sexta-feira, 30 de outubro de 2009

O Manual dos Inquisidores



"Caím" de José Saramago chegou às livrias há quase duas semanas. O caso está complicado. Logo no dia do lançamento, já havia pessoas a manifestar o seu desagrado pelo tema e seu tratamento do novo romance.
O facto de José Saramago ter declarado que, a seu ver, a bíblia é "um manual de maus costumes" e "um catálogo de crueldade" não ajudou. Se já antes as pessoas estavam ultrajadas e a ultrajar um livro que não leram, estas frases de Saramago são a catapulta definitiva que legitima que se fale do livro sem o ler.
Porque o problema maior, penso, não foi o facto de se estar a falar de um livro que não se leu, foi o de estar a falar dum livro que nem se vai ler sequer. E pelos vistos, já nem necessidade disso existe, porque as declarações do autor já servem para os reaccionários lhe caírem em cima.
Mas tudo bem. Entrevista com Judite de Sousa, debate na Sic Notícias com um padre teólogo. Não faltou nada. Para mim, que aprecio sempre um bom escândalo, mas que o aprecio mais ainda se a igreja estiver envolvida, foi um verdadeiro banquete.
Antes de mais, quero realçar a atitude de Saramago, aquando da entrevista com Judite de Sousa. Demarcou-se pelo nível e pela calma com que falou e, acima de tudo, por se mostrar disponível para um debate com qualquer pessoa, partindo do princípio que essa pessoa tivesse lido o livro.
Foi o caso. No dia seguinte, na Sic Notícias, Saramago debate com o padre Carreira das Neves, que além de ministro do senhor na terra, é também teólogo.
Sobre este debate, um apontamento(zinho): Carreira das Neves estava com sérias dificuldades em contrariar José Saramago.
Percebo porquê: pois como se contraria alguém que, para falar, se apoia unicamente na logica? É complicado. O próprio padre admite a existência de evangelhos proibidos, da relutância do clero em colocar o evangelho à disposição e leitura dos crentes, e, no meio de tudo isto, repete repetidamente o mesmo argumento: que não podemos interpretar a bíblia pelo que está lá escrito.
Aí, Saramago lança a cartada mais simples de todas: se é para isso, qual a necessidade da haver texto escrito?
Também particularmente infeliz foi a ideia de Carreira das Neves de comparar a bíblia a qualquer livro, por exemplo os de Saramago. Bem, eu acho que os livros de Saramago, e esta polémica em torno de "Caím" vem comprová-lo, não são sagrados, nem têm uma religião que neles se baseie.


Televisão áparte, há que falar dos jornais. Parece-me que qualquer palerma sem méritos reconhecidos se dá a competência de falar do assunto, mesmo que dele nada perceba. Alguém dizia, numa revista cujo nome agora me escapa, que Saramago era "um bronco" no que toca a política. Na minha opinião, palavras desta categoria não são propriamente dignas de uma coluna de qualquer colunista sério, pelo que a sua utilização é já sintomática do grande disparate que essa coluna era.
Mais supreendente ainda foi o Público, na sua edição da quinta feira da semana passada. Eu, que julgava que o Público era um bom jornal, vi-me absolutamente defraudado. Fica ao nível de qualquer pasquim que se distribui gratuitamente. A começar por Manuel Fernandes, director, que atira com ideias como este livro ser um livro destinado ao esquecimento, a avaliar pelas primeiras críticas (Ou seja, não tem uma opinião própria) e, por fim, atira com a acusação mais estúpida que eu já ouvi: que isto se trata de uma estratégia de marketing. Que eu me lembre, completam-se 11 anos que Saramago ganhou o Nobel. Para o bem e para o mal, ele não precisa de mais marketing, todo o marketing está feito já. E mesmo que não tivesse ganho o Nobel, há que reconhecer que Saramago tem já um público que o lê e que, para todos os efeitos, o respeita o suficiente para não precisar de campanhas de marketing.
Há ainda que ver que Manuel Fernandes tinha o dever de saber daquilo que fala. Não é o caso. Porque se fosse, ele não estranharia, nem atribuiria a ideia de estratégia a "Caím", porque, para quem sabe, já há muito tempo que Saramago se dedica a minar as fachadas com que a igreja se impõe entre nós. E se é difícil encontrar um livro em que este não largue as suas farpas á igreja e ao clero, pelo menos em "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", já Saramago se tinha insurgido contra a bíblia, num projecto cuja envergadura nada fica a dever a "Caím". Portanto, vir agora dizer que nada disto é a sério e que estamos perante um golpe publicitário só tem um nome: falta de cultura.
Cartas dos leitores, então, isso é que foi. Discursos inflamados sobre Saramago desrespeitar a religião, pessoas que dizem que ele tem inveja porque milhões de pessoas leram a bíblia e ela ficou para sempre na cabeceira, ao passo que os outros livros, como so de José Saramago, chegam e partem. Pessoas que afirmam a falta de inteligência do escritor.


