christina Aguilera foi editado em 1999 e valeu-lhe o Grammy para Melhor Artista Revelação. Depois de gravar uma versão desse álbum em castelhano, 'Mi Reflejo' (2000), Aguilera optou por uma polémica cisão com os seus primeiros trabalhos. Escolheu novos produtores, recusou-se a continuar a interpretar canções escritas por outros compositores e passou a ter controlo sobre a sua imagem, essa questão tão preponderante na pop. Por assim dizer, tomou as rédeas da sua própria carreira. Quem ouve 'Stripped' (2002) não reconhece a Christina dos primeiros álbuns. O som é maturado, as letras têm uma qualidade surpreendente e a colaboração de nomes como Linda Perry, Lil'Kim ou Floria Sigismondi fazem uma certa diferença. Mas o que mais impressiona em 'Stripped' é a voz fortíssima de Aguilera que é finalmente valorizada. Na pop actual não há voz como a dela, e talvez nem mesmo na história da pop tenha havido voz mais intensa. Ouvi-la em canções como Fighter, Cruz ou Beautiful é entender como efectivamente estamos perante uma cantora a sério, com uma voz matizada perfeitamente capaz de fazer sentir, essa capacidade tão pouco importante para a pop. E em Can't Hold Us Down, Christina assume também uma faceta mais politizada, quando mostra que as mulheres, de facto, ainda não conquistaram a sua plena liberdade na sociedade. Fá-lo de forma simples e directa, mas vale enquanto gesto minimamente consciente.
Após um hiato de quatro anos, Christina mostra uma vez mais a sua versatilidade quando lança 'Back to Basics', um álbum onde assume as suas influências, ligadas ao jazz e à soul. Não caiu bem ao público, o álbum foi dos menos vendidos da sua carreira, mas ficou provada a cultura de Aguilera e a sua capacidade para trazer novos sons ao pop, como vemos por Ain't no Other Man e Hurt, uma canção que contraria precisamente a tendência básica da pop para não ser específica em nada. Trata-se de uma canção dedicada ao pai, com quem Christina tinha uma relação conflituosa. Por volta da mesma altura, Kelly Clarkson lançou uma canção, Because of You, que, pelo vídeo, percebíamos tratar-se de uma queixa familiar. A diferença é que Christina fala dos seus fantasmas com uma sinceridade desarmante, ao passo que a canção de Clarkson podia perfeitamente ser dirigida a um namorado maldoso.
'Bionic' (2010) e 'Lotus' (2012) são um regresso a uma pop mais ligeira, que mesmo assim se expressa com garra, com canções como Not Myself Tonight e Your Body. Mais ainda, em termos de imagem, Christina apresenta-nos videoclips de muita qualidade, bem coreografados e, no caso de Your Body, um dos melhores videoclips pop alguma vez realizados, com uma ironia e uma subtileza assinaláveis.


