quinta-feira, 25 de outubro de 2012

L'Orage Rompu de Jacqueline Harpman

O JOGO DE NÓS MESMOS
Já aqui, a propósito de Amélie Nothomb falei sobre a ausência de fluidez cultural da Europa. Depois de uma investigação mais ou menos detalhada, posso dizer que não existe nenhuma tradução para português da autora, também belga, Jacqueline Harpman. Isto, apesar de Harpman, que aliás faleceu em Maio deste ano, ser uma autora bastante apreciada na Bélgica e em França, tendo inclusivamente sido laureada em 1996 pelo Prix Médicis, pelo romance 'Orlanda'.
Esta nota de leitura, no entanto, será sobre o livro seguinte, editado em 1999, 'L'Orage Rompu', romance em que a formação de Jacqueline Harpman, psicanalista de profissão, é bastante notória.
'L'Orage Rompu' fala-nos do encontro entre dois desconhecidos, a bordo do TEE entre Paris e Bruxelas. Cornélie havia-se deslocado à capital francesa para o funeral do seu ex-marido, Gustave, onde reencontra os dois filhos. Henri é um homem de negócios, que se senta perto de Cornélie, que ela imagina como sendo o mais comum dos mortais. A conversa entre os dois começa quase por acaso. Eventualmente, juntam-se à mesma mesa, a conversa passa do tom circunstancial para um tom íntimo. Em pouco tempo, Cornélie e Henri entram num jogo verbal que parte e chega às suas infâncias, às suas origens e às suas referências. O jogo, realmente, parte e chega a essas questões, mas entre partida e chegada, passa por zonas psicológicas em que a especulação ganha vantagem relativamente à verdade dos factos.
Cornélie, a narradora da história, ocupa o lugar central da trama. O texto em si oscila entre os diálogos dos dois e as memórias que ocorrem a Cornélie. Através destas duas 'formas', podemos perceber a reinvenção que Cornélie faz de si mesma, podendo também partir do princípio que o mesmo acontecerá com Henri.
Na vida de Cornélie, parece haver uma espécie de linhagem de três mulheres de importância crucial: a sua avó, a sua mãe e a sua filha. É através da comparação com estas mulheres que Cornélie se define, uma vez que, logo no início do texto, se define como uma mulher indecisa, dividida e anti-confrontacional. Mas Harpman consegue evitar com bastante eficácia os caminhos mais óbvios e mais básicos da análise psicológica. Se entendemos, por um lado, a tendência da autora para inserir a sua personagem num sistema de correlações familiares e amorosas, por outro também conseguimos ler o texto sem que isso se sobreponha à lógica ou à veracidade que, notoriamente, Harpman procura. Isto é tanto mais importante num romance como 'L'Orage Rompu', que vive da complexidade dos seus personagens, e não da complexidade do seu enredo.
Cornélie conta e reinventa o seu passado sempre através das pessoas que a rodeavam. Fala do pai, falecido precocemente, cuja profissão como gestor de empresas em via de falência, fez com que a família se mudasse frequentemente durante a infância da filha, entre a Holanda, Inglaterra e várias cidades belgas. Só após a morte do pai Cornélie passou a ter residência fixa, em Bruxelas, pnde passa a viver com a mãe e a avó. Uma e outra são figuras fortes. A mãe retoma os clientes do falecido marido e a avó leva a sua vida com uma espécie de leviandade séria, preocupada em ser resoluta face aos sofrimentos. Em plenos anos 60, Cornélie econtra-se a viver na grande cidade, atravessa as reformulações sociais, o feminismo, as revoluções sexuais, enfim, a conquista de uma certa forma de liberdade, no que diz respeito à sexualidade, aos comportamentos, ao trabalho, etc. As colegas de escola de Cornélie, cujos comportamentos são ora conservadores ora modernos, fazem-na descobrir a sua própria psicologia, e, consequentemente, o seu próprio desencaixe, com o qual acaba por ter dificuldades em lidar, durante muito tempo, e que diz essencialmente respeito à descoberta passional.