No meio disto tudo, só há uma coisa que eu percebo: são poucas as reações de pessoas que não sejam as que, de facto, dormem com o missal ao lado. Só dessas poderia partir isto, que para mim, é ainda o maior escândalo de "Caím": é que vivemos num país com problemas económicos, com um primeiro-ministro que se recusa a atender aos problemas reais dos cidadãos, onde 120 mil professores saem à rua em protesto e são ignorados, onde hospitais fecham e a saúde se torna cada vez mais um privilégio de classes, onde a exclusão social é ainda uma realidade ignorada, onde temos ainda 10% de analfabetos, onde milhões são dados a quem andou a roubar nos BPI e BPN e por aí, onde o comum cidadão é diariamente manipulado e enganado, onde a cultura não tem existência, onde o desemprego cresce e continuará a crescer. E, no meio de tudo isto, é porque Saramago escreve um romance em que deixa a sua interpretação controversa da Bíblia que surgem discursos inflamados e grandes protestos?
Algo está errado neste país.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Falência e Outros Aspectos da Quasi

Parece que a editora Quasi entrou em falência. Já muito se discorreu sobre a editora enquanto esta esteve activa, e mais se discorre agora que termina.
Já que todo o tipo de pessoas está a falar do assunto, portanto, não vejo razões para eu mesmo o não fazer.
Para começar, esta notícia em nada me surpreende. Numa editora que nos habituou à pordução massiva de livros, que saíam às dezenas por ano; não deixa de se estranhar que este ano tão poucas notícias nos tenham chegado de Famalicão. Um quarto livro de Rui Lage, um novo original de Rosa Alice Branco, o volume de piedade de Nuno Morais da Rocha e… pouco mais.
“Vissicitudes da crise…” pensei eu. No entanto, parece que essas vissicitudes realmente afectaram a editora de Jorge Reis-Sá.
Àparte de méritos e desméritos deste como autor, como editor, os seus méritos e desméritos são mais que evidentes.
Por um lado, frequentemente Jorge Reis-Sá publicou verdadeiras peças de lixo, nomeadamente no que toca aos novos autores, apostando em poesia ou pretensa poesia de todos os tipos e todas as qualidades.
As qualidades gráficas da editora também deixavam muito a desejar. Capas sem qualquer estilo que identificasse a editora, usando todo o tipo de fotografias vulgaríssimas, desenhos taxtativos, e, por vezes, capas sem conexão alguma com o conteúdo dos livros. Digamos que, se julgássemos os livros só pela capa, teria sido a ruína de “As Fábulas” de Fiama, ou de quase todos os que publicou de Ramos Rosa, etc.
Ainda assim, Jorge Reis Sá pode orgulhar-se de ter publicado muitos autores que outros editores não publicaram (Por questões de táctica, etc.), e de, no meio de muito lixo, ter realmente publicado verdadeiras obras-primas. A reter, as obras reunidas de Isabel de Sá e Rosa Alice Branco, vários originais de António Ramos Rosa, um dos mais interessantes livros de Maria Teresa Horta, o livro de Eduarda Chiote que recebeu o prémio Teixeira de Pascoaes, o último original de Fiama Hasse Pais Brandão, um original de Helga Moreira, outro de Jorge Sousa Braga, outro de Manuel Cintra, antologias de Adília Lopes, Al Berto, Carlos de Oliveira ou Pedro Homem de Mello, bem como os primeiros livros de autores como Tiago Araújo, tendo, portanto, sido ele a abrir as portas a autores que só mais tarde viriam a publicar noutras editoras, e portanto, a receber críticas (Nomeadamente de António Guerreiro, que só conta as bibliografias a partir da Averno.).
No meio disto tudo, há que ver que, mesmo sendo de gosto duvidoso, Jorge Reis Sá merece alguns méritos. Só porque é justo que assim seja.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

até arrepia...

I've seen the real atrocities,

Buried in the sand,

Stockpiled safety for a few,

While we stand holding hands.

I'm living in the Ice age,

I'm living in the Ice age,

Nothing will hold,

Nothing will fit,

Into the cold,

a smile on your lips.

Living in the Ice age,

Living in the Ice age,

Living in the Ice age.

Searching for another way,

Hide behind the door,

We'll live in holes and disused shafts,

Hopes for little more.

I'm living in the Ice age,

I'm living in the Ice age,

Nothing will hold,

Nothing will fit,

Into the cold,

No smile on your lips,

Living in the Ice age,

Living in the Ice age,

Living in the Ice age.

IAN CURTIS

joy division: ice age

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Wanda Ramos: Poe-Mas-Com-Sentidos

SENTIDOS CONSENTIDOS



Falar de Wanda Ramos (O que já não faço há quantos meses…) implica sempre falar de questões de aceitação por parte do público, da crítica e dos restantes escritores. E se é verdade que, em última análise, tudo isto são questões paralelas ao livro, também é verdade que em muito definem o destino deste.
O caso de Wanda Ramos, no entanto, acrescenta a estas questões paralelas uma mais: a relação da própria autora com os livros, e, concrectamente, com a sua poesia.
Precocemente desaparecida em 1998, em 1999 veio a lume o seu último romance, “Crónica com Estuário ao Fundo” (Caminho). Mas o seu último livro de poesia surgira já em 1986, este “Poe-Mas-Com-Sentidos” (1986, Ulmeiro).