Num lado diferente da pop encontramos Adele, com os seus dois álbuns '19' (2008) e '21' (2011). O grande ponto de vantagem de Adele foi sempre a voz, que tornou grandes sucessos canções de amor que não eram dançáveis nem minimamente upbeat, como Chasing Pavements, Rolling in the Deep, Someone Like You ou Set Fire to the Rain. Quase todas as canções de Adele falam de amores mal vividos, mas os temas da separação e do desgosto são aqui abordados com uma crueza que nos atinge. Sendo de certa forma uma estrela pop, será igualmente verdade que Adele é vendável porque tem uma espécie de público que a tem como cantora de culto, e esse público está tanto nos ouvintes de pop como em não ouvintes de pop. A sua música consegue atravessar essa fronteira, porque é tão simples e forte que acaba por se demarcar das piores facetas da pop, que a tornam detestável aos olhos de muitos.
Outra coisa que impressiona no caso de Adele é o problema da imagem. Apesar de bonita, Adele é gorda, veste-se quase sempre com um mau-gosto que impressiona e nos seus videoclips apresenta-se tal como é, sem grandes produções e sem omissões. Isto já lhe valeu algumas polémicas, das quais sai quase sempre vencedora, como aconteceu com os infelizes comentários de Lady Gaga, que a criticou por ter excesso de peso. Mas o que Adele conseguiu é uma vitória astronómica, como o foi o sucesso que uma mulher latina como Jennifer Lopez conseguiu mal lançou 'On The 6' (1999). Adele destruiu a ideia de que uma cantora só se consegue tornar estrela pop se tiver um corpo escultural e uma apresentação provocante. Ela é a diva wagneriana de conservatório que decidiu experimentar a pop, assume o seu desencaixe e é admirada por isso. Com Adele, a questão do corpo voltou à ribalta e a música foi o que verdadeiramente triunfou: é idiota rejeitar uma cantora cujas canções são tão boas apenas porque é gorda. Mais do que ser um preconceito, o excesso de peso é um verdadeiro pecado social, uma falha imperdoável. Quem melhor que uma artista pop brutalmente bem-sucedida para vir pôr essa ideia em causa? Tendo eu, até aos 13 anos, sofrido de um grande excesso de peso, admiro mais ainda a personalidade de Adele. Ela quebrou o tabu do peso, forçou o público a admirá-la pelo seu talento enquanto cantora e compositora em vez de a desprezar pela sua imagem. Não estou certo que tenhamos encontrado maior desafio desde que Madonna impôs a mulher como ser sexual.

4. as raízes e as influências

Acima falei de Jennifer Lopez, cujo primeiro álbum, editado em 1999, lhe granjeou um reconhecimento e um estatuto absolutamente à-parte de tudo o resto. Até aos dias de hoje, J.Lo continua a ser uma das mais respeitadas artistas pop, por mais que mude de estilo visual e sonoro, continua a chamar a atenção, produz clássico pop atrás de clássico pop e abriu o caminho a uma série de latinas e latinos na grande indústria pop dos Estados Unidos. Antes dela, talvez só Gloria Estefan tivesse conseguido este tipo de reconhecimento, mas é preciso lembrar que a pop propriamente dita, nunca interessou a Gloria.


Shakira era já uma cantora conceituada na América Latina quando gravou o seu primeiro álbum em inglês. Na bagagem trazia já dois álbuns de originais, dois álbuns de adolescência rejeitados e um álbum ao vivo que lhe valera o Grammy Latino de Melhor Álbum do Ano. Não era uma principiante quando 'Laudry Service' viu a luz do dia em 2001 e se tornou um dos maiores sucessos pop de todos os tempos. Esta rapariga que se apresentava fora da América Latina com Whenever Wherever era tudo menos vulgar. A sua música, mesmo cantada em inglês com letras simples mas não de todo desprezíveis, era declaradamente de raiz latina, os seus videoclips tinham pouquíssimo artifício, não se apresentava com bailarinos nem com grandes coreografias: sozinha, com o seu corpo bonito mas frágil, parecendo dançar instintivamente, ela tinha uma sensualidade que dispensava uma grande produção, era cativante e autêntica. Os singles seguintes, Underneath Your Clothes, Objection (Tango) e The One ajudaram a assimilar o sucesso do primeiro álbum, e a eles seguiu-se um single em castelhano, Que Me Quedes Tu, uma balada belíssima, que anunciava aquilo que o álbum seguinte confirmaria: que o sucesso em inglês não fez Shakira abdicar das suas origens latinas. Pelo contrário, desde 2001, Shakira lançou mais dois álbuns em inglês e outros dois em castelhano. E terão sido precisamente as suas raízes latinas e o facto dela misturar muitas vezes as duas línguas até nas suas canções mais badaladas, que lhe garantiram um lugar muito especial dentro do pop. Ela é reconhecida como autora e intérprete de boas canções pop, comunica determinadas emoções entre a balada e a música dançável, e é igualmente competente em ambos os estilos e em ambas as línguas. Mesmo sem ter voltado a atingir o pico de vendas que foi 'Laudry Service', Shakira, sabemo-lo hoje, é uma artista de culto para um público bastante alargado que admira a sua naturalidade e entende a sua necessidade de liberdade linguística e de sonoridade.