«Et l'amour, grande-mère? Faut-il aimer?» Elle m'a répondu: «Eh bien, moi, je me suis mariée, alors, je ne sais pas.»
(p.101)
apesar de 'L'Orage Rompu' ser, no geral, uma história de pendor triste, protege-se de excessos porque Harpman domina com relativa facildade uma série de processos de ironia, que reforçam a tendência especulativa que, no fundo, está sempre implicada no (re)contar duma história íntima, como o próprio Henri acabará por constatar:
Nous jouons tous un jeu. On crée un personnage, on le prend pour soi et on s'y enferme. Tout à l'heure, quand vous m'avez parlé de mon complet trois-pièces, j'ai sursauté intérieurement mais bien entendu vous n'en avez rien vu car je suis un homme d'affaires, je négocie, donc je dissimule, c'est comme le poker, on ne doit pas se révéler avant le moment utile.
(p.183)
no fundo, toda a conversa, que faz entrever uma espécie de ligação amorosa subliminar, passa por esse jogo entre o que se esconde e o que se revela, uma espécie de jogo de nós mesmos. Isto porque, como percebemos com a leitura de 'L'Orage Rompu', a própria manipulação dos factos, o eterno jogo interpretativo, não nos afastam da verdade. Porque a interpretação dos factos, sendo pessoal, acaba sendo também autobiográfica. E, por assim dizer, o que gostaríamos de ser, ou o que gostaríamos de ter sido, diz de nós tanto ou mais do que o que somos ou o que desejaríamos ter sido. E, assim, a infidelidade aos factos pode ser uma fidelidade à verdade.
Vous revêz. Tout ceci est un rêve qui se passe entre deux réalités. Nous ne sommes nulle part, nous ne savons pas par où nous passons, nous traversons une campagne toute noire, ce moment ne compte pas, c'est un leurre. Je n'existe pas. Ce que vous coyez que je suis n'existe pas, c'est une effect du hasard, une illusion d'optique qui disparaît quand on bouge la tête.
(p.191)
diz Cornélie, quando o comboio está próximo de Bruxelas. No fundo, toda a viagem, entre duas cidades, através de uma massa negra, parece uma espécie de regresso a essa infância em que a sua família se mudava constantemente, enquanto tudo ainda estava por definir, ou se redefinia constantemente. Assim, enquanto o encontro está prestes a terminar, Cornélie diz que não existe, e que tudo aquilo que deu a Henri não existe, não é verdadeiro. No entanto, apesar de ter suspendido o encontro com Henri por achar que o nascer da paixão (O romper da tempestade que dá título ao livro.) a afastara da verdade e a levara a criar uma melhor versão de si mesma, encontramo-la, no epílogo, dez anos depois recordando esse encontro.
E se, por um lado, o desenlace de 'L'Orage Rompu' nos pode parecer um tanto derrotista, é também verdade que o romance nos deixa uma noção muito clara: que a duração de uma paixão não é o que define a sua intensidade, mas sim a verdade que foi tocada nessa paixão. E assim, um encontro de duas horas, entre duas pessoas, pode ser o mais intenso de uma vida.