Nesta edição é visível, nomeadamente através da nota final, a vontade da autora de realmente terminar ali a sua poesia. Isto porque “Poe-Mas-Com-Sentidos” repõe “Nas Coxas do Tempo”, que tivera edição autónoma em 1970, numa restrita plaquette onde se inseriam ainda desenhos de António Ferra; recolhe todos os poemas dispersos em jornais e revistas literárias, bem como vários poemas em prosa, provavelmente os posteriores a “Intimidade da Fala” (1983, &etc) que era consituído apenas por poemas em prosa.
Por outro lado, percebe-se que este é um final precoce, efectivamente:
Colocando Wanda Ramos no seu contexto, ela surge em 1970 com todos os entraves que uma edição de autor implica, e apresenta-nos uma poesia onde dois ecos são visíveis: o romantismo exacerbado de Florbela Espanca e o erotismo assumido de Maria Teresa Horta. Não sendo “Nas Coxas do Tempo” um mau livro (É, alias, do meu ponto de vista, um dos melhores momentos da autora.), perde um pouco do seu impacto pela imediata associação a estes nomes. Posteriormente, em particular em “E Contudo Cantar Sempre” (1979, Inova), estes ecos tornam-se mais diluidos numa voz que efectivamente começa a definir-se.
Ainda nos anos 70, recebemos os sururus de Joaquim Manuel Magalhães e João Miguel Fernandes Jorge, que os próprios mais tarde haveriam de reconhecer como idiotices, mas que, para todos os efeitos, sempre causam determinado impacto num meio que tem pavor a não se renovar (Nem que seja pelo non-sense.); a poesia violenta de Al Berto que haveria de se tornar numa das mais originais da nossa literatura; e ainda alguns outros nomes, entre os quais o de Eduarda Chiote, que, passados estes anos, se percebe estarem mais relacionados, ainda que de forma ténue, com a poesia de 80 do que propriamente com a de 70, ainda que nela tenham surgido.
No meio disto, um livro em que há referências que demasiadamente se fazem sentir é para marcar uma pessoa.
Wanda Ramos terá chegado a esta conclusão. O facto de entretanto ter inciado o seu percurso como romancista, com “Percursos (Do Luachimo ao Luena)” (1981, Presença) e de neste se ter demonstrado realmente mais original do que na poesia (“Percursos” é, a meu ver, o melhor romance sobre um outro lado, o da mulher, da Guerra Colonial, depois de “A Costa dos Murmúrios” de Lídia Jorge.) também terá contribuído para que Wanda Ramos tenha decidido em definitivo dedicar-se a um projecto em que podia realmente ser boa, e que, aliás, a conduziu à História da Literatura Portuguesa.
“Poe-Mas-Com-Sentidos” é, portanto, a colecção última de poesia da autora. E uma boa colecção, mesmo assim.

A inclusão do primeiro texto da autora, que dista vários anos dos restantes (Segundo a nota final, este livro cobre um espaço de tempo entre 1968 e 1986.), funciona bem por tornar realmente clara a mudança de tonalidade nesta poesia: se inicialmente ela se nos apresenta simbólica e, por vezes, quase surrealizante, com imagens sucessivas onde o erotismo se torna uma espécie de mundo pairando sobre o mundo; na segunda secção, que dá título ao livro, é como se este mundo simbólico se tivesse infiltrado no real, sendo que as referências simbólicas encontram uma conexão com o real através do indivíduo, do sujeito poético. A cidade, a rua, a casa, são descritas e entrecortadas por “entradas em cena” de elementos que simbolizam invariavelmente o desejo. Por outras palavras: a percepção da realidade é filtrada pelo corpo, e apenas daí se pode tornar objecto de desejo ou contentor de um objecto de desejo.
Noutros poemas, a mesma situação acontece sem que o seu resultado seja o desejo, e, nesse caso, é por norma a tristeza e a solidão, também elas experienciadas fisicamente.
Este capítulo, “Poe-Mas-Com-Sentidos”, é também uma espécie de biografia da autora, contendo, além dos poemas mais emotivos ou descritivos de situações que o são, referências à “África (Também) Minha”, e todas as questões de aculturação e distância que uma mudança tão radical implica; e também a própria escrita, enquanto elemento constituinte do quotidiano, a necessidade das palavras para fixar “tantos destes itinerários perdidos nos anos/ achados a cada hora de entrar em casa” (pag.35).
Por fim, o último capítulo, “Brumas”, engloba seis poemas em prosa. A maior diferença em relação aos poemas em verso será provavelmente a densidade narrativa: esta torna-se mais definida a partir do segundo livro da autora, mas, nos poemas em prosa, surge definitivamente mais forte, como se se tratasse de uma “página de diário entreaberto” (título de uma sequência de “Intimidade da Fala”).
Uma questão importa ainda referir: a linguagem. Em Wanda Ramos dificilmente se encontram palavras para procurar no dicionário. Encontram-se, no entanto, palavras que por vezes parecem já ter caído em desuso, algumas abordagens mais distantes de uma erudição que a maioria dos autores procura. Para isto, tanto as suas raízes africanas, como uma leitura dos seus romances que a isto mesmo aludem, ajudam a entender que a linguagem, a “fala” de Wanda Ramos é mesmo profundamente “íntima”, precisamente por isto: é uma fala, um vocabulário, profundamente ligado às suas origens, numa relação quase umbilical, e que à escritora dificilmente passaria despercebida, uma vez que tinha o curso de Letras. Esta assumpção da origem da fala pessoal é, portanto, um dos elementos de maior interesse na poesia de Wanda Ramos, e poderá ter sido, para os delicados ouvidos do meio literário português, uma das razões para a considerar “vulgar”.
Se é certo que a autora atinge uma grande maturidade nestes poemas, e a presença do primeiro texto é, como se disse, um elemento que reforça esta ideia, a verdade é que se entende que houve alguns aspectos que claramente poderiam ter sido mais desenvolvidos. Provavelmente, a poesia de Wanda Ramos teria atingido um outro grau de qualidade ou de completude se tivesse sido continuada.
Enfim… pelo menos seguiram-se romances como “Litoral (Ara Solis)”…