O caso de Rihanna, nascida nos Barbados, não é exactamente o mesmo. O seu começo, com os álbuns 'Music of the Sun' (2005) e 'A Girl Like Me' (2006) não faziam prever uma artista pop particularmente diferente. Ainda que em S.O.S., single do segundo álbum, ela parecesse ter qualquer coisa de original, nada nela fazia prever mais que um sucesso temporário para Rihanna. 'Good Girl Gone Bad' (2007), por mais que tenha sido bem-sucedido, era um trabalho absolutamente aborrecido que não nos mostrava que Rihanna fosse cantora alguma de especial. O álbum seguinte, 'Rated R' (2009), ainda que se tivesse apresentado com um single interessante, Russian Roulette, acabava por falhar redondamente em produzir mais alguma canção interessante. Parecia que Rihanna nunca seria uma cantora pop minimamente surpreendente quando, em 2010, ela lança 'Loud'. Neste álbum, Rihanna aceitava uma série de influências, afro e jamaicanas, que a tornavam de certa forma invulgar. Mais ainda, é neste álbum que consegue, pela primeira vez, chocar. Depois dos singles Only Girl (In the World), a sua primeira canção verdadeiramente boa, e  What's My Name, Rihanna vê o video de S&M censurado por apresentar referências explícitas a práticas sadomasoquistas. A canção, em si, continuava a linha do primeiro single, era uma canção pop obscura e no entanto bastante animada e violenta. As polémicas continuariam com o vídeo de Man Down onde Rihanna aparece a alvejar um homem que a havia violado. Nesta canção, a referência jamaicana traz um som estranho mas contagiante, que Lil'Kim soube aproveitar numa versão que faz desta canção, Cheating.
No seu trabalho de 2011, 'Talk That Talk' Rihanna regressa às polémicas com o vídeo de We Found Love, uma das suas melhores canções, produzida por Calvin Harris. Sendo uma canção de discoteca, acaba por soar extremamente bem, a letra triste contrapõe-se com suavidade ao ritmo acelerado e Rihanna mostra, uma vez mais, a sua capacidade para as canções estranhas.  Do mesmo álbum, merece referência Where Have You Been, onde a electrónica encontra um ritmo afro que cabe muito bem à voz anasalada de Rihanna, que continua a ser um dos seus maiores pontos de interesse.


5. o problema do renascimento

Uma das capacidades cruciais para a pop é a sua capacidade de reinvenção. A maneira mais eficaz de manter o público interessado em alguém é que esse alguém seja camaleónico, e seja capaz de ser o mesmo, nunca sendo igual. Quem via Justin Timberlake nos seus tempos dos 'Nsync, uma boys-band de sucesso na primeira vaga de boys-bands e girls-bands (a segunda está a ser agora, com os One Direction e os The Wanted), nunca diria que, mais tarde, ele se tornaria um grande músico pop. Ainda que 'Justified' (2002) fosse ainda inteiramente refém da experiência com os 'Nsync, no seu segundo álbum, 'FutureSex/ LoveSounds' (2006) Timberlake revela-se bastante competente enquanto performer e até, por que não dizê-lo?, enquanto autor de canções com série qualidade pop. Com canções como Sexyback ou What Goes Around Comes Around, onde a sensualidade masculina é assumida e louvada e a voz algo andrógina de Justin encontra a perspectiva certa, ele torna-se o derradeiro artista pop masculino, justifica com mais do que o seu aspecto físico o estatuto de sex-symbol e demonstra-se oportuno e inteligente naquilo que faz.  O mais recente 'The 20/20 Experience' (2013) confirma precisamente tudo isto, é um álbum discreto, ligado à soul e a um sexy-hip-hop, influências que paralelamente estão sendo exploradas, com resultados mais interessantes ou menos, por outros como Bruno Mars e Chris Brown.
E, de facto, Timberlake consegue fazer aquilo que outros, na mesma situação, não conseguiram. Basta pensarmos em Nick Carter, Melanie C, Duncan James, Lee Ryan ou Geri Halliwell, e veremos que as bandas a que pertenciam, sendo projectos inócuos e com prazo de validade, mais do que não os ajudarem em carreiras a solo, inclusivamente os prejudicaram, pois ficariam sempre associados à experiência fútil e infértil das boys-bands e girls-bands. Justin Timberlake será, por isso, o caso mais extraordinário da reabilitação de uma imagem, de adolescente azeiteiro a homem maduro e sensível às exigências do pop.
E em canções como Sexyback ou Mirrors, não estamos perante nada que não sejam boas canções pop, o que é também importante.