domingo, 21 de outubro de 2012

Anathema no Paradise Garage (20.10.12)

Nem sempre acontece que uma banda consiga ter um percurso em que a quantidade de trabalhos conhece uma regularidade na qualidade. Em vinte e dois anos os Anathema produziram duas minicassetes, quatro EPs, nove álbuns e dois álbuns de revisitação própria, enquanto várias vezes alteraram a sua constituição e se atravessaram do doom/death-metal para o rock progressivo, progressivamente. Conquistaram um lugar de culto, tendo alguns dos seus álbuns sido aclamados como sendo dos melhores deste último género.
Quando pensamos que tudo isto é feito por uma banda que, mesmo agora, é uma espécie de banda de família (Os irmãos Cavanagh e os irmãos Douglas.) que, de certa forma, vive a dinâmica de garagem eternamente, é difícil não ficarmos impressionados. A grande solução é, ainda e sempre, a música. Os Anathema são uma feliz rara junção de vários cérebros criativos, que têm sabido, da melhor forma, fazer e crescer daquilo que fazem. Em 'We're Here Because We're Here' (De que falei aqui.) álbum lançado em 2010, ficava claro que a atmosfera depressiva estava, talvez, a desaparecer, dando lugar a ambiências mais luminosas, que mesmo assim não deixavam de ser pesadas. O pesado, aqui, significa profundo. É essa a principal característica da música dos Anathema: parece sondar aquilo que de mais íntimo e verdadeiro trazemos em nós, falam directamente ao âmago dos sentimentos, dos conflitos, das esperanças e dos pensamentos. Nunca foram lamechas, mas foram sempre emotivos.
A passagem, em 2011, pelo Vagos Open Air (Falei dela aqui.) só poderia ter corrido melhor se não tivessem acontecido os desastres técnicos que aconteceram. Em vésperas do lançamento de 'Falling Deeper' (Também dele se falou aqui.) que revisitaria a fase inicial da banda, os Anathema traziam na bagagem 'We're Here Because We're Here', bem como uma série de clássicos, que puderam ser apreciados, ainda assim, independentemente das constantes falhas de som. No entanto, dois álbuns volvidos, incluindo um de originais, o mais recente 'Weather Systems' (Estava-se mesmo a ver que falei dele. Aqui.), os fãs portugueses estavam mesmo em necessidade de um concerto dos Anathema. O facto deste decorrer numa sala fechada e intimista como a do Paradise Garage só podia ser uma boa notícia, uma vez que reuniria a banda de uma forma mais próxima com o público e, bem vistas as coisas, também prometia um maior controlo sobre os aspectos técnicos, completamente diferente do que contece num festival.
A primeira parte do concerto ficou entregue aos californianos Astra. Sinceramente, tenho uma relação estranha com primeiras partes de concertos. É verdade que bandas de que gosto já as fizeram, usando-as como forma de divulgar o seu material, mas o facto é que, na maior parte das vezes, a primeira parte é uma parte que ninguém está completamente interessado em ouvir. Os Black Box Revelation começaram por fazer primeiras partes dos dEUS, e no entanto são uma banda perfeitamente apetecível, mas até conquistarem o direito a concerto próprio, é difícil pensar que tenham sido realmente ouvidos. Os próprios Anathema por aí começaram. Mas, pormenores destes àparte, os Astra apresentaram, ao longo de meia hora um interessante conjunto de canções, em que a sonoridade rock se deixava tocar pelo metal e pelo folk, que deixam certamente a vontade de ouvir mais, particularmente Black Chord.


 
Os Anathema entraram em palco com as duas partes de Untouchable, do álbum mais recente. Numa versão um pouco mais eléctrica do que a de estúdio, a canção brilhou nas suas duas partes, especialmente pela harmonia perfeita entre as vozes de Vincent Cavanagh e de Lee Douglas, que ganha mais destaque na segunda parte da canção. Mas perceber-se-ia logo que seguinda que nem só 'Weather Systems' estava directamente sob o microscópio. De uma assentade, os Anathema tocaram Thin Air, Dreaming Light e Everything, alguns dos pratos-fortes mais luminosos do álbum anterior, que mantiveram a abertura do concerto do lado mais positivo da música dos Anathema, sendo esta última uma boa oportunidade para destacar o trabalho de Daniel Cardoso nos teclados.
Logo a seguir, deu-se uma inversão de atmosfera, com o regresso a 'Judgement', o álbum de 1999, de que se rebuscou, para começar, Deep, uma das canções mais tristes mas mais libertadoras da discografia dos Anathema, e uma das melhores letras de Vincent Cavanagh. Ainda do mesmo álbum, ouviram-se a seguir Emotional Winter e Wings of God, momentos mais calmos, mas bastante mais tristes, que soarem muitíssimo bem antes do regresso a 'We're Here Because We're Here' com A Simple Mistake, onde, além de uma vez mais podermos apreciar a junção das vozes de Vincent e Douglas, contámos com o brilhante solo de guitarra eléctrica de Daniel Cavanagh que termina a canção.
Lee Douglas brilharia ainda, sozinha, a seguir, com Lightning Song, do álbum mais recente, uma canção bela e pesada que o público soube acompanhar devidamente. Esta canção veio confirmar aquilo que já desde há vários anos se pressentia: que Lee Douglas é, de facto, uma mais-valia para os Anathema. Lee haveria de estar presente para The Storm Before the Calm, também do álbum mais recente, uma longa odisseia escrita por John Douglas, o baterista, que dum começo violento chega a momentos de uma beleza contemplativa que em muito representam aquilo que os Anathema estão a fazer agora. Seguiu-se um dos melhores momentos de 'Weather Systems', bem como um dos melhores momentos dos Anathema, The Beginning and The End, uma das canções mais emotivas e mais explosivas de todo o álbum, que resultou muitíssimo bem ao vivo.
Outro regresso a 2010 deu-se com Universal, uma das canções mais orquestrais, mas que não perdeu a sua força na transposição para o palco, bem pelo contrário.
Para o final, os Anathema reservaram três clássicos do álbum de 2003, 'A Natural Disaster': Closer, onde uma vez mais se notou o papel de Daniel Cardoso, A Natural Disaster, outro grande momento de Lee Douglas, e Flying, que termina com mais um esplendoroso solo de guitarra eléctrica de Daniel Cavanagh.