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Poesia dos Anos 80

- Isabel de Sá
(1979- Esquizo Frenia, &etc)




-Fátima Maldonado
(1980- Cidades Indefesas- centelha)





-Luís Miguel Nava
(1979- Películas- moraes)



-Adília Lopes
(1985- Um Jogo Bastante Perigoso- edição da autora)




-Regina Guimarães
(1978- A Repetição- helastre)



-Rosa Alice Branco
(1981- A Mulher Amada- figuras)




-Helga Moreira
(1978- Cantos de Silêncio- edição da autora)


-Manuel Cintra
(1981- Do Lado de Dentro- ed. Presença)

Será No Próximo Século



O nosso amor arrasou cidades. Éramos
muito jovens e pensávamos assim.
O mundo pertencia-nos. Ninguém
percebia mas nós vivíamos contra
tudo - era um acto político.



Assim alguns seres no mundo
construíram vidas, amaram
e sofreram isolados, por vezes
espoliados, queimados na fogueira.


Mas o nosso amor resistirá
às fronteiras, aos muros de fogo
e à injustiça. Gostaríamos de viver
o tempo da verdadeira transformação,
da felicidade universal.





Isabel de Sá
Erosão de Sentimentos
1997- edições caminho
imagem: Isabel de Sá

A Urna no Deserto



Já não páras ao som das laranjeiras,
o silvo da paixão amorteceu,
o lacerar dos grifos
agita devagar a romãzeira,
horizonte vivaz anoiteceu.
Ardem sevícias nos pálios das comédias,
ruem gonzos nos pátios das contritas,
repúdios acontecem em vésperas de concílios,
impedem-se os quebrantos nas rotinas,
fere-se a uva no copo de cristal,
o bago não ateia contusões
nem cega a fruta o gume do cilício
e vibra o pulso ao impedir a dança.
Círios amortinados não acendem,
o leito não acolhe favoritas.
À sombra da cintura a magnólia
urge pavões,
cisma na voz ausente desespero,
range areia no triângulo da pata.
O trípode da morte encosta-se à coluna
e o vento não abriga, da roseira, a urna no deserto.



Fátima Maldonado
"A Urna no Deserto"
1989- edições frenesi (esgotado)




imagem: Graça Martins, "Ofélia"

O Corpo Espacejado



Perdia-se-lhe o corpo no deserto, que dentro dele aospoucos conquistava um espaço cada vez maior, novoscontornos, novas posições, e lhe envolvia os órgãos que,isolados nas areias, adquiriam uma reverberação particular.Ia-se de dia para dia espacejando. As várias partes de quesó por abstracção se chegava à noção de um todo come-çavam a afastar-se umas das outras, de forma que entreelas não tardou que espumejassem as marés e a própriavia-láctea principiasse a abrir caminho. A sua carne exer-cia aliás uma enigmática atracção sobre as estrelas, queem breve conseguiu assimilar, exibindo-as, aos olhos dequem o não soubesse, como luminosas cicatrizes cujobrilho, transmutado em sangue, lentamente se esvaía. Elemais não era, nessas ocasiões, do que um morrão, nascinzas do qual, quase imperceptível, se podia no entantodetectar ainda a palpitação das vísceras, que a mais pe-quena alteração na direcção do vento era capaz de pôr denovo a funcionar. Resolveu então plastificar-se. Principiou pelas extremidades, pelos dedos das mãos e pelos pés,mas passado pouco tempo eram já os pulmões, os intes-nos e o coração o que minuciosamente ele embrulhavaem celofane, contra o qual as ondas produziam um ruído aterrador. A noite A noite veio de dentro, começou a surgir do interior de cada um dos objectos e a envolvê-los no seu halo negro. Não tardou que as trevas irradiassem das nossas próprias entranhas, quase que assobiavam ao cruzar-nos os poros. Seriam umas duas ou três da tarde e nós sentíamo-las crescendo a toda a nossa volta. Qualquer que fosse a pers-pectiva, as trevas bifurcavam-na: daí a sensação de que, apesar de a noite também se desprender das coisas, havia nela algo de essencialmente humano, visceral. Como ins-tantes exteriores que procurassem integrar-se na trama do tempo, sucediam-se os relâmpagos: era a luz da tarde, num estertor, a emergir intermitentemente à superfície das coisas. Foi nessa altura que a visão se começou a fazer pelas raízes. As imagens eram sugadas a partir do que dentro de cada objecto ainda não se indiferenciara da luz e, após complicadíssimos processos, imprimiam-se nos olhos. Unidos aos relâmpagos, rompíamos então a custo a treva nasalada.




Luís Miguel Nava
O Céu Sobre As Entranhas
1984- edições limiar


imagem: Francis Bacon

Meteorológica



Deus não me deu
um namorado
deu-me
o martírio branco
de não o ter



Vi namorados
possíveis
foram bois
foram porcos
e eu palácios
e pérolas



Não me queres
nunca me quiseste
(porquê, meu Deus?)



