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segunda-feira, 15 de julho de 2013

3 poemas ''belgas'' de Jorge de Sena

















BRUGES

Dórmia cindria canalívia
befróidica de Memling e Filipe
e de Isabel de Portugal e Carlos
o Temerário Flandres e Borgonha
e o Santo Sangue e das beguinas Lago
do Amor e Till Eulenspiegel.
Sonam noctâmbulos de sinos passos
em dórmia cindria canalívia morta.


Exorcismos
1972, ed. Moraes


















ANTUÉRPIA

Na catedral o Cristo faleceu atlético
e tomba de ouro em Rubens por sempre.

Na casa dele patrício, Sir, Grande de Espanha,
a magna oficina tem balcão e tudo

para o grande espectáculo dos heróis e deuses
e as deusas adiposas rubicunda esposa.

Plantinos imprimiram e um soneto
diz aurea de Cristóvão mediocritas

le bonheur de ce monde: avoir une maison...


















ANDERLECHT

Nesta casa de um cónego hóspede peregrino
Erasmo esteve pouco tempo. Mas
não por reconstituída à sua imagem
a imagem se conserva tristemente irónica
do que opôs a loucura e o cavaleiro
cristão além de igrejas e deveres
de crenças pulhas como os homens nelas.
Morreu suspeito a todos. Não aqui.
Os lábios apertados, pega a pena
e mira dos retratos o seu Deus só alma.

Conheço o Sal... e Outros Poemas
1974, ed. Moraes

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Sobre a Nudez


Quoi! Tout nu! dira-t-on, n'avait-il pas de honte?
...................................................................
Tout est nu sur la terre, hormis l'hypocrisie.

MUSSET, Namouna




Nus nascemos, nus
nos inspecciona o médico,
a tropa, o professor de ginástica.


Nus, na mesa de operações,
na cama de hospital,
no dia da morte.


Nus no amor para nos vermos,
sentirmos a pele dos outros corpos e
para mais que penetrarmos


termos o choque e o roçar
que nos dizem do quanto penetramos.
Nus sempre, menos no que não importa.


Porque há então quem tema tanto
a nudez dos outros? Será
que teme, menos que o feio


de muitos, a beleza de
alguns, ou o fascínio das
esplêndidas partes


de uns raros? E que, paralisados
(de inveja), deixemos que o mundo e a vida
se soltem à deriva


para a nua liberdade?


1968-69

Jorge de Sena
Peregrinatio ad Loca Infecta
1969, ed. Portugália
pintura de Michael Leonard 

sábado, 25 de dezembro de 2010

Sobre o Natal


Neste comércio festivo que há dois mil anos quase
perdura mal cobrindo remendadamente
o solstício do Inverno e os deuses sempre vivos
de cuja falsa morte o mundo paga em crimes,
como em vileza humana, o medo que escolheu
quando ao claror da aurora rósea e livre
de viver como os deuses e com eles
preferiu a lei e a ordem projectadas
na sombra em sombras da caverna obscura
e desejou o mal em preço de ser-se homem —
tudo o que em milhares de anos é tribal
congrega-se feliz num doce rebolar-se
da traição de que fomos contra a vida.
Tão vil que levou séculos a inventar
um deus assassinado para desculpá-la,
e fez dele o comércio das famílias
que cortam no peru as raivas de existirem,
beijando-se visguentas, comovidas,
tal como têm babado os pés dos deuses,
ah não eles mesmos mas imagens vãs
que não resplendam da grandeza humana.
Alguma vez teremos o dinheiro
para comprar de novo o Paraíso,
em vez de prendas para o sapatinho?
O Paraíso aqui — aquele que venderam
no começar do mundo. E que nos trocam
por outros no futuro ou nos aléns,
agora, aqui, aberto a todos, claro
- um sol sem fim nos bosques ou nas praias,
uma nudez sem morte nos corpos sem alma.
Talvez que o só vejamos por um instante
naquele espaço-tempo entre morrer
e o ficar morto para os antropófagos
dos deuses e dos homens, hóstia ou ossos.
Entretanto, senhoras e senhores, as Boas Festas.


Jorge de Sena
Peregrinatio ad Loca Infecta
1973, ed. Portugália
pintura de Vincent Van Gogh

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Luís Filipe Rocha: Sinais de Fogo

A adaptação de um romance a cinema é, parece-me, sempre de grande dificuldade porque a película será sempre assombrada pelo fantasma do livro, pelo menos para aqueles que o leram.
O caso da adaptação de Luís Filipe Rocha do romance de Jorge de Sena parece-me mais arriscado ainda, por razões de duas naturezas distintas: por um lado, "Sinais de Fogo" foi e é um romance de tremendo impacto sobre os leitores tendo, estranhamente, ficado mais intrinsecamente ligado ao nome de Jorge de Sena do que a maioria da sua poesia; por outro lado, "Sinais de Fogo", mesmo inacabado, é um romance longo e extremamente complexo, consequentemente muito difícil de adaptar a cinema.