Para os encores, ficaram reservados One Last Goodbye, momento emocional por excelência (Recorde-se que se trata de uma despedida à mãe dos irmãos Cavanagh.) que, efectivamente comoveu e, claro, o clássico Fragile Dreams do álbum 'Alternative 4', que foi um final muito à altura de um concerto realmente perfeito.
Em duas horas, os Anathema conseguiram tocar algumas das suas melhores canções. A violência, a emotividade e a profunda beleza das canções falou por si, e se a sala do Paradise Garage era quase pequena demais para o público, para conter a força da música dos Anathema, não parece haver sala grande o suficiente.
 

Untouchable part1/ Untouchable part2/ Thin Air


Dreaming Light


Everything/ Deep

Emotional Winter/ Wings of God

A Simple Mistake/ Lightning Song


The Storm Before the Calm (fragmento1)
The Storm Before the Calm (fragmento2)


The Beginning and the End/ Universal/ Closer
´

A Natural Disaster

Flying

One Last Goodbye

Fragile Dreams

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Manuel António Pina

(1943-2012)

O seu primeiro poema começava assim
 
Os tempos não vão bons para nós, os mortos.
 
isto, em 1974. Em 2012 não estamos, os vivos, muito melhores. Manuel António Pina escreveu sobre isso, tanto na sua poesia, como nas suas crónicas. O seu olhar, arguto, melancólico, lúcido e até saudoso deixa-nos algumas páginas (Poéticas e não só.) que muito terão a dizer sobre estes tempos, que não estão bons para nós, estejamos mortos ou vivos, páginas que inclusivamente lhe mereceram, no ano passado, o Prémio Camões.
Hoje, Manuel António Pina junta-se a esses de quem falava no seu primeiro poema. A obra fica-nos e, esperar-se-ia, talvez nos ajude a melhorar os tempos.