A vida
é livro
e o livro
não é livre



Choro
chove
mas isto é
Verlaine



Ou:
um dia
tão bonito
e eu
não fornico





Adília Lopes
Florbela Espanca Espanca
1997- Black Sun editores




imagem: Paul Klee

Mutilações



Escreve agora a música
que os muros trauteiam
como eu dilapidei o meu tesouro.

Desenha agora a árvore
que rebentou por dentro.
Mostra agora o coração
com uma flecha no centro.

Vivi de brilho
e cuspi ouro pela boca.
Se ninguém me quis prender
foi porque não dei caça
não dei luta
nem falei em razão de força maior
nem sequer do futuro que me escuta.

Este livro custa a abrir
e aquela porta a fechar.
Desata agora a chorar
mesmo sem querer
mesmo sem sentir.
Chora por tudo
o que não está para vir.






Regina Guimarães
in Cem Poemas Portugueses no Feminino
edições Terramar




imagem: Alberto Péssimo

Retrato Puído nas Entranhas



Palmeiras inclinadas. Ao longe o casario.
É na água que o vejo, que sinto a cidade acordar.
Mais uma mulher que olha o rio. Tenho as mãos desatadas,
os pés a caminho. As margens alargam quando estou perto,
mas do outro lado as mulheres não reflectem
o rosto ou mesmo a sua ausência.
São matéria do verbo fazer e caminham junto ao chão,
na curva da noite para o marido. Gastos os sonhos por usar.
Descorado pano que ficou ao sol. Nelas a cidade não acorda,
não regressam os barcos à tardinha.
Vêm pela beira dos caminhos, a tristeza amável,
a raiva cega e às vezes um sorriso que sacode os ombros
porque até a tristeza tem um custo, uma esperança
na sola do sapato. Vejo-as todos os dias e é como se a vida
me atasse os pés, me anelasse os dedos. Como eu,
outras mulheres olhando o rio, desbordando o pano,
descozendo a sopa. Ama-se o homem que vira a esquina
connosco e sabe que não podemos fingir que a ferida
está fechada. As casas acendem.
E na água que vejo a sua luz descendo o rio.
As mulheres passam em silêncio para as casas,
atravessam a pele — deixam um retrato puído nas entranhas.
Olho o rio e não sei fingir que finjo tanto mar.





Rosa Alice Branco
Soletrar o Dia
2002- edições Quasi
imagem: José Rodrigues

()



Apenas do amor quero tão alto preço
do mais pouco ou quase nada peço
dias há em que o verso pede rima
como este a querer o que estima

e que não direi; pois que a vida
se se sente desordenada
ou em ardor que começa e finda
imprevisível em cada coisa e nada

ninguém assim o determina.
Apenas de quando em quando vestígios
por entre duas cidades, dois rios

um a norte, outro a sul que te imagina
ou balouça ou adormenta se o penso
querer dizer aqui o que não posso







Helga Moreira
Tumulto
2003- edições &etc


imagem: Armanda Passos

()



E dói-me esse rio de já me não amares
de já me não quereres assim como eu te quero
de não sobressaltares porque sou eu que te espero
em esquinas de lágrima ou sorriso
foi-se o amor chegou o siso
e eu
que não nasci para ter juízo

E dói-me o teu ventre que não afago
como quem depois de amanhã se afoga
e hoje apenas está, dê para o que der
e doa a quem doer

Passam sanguessugas pelos trilhos da memória
umas são mortas, outras são vivas,
outras são glória
de já não existir e teimar em persistir
e eu vou ao vento, sou palmeira seca,
sou teimoso sou frágil sou de teca de cetim
sou uns dias teu, outros assim assim

E dói-me o teu ventre que não afago
como quem depois de amanhã se afoga
e hoje apenas sente, e já pouco quer
para além de seres mulher

E sei que já não sinto o que senti nem sei quem sou
mas seja eu quem for fazes-me falta, ainda és música
perdi a pauta, nada sei cantar, acho que esta conversa
é coça umbigo, vai ter que parar

Mas dói-me o teu ventre que não afago
como quem não sabe nadar
e hoje é de festa, amanhã é de mar
é de mar