6. haja algum folclore em tudo isto
 
Para vender música pop, a música não se basta. Isto, porque a pop não está só na música, não está sequer principalmente na música. Toda uma indústria de associações de publicidade, de revistas de mexericos contribuem para interessar o público nos artistas que este deve consumir, com os quais, tenta-se, ele poderá identificar-se, sobre o qual poderá debater. Mas ser-se role-model está fora de moda. O célebre chavão de que as meninas boas vão para o céu e as más para todo o lado é a lei da arena pop. Se o rock foi o primeiro a mitificar os comportamentos amorais, ou revolucionariamente imorais dos seus ídolos, como Kurt Cobain, Janis Joplin ou Jim Morrison, cedo o pop percebeu que o choque tem um valor tremendo e que ser um ultraje é vendável, até porque, no pop, não existe má publicidade.
 
Sem uma estratégia centrada numa persona pública irreverente e instável, não teria tanto sucesso alguém como Nicki Minaj. Minaj impôs-se logo a partir do seu primeiro trabalho, 'Pink Friday' (2010), principalmente por causa das suas altercações com a veterana Lil Kim.
Tudo começou porque Kim acusou Minaj de utilizar gravações inéditas suas para várias canções, particularmente Automatic. A troca de insultos, com mais ou menos classe, por parte de ambas, cedo passou das entrevistas para a música. Na sua mixtape 'Black Friday'  (2011), Lil Kim não só escreve uma música directamente sobre o facto de Minaj lhe ter roubado canções e toda uma imagem, como ainda usa um sampler de Did it on 'em de Minaj para cantar a letra absolutamente degradante de Pissin' on 'em. E se Minaj já havia deixado uma mensagem indirecta com o seu Roman's Revenge, no segundo álbum, 'Pink Friday: Roman Reloaded' (2012) responde às canções de Lil Kim com Stupid Hoe.
No meio de tudo isto, a música de Minaj foi o que menos interessou. O que é natural, porque trata-se de um projecto musical que nem sabe o que quer ser: apresenta-se como rap, mas não só Minaj é incapaz de fazer uma rima decente, como parece convencida de que fazer rap é dizer palavrões e ser ultrajante gratuitamente. As suas canções valem essencialmente pelos refrãos orelhudos que, de facto, ficam no ouvido. E o que se torna mais irónico é que a única canção de Nicki Minaj que até aos dias de hoje consegue ser quase boa é Automatic, precisamente aquela que plagiou de Lil Kim. Mas a verdade é que Kim não precisava de se ter preocupado tanto. Não há maneira de algum dia uma estrela meramente folclórica como Minaj conseguir ser aquilo que, no pop, é a cantora de 'La Bela Mafia'.
 