segunda-feira, 15 de outubro de 2012

A Mãe de um Rio


Em 1981, a Contexto editora publicava, com fotografias de Jorge Molder, um conto de Agustina Bessa-Luís, cujo sugestivo título era 'A Mãe de um Rio'. Três anos depois, reeditar-se-ia o segundo volume de contos de Agustina, 'A Brusca' (1971), numa versão aumentada, que contaria com 'A Mãe de um Rio'. Este conto, escrito de certa forma sob uma certa influência da literatura fantástica, fala-nos de uma mulher de vocação algo ancestral, de contornos religiosos, que vive desde o princípio do mundo numa pequena casa junto a um rio. Essa figura algo divina será visitada por Fisalina, uma rapariga invulgar da comunidade mais próxima do rio, que acabará por suceder à mãe original.
Agustina escreveu muito menos contos do que romances, mas os contos que escreve são de uma suprema força, comparável de certeza à dos romances. 'A Mãe de um Rio' é um exemplo de como, em poucas páginas, Agustina consegue criar uma história densa, que arrasta consigo uma subtil carga política, social e religiosa, cuja lucidez e invulgaridade se farão sentir ainda no leitor de hoje.
Aliás, como praticamente tudo aquilo que Agustina tem vindo a escrever desde 'Mundo Fechado', a novela com que se estreou em 1948. Apesar de obras como 'A Sibila' (1954), 'A Muralha' (1957), 'O Concerto dos Flamengos' (1994) ou a trilogia 'O Princípio da Incerteza' (2001-2003), Agustina foi sempre, como ela mesma dizia, mais conhecida do que lida, o que não se perdoa. A sua obra, intensa, árdua, irónica, é uma eterna tragicomédia cujo centro é o mais óbvio e também o mais difícil: o ser humano. E por isso a obra de Agustina, profundamente portuguesa, torna-se universal: porque universal é o génio que a move.
Já no seu último romance, 'A Ronda da Noite' (2006), Agustina fala-nos dum mutante, um estranho homem cuja inteligência aparta do resto da humanidade. Esse homem, contemplando uma reprodução da pintura de Rembrandt vai descobrindo, definindo e redifinindo o mundo, entretido na tentativa de compreender a eternidade, ou aquilo que, no mundo, se pode chamar eterno _maravilhado nessa tentativa que engloba por vezes o erro, mais do que obcecado por encontrar respostas certas, atitude própria de quem se recusa a estar numa situação de inferioridade perante a vida, e portanto não se leva muito a sério. Melhor retrato de Agustina dificilmente se faria.
Dessa contemplação, não de Rembrandt, mas do mundo, nasce a obra, que corre em direcção a um lugar mais vasto, mas sem se preocupar excessivamente em acelerar a chegada ao seu destino, como um rio. E portanto, hoje que Agustina completa 90 anos, que me seja permitido usar o título desse conto, e chamar à escritora a mãe de um rio, um rio que é a obra, que, creio eu, perfeitamente poderá correr enquanto durar o mundo.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

29 de Dezembro, Matosinhos [1998]

 
Duas? Três horas da madrugada?
A chuva tinha começado, tocada a vento. Depois, torrencial, acordara-a. Da janela, podia vê-la empoçar-se, junto dos passeios. Na paragem, o painel do reclame e o seu reflexo, vertical, tornava ilusória a profundidade do charco, como se tivesse a altura de um homem, mas que a luz dos faróis e os carros cortavam facilmente. Aquela ilusão impunha-lhe a terra, fofa, do cemitério. O que restaria dela? A linha tão pura, do nariz e das sobrancelhas? Na sua campa, nem o caixão lhe seria abrigo. A água estava a torná-la uma Ofélia de lama, os cabelos, que lhe enquadravam o rosto, como se estivesse apenas adormecido e não rígido e morto, teriam, agora, o visco de cobras.
Ouço a chuva a ensopar a terra e pesa-me no coração.
 
Luísa Dacosta
Um Olhar Naufragado (Diário II)
2008, ed. Asa
desenho de Tiago Manuel