Manuel Cintra
Não Sei Nunca Por Onde
2004- edições Quasi
imagem: Mário Botas

domingo, 18 de outubro de 2009

Ídolos de Domingo

Noite alta de domingo, passei o dia todo a evitar fazer o programa do gordo (Comer e ver-televisão), primeiro porque não quero precisamente ficar gordo, segundo porque até a Fox Life está uma seca.
Mas pronto, é noite, nada que fazer… e na sic está a passar o Ídolos. Lembro-me das grandes gargalhadas que dei há alguns anos quando foi a primeira edição, precisamente aquela em que uma rapariga com reportório de show-girl insultou o Luís Jardim ou então a Luciana Abreu conseguiu chegar longe, num concurso de cantores, para mais tarde se tornar Floribella. Momentos destes certamente, não indo para o cancioneiro, pelo menos chegam ao imaginário de uma população como a nossa, em que o vazio é ainda um belo ócio.
Tudo bem. Vamos lá ver o que há por aqui. Para começar, apresentadores e juri alteram-se. Em vez o Pedro Granger e da Sílvia Alberto, estão a Cláudia Vieira e o João Manzarra. Ou seja, por mais que os apresentadores tenham mudado, o seu efeito em mim em nada mudou: ainda há um que me irrita consideravelmente (Cláudia Vieira sucede, portanto, a Pedro Granger.) e há outro que não deixa de me parecer um tanto mal aproveitado (De Sílvia Alberto passa para João Manzarra.).
O juri, idem-aspas. Não percebo bem qual é esta mania que a sic tem de arranjar para juri pessoas que não percebem nada de música. Na primeira edição tínhamos o Luís Jardim que já trabalhou, é bom lembrá-lo, com a Bjork, a Vanessa Mae, e por aí. Neste caso, temos um Luís Jardim português, que cabe a Philipe Laurent. Depois, temos três pessoas que pouco ou nada percebem de música: Manuel Moura dos Santos, manager, que transita da primeira edição para presidente do juri nesta, Roberta Medina, organizadora do Rock In Rio, ou seja, empresária e um outro gajo que parece que é director dos canais da sic, cujo nome me escapa, mas cuja presença é, sem dúvida, a mais irritante, porque afinal é quem menos está relacionado com música e é quem faz os comentários mais irritantes e pretensiosos.
Agora os concorrentes. Truncando Luiza Neto Jorge: “chorar ou rir? Um medo tal!”.
Bom, sinceramente, do que vi, achei assustador. Eu percebo que todos nós, e isso incluiu-me a mim, achamos engraçado cantar no banho, e que alguns, e isso excluiu-me mas inclui a Rachel de Friends, gostam de fingir que o gel de banho é uma Grammy para Melhor Artista Revelação. Mas daí até estar a grunhir ou guinchar ou ranger em frente a uma câmara que nos mostra ao país todo, parece-me que há uma considerável distância.
Há de tudo. Uns esquecem-se da letra, outros cantam de uma forma afectada, outros berram para mostrar boa ginástica de voz, outros dançam e murmuram qualquer coisa, outros grunhem e acham surpreendente que lhes digam que não é bom ou boa, outros cantam ópera e deixam cair o queixo quando lhes dizem que querem um ídolo pop, outros levam roupas atrevidas a ver se caem nas boas graças do juri, outros começam a chorar quando lhes dizem que não, outros choram quando lhes dizem que sim... Enfim. No meio disto tudo, lá apareceu um ou outro gato pingado que até cantava bem.
Última nota: a versão americana passava na Fox Life. Não é que os concorrentes fossem melhores, mas nada substitui aquelas brigas idiotas do Simon com a Paula Abdul. Também nada substitui aquela emotividade histérica da Paula Abdul. Nem as tendências espiritualistas da Kara DioGuardi.
Portanto, entre concorrentes malucos, juris que não percebem nada e ainda por cima não se chateiam uns com os outros e uma apresentadora desenxabida, deixo duas sugestões à sic:
A primeira prende-se com o lugar onde filmam as audições e as galas: há um lugar no Porto chamado Hospital do Conde de Ferreira. Não seria má ideia irem para lá.
A segunda tem a ver com o juri: mandem importar a Paula Abdul. Pode ser que alguém comece a pôr na ordem o gajo dos canais da sic.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

parabéns à sibila

Agustina Bessa-Luís faz hoje 87 incríveis anos.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Barcas Novas



En Lixboa, sobre lo mar
barcas novas mandei lavrar.

Joao Zorro


Lisboa tem suas barcas
agora lavradas de armas

Lisboa tem barcas novas
agora lavradas de homens

Barcas novas levam guerra
As armas não lavram terra

São de guerra as barcas novas
no mar deitadas com homens

Barcas novas são mandadas
sobre o mar com suas armas

Não lavram terra com elas
os homens que levam guerra

Nelas mandaram meter
os homens com sua guerra

Ao mar mandaram as barcas
novas lavradas de armas

Em Lisboa sobre o mar
armas novas são mandadas




FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO
Barcas Novas
1967- edições Ulisseia, colecção Poesia e Ensaio
fotografia: DANIEL BLAUFUKS

Muse: The Resistance

POLÍTICA LÍRICA





O percurso dos Muse, mais do que a maioria das bandas de rock alternativo, progressivo ou o que quer que seja, apresenta-se-nos dos mais interessantes. Mormente porque a cada álbum percebemos um crescimento muito equilibrado, ou seja: nenhum álbum seria possível sem o anterior, uma vez que se um lança as bases para alguma característica, o seguinte vem imediatamente levá-la ao seu expoente máximo.
E se "Origin Of Symmetry" parecia, e parece ainda, um álbum perfeito, foi estranho ver "Absolution" superá-lo, e depois "Black Holes and Revelations" superar o anterior.
"Black Holes and Revelations" era realmente o cúmulo de toda a tensão e "loucura" que os álbuns anteriores mostravam já deter, mas acrescentava-lhes ainda um ritmo inesperado, que parecia não ser alheio à boa musica pop, por exemplo em "Supermassive Black Hole" ou "Starlight".
A questão estranha, quando se termina um disco dos Muse é pensar que já está tudo feito, e será difícil acrescentar alguma coisa.
Aparentemente, Matt Bellamy é inesgotável e contraria sempre essa ideia, algo a que já começamos a habituar-nos.
Outro aspecto que me interessa focar, antes de passar a umas notas sobre "The Resistance", álbum acabadinho de lançar, é também a da situação dos Muse entre as outras bandas:
É difícil acopulá-los com alguém. Se muita gente os coloca num certo imediatismo aos Placebo, parece-me que nos Muse não existe aquela pulsão sexual e as reminiscências glam que encontramos no colectivo de Brian Molko.
Mas a comparação parece-me de longe menos indecorosa do que quando os comparam aos Green Day. Percebo as razões mas não as aprovo: se é um facto que as letras de Bellamy são contínuamente interventivas e profundamente políticas, a verdade é que as qualidades de escrita do vocalista estão anos-luz à frente da atitude poser-emo de Billie Joe Armstrong, uma vez que no primeiro encontramos a política ou consciência social associada a um lirismo fora de série (Com frases como "Love is our resistance", mas já lá vamos.), no segundo encontramos chavões que nos remetem para uma espécie de assemblage de textos de blogs ou colunas mais fáceis sobre política. Portanto, ao passo que no primeiro, a visão politizada é uma forma de comunicar ideias, no segundo, é uma forma de chamar a si determinadas características que percebemos logo não serem verdadeiras (Ou, por assim dizer: Billie Joe Armstrong não percebe nada de política.).
Por último, outra das comparações frequentes que surgem sobre os Muse é com Rufus Wainwright, e, estranhamente, mesmo não achando que é muito exacta, será talvez a opção mais confirmável: Wainwright é igualmente politizado, as suas composições recuperam muitas vezes sonoridades características do barroco, principalmente quando as canções são guiadas pelo piano, e a voz de ambos é um tanto andrógina.