Mas este tipo de folclore faz falta ao pop. Outro exemplo recente disso mesmo foi o de Lana del Rey. Não foi tanto por insultar ninguém que se destacou, mas a menina de 'Born to Die' (2012), cuja música está longe de ser má, foi um sucesso inesperado: não dança, não costuma aparecer seminua, não tem, de resto, uma postura particularmente erotizada, as letras parecem ser mais rock do que pop. Mas Lana del Rey tem fama de ser incapaz de cantar mal ao vivo, está nitidamente pouco à vontade quer no palco quer nos videoclips, e teve algumas prestações desastrosas em programas de televisão onde foi cantar ao vivo.
O facto é que criou um público que lhe é fervorasamente fiel, e, independentemente daquilo que possam ser as suas performances, a música tem, de facto, bastante qualidade. Soa ao que soaria Brintey Spears, se Britney Spears fosse cantora. E talvez isso explique por que a sua música, mesmo sendo apenas remotamente pop, a transformou numa mega-estrela pop. Canções como Born to Die, Blue Jeans, ou Summertime Sadness, particularmente na versão remisturada por Cedric Gervais, demonstram que, pop ou não, Lana del Rey consegue ser mais do que fogo de vista.


7. a falta de cultura

Mas ninguém tem sido, provavelmente, um fenómeno pop tão grande como Lady Gaga, desde Madonna. Camille Paglia, a pensadora mais avançada e arguta no pensamento sobre os fenómenos pop escreveu um artigo brilhante em que explica detalhadamente por que Lady Gaga representa a morte do sexo, mas também a morte de tudo o que o pop foi desde Madonna. Que Gaga seja a morte do erotismo, não apresenta dúvidas. A sua figura artificial e fabricada é um delírio kitsch e camp, além de um acumular de dejá-vues, e a sexualidade não convive pacificamente com estas características.
Lady Gaga será sempre uma das artistas mais importantes em toda a indústria musical. Importante porque ela marca o fim do valor argumentativo e contestatário da pop, marca a definitiva falta de inteligência ao produzir música que será consumida por grandes públicos, assinala a nítida ausência de cultura musical num público mais jovem que ouve música pop mas não lhe conhece sequer a história mais recente. Gaga é, de facto, tão desinteressante, tão ridícula, tão vazia e tão inculta como o público que a ouve e que ela representa. 
Quem é este público? Trata-se um largo conjunto de jovens que cresceu estando continuamente perante a televisão mas que, paradoxalmente, foi incapaz de assimilar qualquer referência da cultura popular (pop); uma geração que não teve a necessidade de uma verdadeira luta social e que se desviou, ou foi desviada através de uma educação sobreprotectora, de qualquer sugestão de uma luta tal; que substituiu a conversa, enquanto exercício primeiro do pensamento, pelas trocas de palavras lacónicas pelo telemóvel e pela internet; e que não foi bem preparada para as relações humanas, que aprendeu a viver sempre através de um qualquer aparelho tecnológico. A tecnologia sabotou, começamos agora a percebê-lo, o modo de estar da sociedade. A geração das revoluções dos anos 70, do Woodstock, do Flower-Power não asseguraram a subsistência dos valores que defendiam: o yuppie surge da rápida conversão às promessas do capital dessas comunidades histéricas que não procuravam mudar a sociedade, apenas fazer uma birra perante os pais. Se há geração verdadeiramente digna de desprezo, é a dos hippies do Woodstock, precisamente aquela que não incutiu nos seus descendentes senão o oposto daquilo que haviam defendido para si. 
Daí a frieza cultural e ideológica do público de Gaga. Quando ouvem aquela figura teatral, artificial, estilizada e aberrativa, sentem-se a exercer uma espécie de liberdade de expressão. Que ela tenha dado voz a tanta gente só mostra como as revoluções dos anos 70 trouxeram tudo menos liberdade e pluralidade. É precisa uma pop-star forçada e idiótica mas astuta para que alguém possa assumir-se diferente e enfrentar as consequências de ser diferente, ainda que não passe, bem vistas as coisas, de uma cópia do seu ídolo. Ou seja, não só esse público é inculto e ignorante, como, o que é mais grave, profundamente inseguro.
O que distingue Gaga do seu público não é senão esse sentido de oportunidade: ela percebeu a crise de consciências que marca a actualidade e soube aproveitar-se dele para granjear sucesso. Essa é a sua importância para a música. Isso faz dela um ídolo, ainda que um ídolo com pés de barro.