Mumford and Sons: Babel

O TEMPO DA OUTRA SENHORA
Chegamos a um ponto, mais ou menos em todas as áreas cultuais, onde não é conveniente ser-se claramente seja o que for. O híbrido conhece agora a sua idade do ouro, e isto trouxe-nos resultados bons quanto os trouxe maus também. Ou muito maus mesmo.
Depois de três EPs, os Mumford and Sons lançaram o seu primeiro álbum, 'Sigh No More' em 2009, em plena era do híbrido. E o seu som era híbrido. Num registo nitidamente rock intrometiam-se muitas sonoridades country e folk, cujo resultado não era, definitivamente, aquele que seria de esperar. Outros tentaram juntar precisamente as mesmas coisas. E se os resultados conseguidos por uma Lou Rhodes, uma Joanna Newsom, um Patrick Wolf ou uns Bon Iver nos mostram que a junção não é impossível, outros nomes como os Fun. ou os Kings of Leon deixam um tanto a desejar.
'Babel', lançado há alguns dias, se por um lado confirma que o berço dos Mumford and Sons está mais no folk do que em qualquer outro género, por outro pode bem explicar-nos por que eles conseguem fazer bom álbum através das fusões que operam, enquanto outros não conseguem. Porque, efectivamente, a música dos Mumford and Sons é antiquada, verdadeiramente antiquada. Logo à primeira faixa, Babel, percebemos que não há aqui uma tentativa de modernizar género algum e que, se algumas contaminações se sentem, elas se prendem essencialmente com uma procura da pessoalidade, mais que com a vontade de demarcação.
De facto, esse sabor um tanto antiquado, que nos faria pensar no tempo da outra senhora, digamos; acaba por ser o ponto forte deste álbum e os Mumford and Sons parecem aqui, mais do que em 'Sigh no More', convictos em assumir essa tendência.
'Babel' acaba por, em muitos dos seus momentos, parecer natural, intenso, apaixonado e triste, sem no entanto resvalar para o depressivo. É um álbum feito essencialmente de baladas, algumas delas, como I Will Wait ou Lover of the Light soam realmente como declarações de amor perfeitamente assumidas, em que o que se perde em lamechice é ganho em energia.
O esquema das canções, um pouco como acontecia no álbum anterior, é irregular, pelo que na maioria dos casos, há sempre algo de surpreendente. Por exemplo em Lover's Eyes, de uma tonalidade perfeitamente melancólica, que aliás a letra em muito reforça, começam a surgir ritmos e o som da harmónica, que acabam por conferir à canção um final feliz. Ou feliz, dentro do possível.
As letras são outro dos aspectos que interessa referir a propósito dos Mumford and Sons. Marcus Mumford escreve de uma forma um tanto descarnada, com uma total ausência de subterfúgios, que só não se torna excessivamente reveladora por causa do domínio que o vocalista tem das técnicas líricas mais eficazes. Se no álbum anterior encontrávamos letras desarmantes como a de I Gave You All, aqui não menos as encontramos. Além das letras mais dramáticas, como a de Lover's Eyes ou a de Ghosts that we Knew, em que é a facilidade que Mumford encontra em a um tempo rimar e fazer sentido que ressalta, noutras como Remindless ou Hopeless Wanderer ou Borken Crown Mumford acaba por demonstrar também um certo conhecimento das letras do rock clássico americano, e nomes como Bob Dylan, Burce Springsteen e, estranhamente, Eric Clapton, de alguma forma parecem, fantasmáticamente, ter passado pela sua escrita. De uma forma ou de outra, independentemente de se gostar da música dos Mumford and Sons, eu diria que as letras de Marcus Mumford são, por si só, uma boa razão para os ouvir.
Evidentemente, não se esgota aqui. 'Babel' parece ter nas suas primeiras canções uma espécie de abertura mais inofensiva, mas, mais ou menos a partir da quinta faixa, começamos a encontrar canções cuja atmosfera, sendo mais negra, encontra outra coesão. Como disse acima, no entanto, não se trata de um álbum depressivo: aliás, essa palavra não lhe serve. Pelo contrário, os Mumford and Sons são bizarramente capazes de, na treva, encontrar uma energia profunda e, quando ouvimos bem canções como Broken Crown, Below My Feet ou Not With Waste, percebemos que estas canções vibram e, verdadeiramente, fulguram, mesmo dentro da sua atmosfera de desistência e de quase-queixa. E esta capacidade de ser feliz no escuro é, realmente, a área mais favorável a esta banda.
Aspecto que ainda interessa referir é o da voz. Marcus Mumford está longe de ter aquilo que se pudesse chamar uma voz poderosa. Pelo contrário, é uma voz grave e não muito flexível. No entanto, a sua expressividade impressiona e, em vários casos, acaba por ser precisamente a textura e a força da voz a conferir às canções essa fulgurância de que já falei.
Regresso perfeitamente à altura de 'Sigh No More', 'Babel' mostra-nos que os Mumford and Sons atingiram aqui um ponto de coesão que seria aquilo que não estava completamente conseguido no primeiro álbum. Assim, tocando um tipo de música simples e cru, a banda consegue, de facto, manter-nos interessados, também porque continuamente despertam em nós aquele sentimento de que, aquela música já exisitia, de alguma forma, na nossa memória longínqua. E pode soar como se fosse do tempo da outra senhora, mas 'Babel' é um álbum muitíssimo actual e, mais importante que isso, um álbum perfeitamente conseguido.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

What Would I Give?


What would I give for a heart of flesh to warm me through,
Instead of this heart of stone ice-cold whatever I do!
Hard and cold and small, of all hearts the worst of all.

What would I give for words, if only words would come!
But now in its misery my spirit has fallen dumb.
O merry friends, go your own way, I have never a word to say.