Concrectamente, "The Resistance" é o sucessor de "Black Holes and Revelations" e é também herdeiro de HAARP, o cd-dvd ao vivo, que, podendo parecer que não, também tem aqui o seu peso. Àparte disto, o facto da banda surgir aqui no cargo da produção pela primeira vez é também premonitório. Já se sabe que, mais cedo ou mais tarde, por uma questão de liberdade, talvez, a maioria dos artistas e das bandas acaba por fazer isto. Tori Amos e Lou Rhodes são apenas dois exemplos.
O álbum abre com "Uprising", single de avanço, e uma espécie de assimilação daquilo que iremos ouvir a seguir. O som no pico da agressividade, a letra profundamente revolucionária, alguma electrónica a marcar o ponto, a voz de Bellamy a transmitir perfeitamente a tensão, e uma mensagem muito clara: THEY WILL NOT CONTROL US!!!
De facto, quem esperava que a contestação por parte de Matt Bellamy abrandasse agora que Bush finalmente largou a cadeira e esta foi ocupada por Barack Obama, estava definitivamente errado. Afinal, a América mudou apenas de presidente, mas os hábitos do povo perpetuam-se. Mas isso já todos nós sabemos.
Algumas canções seguem ainda uma via mais orquestral, caso de "United States Of Eurasia" ou "Undisclosed Desires", sendo que, ao contrário da tendência geral, estas canções não são necessariamente as ditas baladas. O primeiro exemplo citado é, em termos de letra, um dos mais analíticos e sociais de "The Resistance".

Outra característica notável é que o novo álbum parece aproximar-se de um conceito que tem sido abordado por outras bandas (Incluindo os Green Day.), de Ópera-Rock. É certo que os Muse sempre fizeram canções longas, mas não é esse o critério: muitas das canções surgem ligadas por sons, instrumentais ou não, que lhes sugerem alguma continuidade. Além disto, as últimas três faixas (Curiosamente estão as três entre as mais curtas.) formam um conjunto, "Exogenesis Symphony"- (Overture), (Cross-Pollination) e (Redemption), respectivamente. Ou seja, aqui temos uma estrutura que organiza a longa canção mais ou menos como uma peça ou um recital.
A aceitação ou inclusão da música erudita foi, aliás, sempre uma característica dos Muse.
E se, acima, referi as influências pop que se viam em algumas faixas de "Black Holes ans Revelations", é certo que elas existem ainda aqui, nomeadamente em "I Belong To You (Mon Coeur S´Ouvre A Ta Voix)", notando-se ainda uma amálgama de chanson e talvez de algum soft jazz. Mas uma amálgama boa.
A conclusão é, portanto simples. O milagre da criação foi feito de novo.
E se 2009 fica marcado pelo regresso aos discos de muitos nomes maiores da música, o dos Muse está já condenado a ser um dos melhores.

Ao longo deste tempo, fui deixando de escrever no final uns números de 0 a 20 que eram uma espécie de classificação, e quando tiver paciência vou aos posts antigos retirar esses números. Mas se tivesse que dar um número a "The Resistance" seria 21.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

agustina bessa luís por mísia

pedro homem de mello por amália

amália

dez anos depois, sem morte à vista





Hoje é o aniversário da morte de Amália, o que implica que invariavelmente se fale dela. Penso que é uma daquelas coisas que fazem parte de nós enquanto país, lembrar os grandes quando nos lembramos que eles já morreram.
Já por algumas vezes fui deixando aqui "marcas" da fadista, poemas, vídeos, e até um comentário duma prof de geometria que tive.

No entanto, se há dia em que, quanto mais não seja para não falhar à memória, se me impõe falar de Amália, esse dia é hoje.
Obviamente não vou desperdiçar palavras a falar sobre o falado, a dizer como Amália foi extraodrinária fadista, extraordinária mulher. Do meu ponto de vista pessoal, nada disso faz a cantora crescer e chegar onde chegou. Penso que a sua "eternização" se deve, acima de tudo, ao facto de Amália ser um estado de espírito. Daí que se não confunda nem tenha pares, nem possa ser reduzida musicalmente ao rótulo de fadista, cabendo-lhe, penso, com toda a justiça, o nome de Grande, que há já muito lhe deram.