Luís Filipe Rocha, no entanto, não foi completamente mal sucedido neste filme.
Não se pode dizer que a adaptação seja irrepreensível: faltam momentos que, a meu ver, tornariam o enredo mais rico, pois mesmo havendo no romance muitos "episódios", seria necessário escolher apenas os essenciais para caber em 101 minutos, mas por essa mesma razão, o filme torna-se um tanto tenso e sem momentos de "descontracção" que, se não mais, pelo menos tornam o filme mais realista.
O papel de Jorge de Sena cabe a Diogo Infante, que efectivamente tem muitas pareceças físicas com Sena quando jovem. Os restantes papéis cabem a actores como Marcantónio Del Carlo, José Airosa ou Rogério Samora que conseguem boas prestações (Com excepção, talvez, da primeira cena na praia, quando estão na barraca a discutir o envolvimento do governo salazarista na Guerra Civil Espanhola.).






As personagens de Henrique Viana e Caroline Berg, os tios de Jorge de Sena, mudam completamente de personalidade relativamente ao romance.
Há, de resto, muitas cenas filmadas de noite, tirando um excelente proveito da luz, do fumo e das cores, e alguns planos utilizados para filmar certas conversas que reforçam o clima de "vigia" e controlo que se vive no tempo do filme.
Referência ainda para a música de Enrique X, realmente muito boa, perfeitamente capaz de reforçar o dramatismo das situações filmadas.

sábado, 22 de agosto de 2009

descubro hoje por acaso

que não só o corpo de Jorge de Sena vai ser transladado de Santa Bárbara, onde o escritor morreu em 1978, para o Cemitério dos Prazeres



como ainda que a Guimarães vai reeditar a sua obra completa, a começar pelo romance, "Sinais de Fogo". Bem... não é a editora de sonho, neste momento... já estou a imaginar os livros de capa dura... mas pronto, não deixa de ser Jorge de Sena.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

fragmento

Sinais de fogo, os homens se despedem,
exaustos e tranquilos destas cinzas frias
lançando ao mar os barcos de outra vida


Jorge de Sena
do romance "Sinais de Fogo"
1978 (póstumo), edições 70

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Post-Metamorfose: Variação Primeira




Ao sol ardente, ao mar azul, ao vento que
lhes faz vibrar a pele, os deuses dão-se
numa nudez total de agreste juventude
que impúdica se exibe e se deseja,
se acaso olhos humanos os espiam.

Promíscuos tombam num tropel de corpos,
de pernas, braços, bocas e cabelos,
ancas e mãos, de línguas e gemidos,
uivos de espasmo, seios e tremuras,
e sexo é tudo o que se entrega e tudo
o que num ritmo seguro arranca
sacões em que se ajusta mais ao fundo
e túrgido se escoa e recomeça.
Torcem-se os corpos, arfam e agitam-se,
soerguem-se e arqueiam-se e descaem,
e pouco a pouco vão ficando plácidos
e como que dormindo na difusa,
anónima e divina confusão final.

De súbito, levantam-se altíssimos
ao pé dos corpos que ainda jazem trémulos.
Mais outros se levantam, se recortam
na luz que irisa a negridão dos sexos.
As gargalhadas tinem pela praia clara
num cascalhar sereno da ressaca
lambendo a areia que, trazida, fica
como suspensa no limiar do vento.

Ao mar acorrem que espadanam breves,
enquanto um só dos deuses se demora
à beira de água e se espreguiça erguendo
ao alto os braços num curvar das ancas
sobre as retesas pernas que espraiada
a espuma molha pelos tornozelos.
Num grito atira-se e mergulha e segue
os outros que são pontos na distância,
ou sombras só de pequeninas vagas
quebrando-se, e ao longe, contra a luz.

Silvos ligeiros, lépidos, irónicos
alisam pela praia o que ficou dos corpos-
areia remexida, vagos moldes
de ancas e torsos, calcanhares e nucas,
e até gotas dispersas de vertido amor.

Promíscuo o amor dos deuses, se os espiam
olhares humanos, sequiosos, turvos,
e dissipado, violento, abrupto.

Apenas o tinir das gargalhadas
subsiste ainda, e na memória o vulto
do deus que se espreguiça à beira de água.


Jorge de Sena
Metamorfoses
1963, moraes editores
imagem: Paul Gauguin

domingo, 9 de agosto de 2009

as mãos dadas



Um dia me falaste,
e as árvores morriam galho a galho seco.
Havia flores, recordo.
Havia ruas, ai também recordo.
E escadas
vazias.

Não me falaste, não. Fui eu quem perguntou,
beijando-te tremente, quantos anos tinhas,
e o teu nome.

Não tinhas nomes; ou tinhas, mas não teu.
E a tua idade, as tuas mãos nas minhas.


Jorge de Sena
Fidelidade
1958, moraes editora

imagem: Barbara Walraven