What would I give for tears! Not smiles but scalding tears,
To wash the black mark clean, and to thaw the frost of years,
To wash the stain ingrain, and to make me clean again.

Christina Rossetti
The Prince's Progress and other poems
1866, ed. MacMillan &Co
pintura de Edward Burne-Jones

É daqui a dez dias



Anathema
'Untouchable' (Partes 1 e 2) do álbum 'Weather Systems' (2012)

Ao vivo, dia 20, no PARADISE GARAGE em Lisboa

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Ambiciosa


Para aqueles fantasmas que passaram,
Vagabundos a quem jurei amar,
Nunca os meus braços lânguidos traçaram
O voo dum gesto para os alcançar ...

Se as minhas mãos em garra se cravaram
Sobre um amor em sangue a palpitar ...
__Quantas panteras bárbaras mataram
Só pelo raro gosto de matar !

Minh’ alma é como a pedra funerária
Erguida na montanha solitária
Interrogando a vibração dos céus !

O amor dum homem ? __Terra tão pisada,
Gota de chuva ao vento baloiçada ...
Um homem ? __Quando eu sonho o amor de um Deus ! ...

Florbela Espanca
Charneca em Flor
1930
pintura de Dante Gabriel Rossetti

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Lacrimatória 49


Os seus braços desistem, a sua visão já não alcança
sequer a sombra que a mulher deixa fugir pelos
contornos do corpo. As lágrimas caem num vaso e
solidificam com as cinzas que ele foi guardando
ao longo dos dias. Só existe lugar para a errância,
para um hino fúnebre. Um violino atravessa-lhe o
cérebro num desafio grandioso. A mulher dança
nesse território, no lado vertiginoso da boca, como
uma concha que se fecha para o vento da noite. Há
ali um mal, um fogo incurável, uma fenda. A mulher
transforma a sua morte num terreiro, empurrando o
homem para o abismo, sozinho, perseguido por um
polvo. É o ajuste de contas. Os ciprestes movem-se
na sua direcção, indiferentes ao chamamento da carne.

Jaime Rocha
Lacrimatória
2005, ed. Relógio d'Água
desenho de John Everett Millais


domingo, 7 de outubro de 2012

Dra. Hildegard

Talvez um dia possamos viver num mundo em que a cultura flua mais livre do que agora e em que o conhecimento seja uma prioridade para toda a gente, que o procurará incansávelmente. Claro que esse dia não é para agora, nem eu creio que durante o meu tempo de vida, que não estimo que vá para além da média, consiga ver chegar esse dia. Assim sendo, para os poucos interessados em conhecer, no sentido mais amplo do termo, há muitas contingências que, não raro, se tornam difíceis de contornar. E não nos podemos queixar muito. A internet, com tudo o que de mau trouxe (Ironia grande, esta de eu me queixar da internet.), trouxe, verdade se diga, uma grande facilidade. A música circula livremente, e mesmo os livros, circulam mais livremente, pois aquele que os procura, pode ter acesso a uma lista mais alargada das obras que procura e, não podendo, muitas vezes, por causa da língua, ter acesso aos textos originais, poderá ao menos encontrar uma ou outra tradução que lhe permita aceder ao que procura.
 