Num artigo do JN de hoje, no entanto, há algo que tenho que reparar. Fala-se da nova estirpe de fadistas, onde incluem, e muito bem, os nomes de Ana Moura e Mariza.
Ainda assim, há um nome que não foi referido na geração anterior a esta: Mísia. Penso que, depois de Amália, Mísia é o mais incontornável nome do fado, pela qualidade da voz, do reportório e, acima de tudo, da originalidade. Mísia provou-nos que o fado é mais do que uma canção "nacional", de um cartão de visita deste país. Exactamente o mesmo que Amália fez há que anos atrás.
Também Mísia tem sido mal tratada, ignorada, injuriada e muito mais bem recebida no estrangeiro do que aqui. Exactamente o mesmo que a Amália aconteceu há que anos atrás.
Fica a sugestão.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Luís Filipe Rocha: Sinais de Fogo

A adaptação de um romance a cinema é, parece-me, sempre de grande dificuldade porque a película será sempre assombrada pelo fantasma do livro, pelo menos para aqueles que o leram.
O caso da adaptação de Luís Filipe Rocha do romance de Jorge de Sena parece-me mais arriscado ainda, por razões de duas naturezas distintas: por um lado, "Sinais de Fogo" foi e é um romance de tremendo impacto sobre os leitores tendo, estranhamente, ficado mais intrinsecamente ligado ao nome de Jorge de Sena do que a maioria da sua poesia; por outro lado, "Sinais de Fogo", mesmo inacabado, é um romance longo e extremamente complexo, consequentemente muito difícil de adaptar a cinema.


Luís Filipe Rocha, no entanto, não foi completamente mal sucedido neste filme.
Não se pode dizer que a adaptação seja irrepreensível: faltam momentos que, a meu ver, tornariam o enredo mais rico, pois mesmo havendo no romance muitos "episódios", seria necessário escolher apenas os essenciais para caber em 101 minutos, mas por essa mesma razão, o filme torna-se um tanto tenso e sem momentos de "descontracção" que, se não mais, pelo menos tornam o filme mais realista.
O papel de Jorge de Sena cabe a Diogo Infante, que efectivamente tem muitas pareceças físicas com Sena quando jovem. Os restantes papéis cabem a actores como Marcantónio Del Carlo, José Airosa ou Rogério Samora que conseguem boas prestações (Com excepção, talvez, da primeira cena na praia, quando estão na barraca a discutir o envolvimento do governo salazarista na Guerra Civil Espanhola.).






As personagens de Henrique Viana e Caroline Berg, os tios de Jorge de Sena, mudam completamente de personalidade relativamente ao romance.
Há, de resto, muitas cenas filmadas de noite, tirando um excelente proveito da luz, do fumo e das cores, e alguns planos utilizados para filmar certas conversas que reforçam o clima de "vigia" e controlo que se vive no tempo do filme.
Referência ainda para a música de Enrique X, realmente muito boa, perfeitamente capaz de reforçar o dramatismo das situações filmadas.

o café




Sentadas nas mesas do café
as pessoas olhavam sem ver bem
e nos olhos de cada uma iam passando a sério
os ódios pequeninos quotidianos
como um enterro de terceira classe lento
e grave
seguido por dois cães de luto
e um chapéu funerário sem cabeça





Yvette K. Centeno
Opus 1
1961, edições ática





imagem: Ângelo de Sousa

domingo, 4 de outubro de 2009

a muito óbvia cópia de um original que já de si não era grande coisa

Hoje na sic, estreava a série mais falada da actualidade. A mim, esta definição parece-me meia vazia. O Sócrates também é muito falado, o que não quer dizer que seja bom.
Concretamente, começa hoje Gossip Girl. A minha irmã adolescente convence-me por cansaço a assistir.
Cá estou. Não sei há quanto tempo isto começou, mas parece que foi há uma eternidade.
Também me parece que já vi isto em algum sítio, nomeadamente em "The O.C.".
Parece-me que GG é realmente uma cópia de OC, mas com uma narradora que anda a espalhar os "pequenos escândalos" pelos telemóveis de toda a gente.



De resto, temos a menina-rica ex-alcoolica que se deitou com o namorado da melhor amiga. A melhor amiga, outra menina rica, nunca lhe perdoou ter ido embora do colégio sem avisar, e certamente não lhe irá perdoar as intimidades com o namorado. O namorado é daqueles meninos de família falida que tem que sacar a cabeça de vento de bolsos carregados para salvar o pessoal lá de casa.
Temos também o menino não muito rico e a sua não muito rica irmã cujo pai, mesmo assim, consegue ter a estudar naquele colégio de filhos família. Ora o não tão rico menino está apaixonado pela retornada que nunca conheceu... esta foi original...
Algures aparece o primeiro persoagem que, mesmo típico, consegue ser menos enfadonho. Trata-se do bad boy que é mau para toda a gente, e capaz de infringir todo o tipo de sacanices até aos amigos próximos. Realmente típico, but never gets old.
Entretanto, depois de uma cena de pancadaria pressinto que se acaba de se dar o climax e portanto, o fim deve estar a aproximar-se.
É uma seca, concluo sem surpresa. Realmente, o tema das cabeças-de-vento nos seus high-school dramas, as suas crises de meninos ricos. Ainda há quem veja, o que de qualquer maneira sempre mostra que o vazio ainda tem onde cair.