Esta introdução serve apenas para referir uma iniciativa que realmente é louvável. Os textos místicos e/ou de teologia interessam-me apenas enquanto textos. Desde criança que sou completamente esvaziado de fé, como tal, ler S. João da Cruz ou Santa Teresa de Ávila ou Santo Agostinho é, para mim, mais uma experiência literária. Nesse campo, deveria ser indiferente para mim que, hoje, dia 7 de Outubro, Bento XVI eleve ao estatuto de Doutora da Igreja a alemã Hildegard Von Bingen.
Hildegard nasceu em Bingen no final do século XI e faleceu em 1179. Esta freira beneditina legou-nos uma obra impressionante, que passa pela poesia, pela prosa, pela filosofia, pela composição musical, pela botânica e até pela criação de um alfabeto. Apesar duma obra desta amplitude, Hildegard tem sofrido, até agora, de uma indiferença que recaiu sobre outros nomes da mística, como Jan van Ruysbroek ou Hadewijch de Antuérpia, que escreveram igualmente obras importantes e extensas, mas que ficaram votados a um esquecimento que não se compreende bem. O facto de ser mulher também terá contribuído para isto. Na lista de Doutores da Igreja encontrávamos, até agora, trinta homens e três mulheres, sendo elas Catarina de Siena, Teresa de Ávila e Therese de Lisieux. A partir de hoje, temos 31 homens (Sendo somado João de Ávila.) e 4 mulheres.
O facto de Hildegard von Bingen ser elevada a Doutora da Igreja, em si, não me diz nada. Sou ateu e as religiões organizadas causam-me uma impressão e uma desconfiança difíceis de ultrapassar. Mas, evidentemente, este estatuto terá consequências: uma delas será, provavelmente, uma maior divulgação da obra, incluindo traduções das obras escritas de Hildegard, que, até hoje, são completamente desconhecidas em português.
E para que, finalmente, possamos apreciar a beleza dos seus textos, eu diria que é de louvar a elevação de Hildegard.
 

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Eunomia (fragmento)

O seguinte texto foi-me enviado, generosamente, pela Hélia Correia, a quem agradeço a partilha. Trata-se de um poema de Sólon (sécs. VII-VI a.C.), autor da primeira Constituição de Atenas, escrita em verso. Se fosse preciso mais algum motivo, além da qualidade poética, para reproduzir aqui este fragmento, atente-se na sua impressionante actualidade, tão coincidente com os tempos de indigência que a Europa (E não só.) atravessa agora.
À Hélia, ainda, devo um apontamento que é importante para uma boa compreensão do poema: que Desordem e Boa Ordem correspondem na verdade a dois conceitos diferentes dos que lhes atribuimos hoje _ Desordem é a lei disfuncional, Boa Ordem é a lei harmoniosa.
 
 
A nossa cidade jamais perecerá, por vontade de Zeus
                e querer dos deuses imortais; bem-aventurados.
Sobre ela estende os braços, magnânima e vigilante,
               Palas Atena, filha de um pai ilustre.
Mas querem destruir a grande urbe, com os seus desvarios,
               cedendo às riquezas, os próprios cidadãos,
e dos chefes do povo o espírito injusto, a quem está destinado
              sofrer muitas dores pela sua grande insolência.
Pois não sabem refrear os seus excessos, nem pôr ordem
              nos bens presentes na paz do banquete.
..........................................................................
Enriquecem arrastados por acções injustas.
..........................................................................
              Sem poupar as posses dos santuários ou do povo,
roubaram a saque, cada um para seu lado;
              não guardam os alicerces veneráveis da justiça,
que, em silêncio, conhece o presente e o passado,
              e, com o tempo, vem a exercer vingança.
É esta a ferida inevitável que já surge em toda a cidade,
             que se precipita, veloz, na desgraça da escravatura,
que desperta a revolta civil e a guerra adormecida,
            que perdeu a amável vida de tantos.
Em breve uma cidade muito estimada é arruinada pelos inimigos
           nas conspirações caras aos malvados.
São estes os males que agitam o povo.
            E muitos dos indigentes demandam a terra alheia,
vendidos e atados com cadeias ignominiosas. 
............................................................................
E, assim, a desgraça pública entra em casa a cada um.
           E as portas do pátio não podem detê-la.
Mas salta a elevada fortaleza, e acha quanto quer,
           ainda que se fuja para o recesso do tálamo.
Manda-me o meu coração que ensine aos Atenienses estas coisas:
          como a Desordem causa muitas desgraças ao Estado,
e a Boa Ordem apresenta tudo bem arranjado e disposto,
            e muitas vezes põe grilhetas aos injustos.
Aplaca as asperezas, faz cessar a saciedade, enfraquece a insolência,
           faz murchar as flores nascidas da desgraça,
endireita a justiça tortuosa e abranda os actos
           insolentes, termina com os dissídios,
cessa a cólera da terrível discórdia, e, sob o seu influxo,
          todos os actos humanos são sensatos e prudentes.
 
 
tradução de Maria Helena da Rocha Pereira
imagem: A Fome de Júlio Pomar
 

segunda-feira, 1 de outubro de 2012