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sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Elogio de Maria Teresa


Eu que às vezes encontro sem saber porquê
um simples não sei quê em estátuas retratos antigos
de límpidas mulheres desconhecidas
eu que de súbito à primeira vista me apaixono adolescentemente
por essas mulheres mortas mas contemporâneas
de um pobre poeta português do século vinte
levadas até ele talvez por um discreto gesto
às formas e às cores impresso por um homem
que na arte encontrava a única razão de vida
abro a pasta e deparo com o teu retrato
um retrato de passe anos atrás tirado
no sítio suburbano onde primeiro vivemos
e juntos suportámos com surpresa a solidão
de sermos dois e ela só vergar os ombros onde os dias nos poisavam
Conheço outros retratos teus onde também estás viva
um deles bem me lembro estava à minha espera em saint-malo
uma tarde ao voltar do monte saint michel
nesse verão bretão onde então procurava
justificação por mínima que fosse para a vida
numa das muitas fugas de mim próprio
que às vezes empreendo embora antecipadamente certo
de que só pela morte enfim me encontrarei comigo
com todos quantos verdadeiramente amei
alguns desconhecidos e alguns mesmo inimigos
sobretudo sedentos de justiça
de que depois somente de bem morto hei-de dispor daquela paz
que sempre apeteci mas nunca procurei
até por não ter tempo para isso nem sequer para saber
coisas simples como saber quem sou porque ao certo só sei
que muito mais passei naquilo em que fiquei
nem que fossem os filhos ou os versos
que fiquei muito mais naquilo onde passei
como passos na areia no inverno ou repentinas sensações
de me sentir de súbito sensivelmente bem
encher o peito de ar sentir-me vivo
São retratos diferentes de quem foste um breve instante
e nele floriste e apenas não murchaste
por haveres ficado um pouco mais em tais fotografias
Mas há em todos eles uma graça inesperada
a surpresa da corça ou restos dessa raça
que há em ti talvez um pouco mais que nas demais mulheres
expressão sempre surpreendente da surpresa
mesmo até para quem te conhece tão bem como eu te conheço
Se nuns mais do que noutros sem excepção desponta
a madrugada que era e é esse teu riso claro
quem primeiro falou de riso claro
talvez houvesse ouvido a água quando corre sobre os seixos de
um ribeiro
talvez a houvesse visto branca e fresca
mas teve de inventar pra conquistar essa metáfora
quando eu que te ouvi rir não fiz mais do que ouvir
e sei que o som da água imita o teu sorriso
Talvez dentro de séculos se não fale já de ti
coisa aliás sem maior importância
que a de não ter alguém deixado o teu retrato
em qualquer dos museus esparsos pelo mundo
Eu estarei morto e pouco poderei fazer
por ti simples mulher da minha vida
Mas isso não importa importa esta manhã
este bar de milão onde olho o teu retrato
enquanto espero o meu pequeno almoço
saboreio as cervejas em jejum tomadas
e começam de súbito a chegar aos meus ouvidos
inesperados os primeiros acordes do concerto imperador
Se um dia penso porventura te perder
mulher simples recôndita e surpreendente
sobre quem recaiu o peso do meu nome
só então saberei quanto valias verdadeiramente
Estás presente em mim como ninguém
e sabes quão terrivelmente amei e amo outras mulheres
além de ti além de minha mãe
Mas tu tens o meu nome clara rilke tu trocaste
a tua alegre vida irrequieta
no único infeliz dos teus negócios
por um poeta pobre velho e feio como eu
Contigo aprendi coisas tão simples como
a forma de convívio com o meu cabelo ralo
e a diversa cor que há nos olhos das pessoas
Só tu me acompanhaste súbitos momentos
quando tudo ruía ao meu redor
e me sentia só e no cabo do mundo
Contigo fui cruel no dia a dia
mais que mulher tu és já hoje a minha única viúva
Não posso dar-te mais do que te dou
este molhado olhar de homem que morre
e se comove ao ver-te assim presente tão subitamente
Bons dias maria teresa até depois
preciso de tomar o meu pequeno almoço
a cerveja era boa mas é bom comer
como come qualquer homem normal
e me poupa ao perigo de até pela idade
me converter subitamente num sentimental


Ruy Belo
Transporte no Tempo
1973, ed. Moraes
desenho de Elizabeth Eleanor Siddal

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Lacrimatória 49


Os seus braços desistem, a sua visão já não alcança
sequer a sombra que a mulher deixa fugir pelos
contornos do corpo. As lágrimas caem num vaso e
solidificam com as cinzas que ele foi guardando
ao longo dos dias. Só existe lugar para a errância,
para um hino fúnebre. Um violino atravessa-lhe o
cérebro num desafio grandioso. A mulher dança
nesse território, no lado vertiginoso da boca, como
uma concha que se fecha para o vento da noite. Há
ali um mal, um fogo incurável, uma fenda. A mulher
transforma a sua morte num terreiro, empurrando o
homem para o abismo, sozinho, perseguido por um
polvo. É o ajuste de contas. Os ciprestes movem-se
na sua direcção, indiferentes ao chamamento da carne.

Jaime Rocha
Lacrimatória
2005, ed. Relógio d'Água
desenho de John Everett Millais


segunda-feira, 16 de maio de 2011

A primeira representação de Elizabeth Siddal

foi este "Twelfth Night", de Walter Deverell, que adapta uma cena de Shakespeare. Elizabeth é a primeira figura à esquerda, uma mulher vestida de homem. No mesmo quadro, ainda antes de se envolver amorosamente com Elizabeth, Dante Gabriel Rossetti posa como o palhaço.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Lacrimatória 2


Aqui começa a impossível ressurreição do corpo.
Um ácido tapa os dedos do homem como se fosse
uma luva de pedra. Cabe à mulher explicar o desenho
dos ombros, como é feita a curva das ancas no instante
da queda. O silêncio arrepia, não a morte. É preciso
descobrir de onde vem a lua cega, quem a carrega,
quem a anuncia nos dias em que os monstros das
lagoas invadem a terra. O homem arrepende-se,
não suporta a picada das aves que nascem do lodo
abraçadas aos crustáceos. Transforma o ferro em aço,
envolve-o em grandes anéis de pólvora, afugenta as
limalhas com o próprio sopro. O seu destino não
pertence ao chão que pisa, mas a ela, à luz que
transparece dos seus ossos.

Jaime Rocha
Lacrimatória
2005, ed. Relógio d´Água
desenho de Elizabeth Eleanor Siddal

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Lost Days


The lost days of my life until to-day,
What were they, could I see them on the street
Lie as they fell? Would they be ears of wheat
Sown once for food but trodden into clay?

Or golden coins squandered and still to pay?
Or drops of blood dabbling the guilty feet?
Or such spilt water as in dreams must cheat
The throats of men in Hell, who thirst alway?

I do not see them here; but after death
God knows I know the faces I shall see,
Each one a murdered self, with low last breath.

‘I am thyself, — what hast thou done to me?’
‘And I—and I—thyself,’ (lo! each one saith,)
‘And thou thyself to all eternity!’


Dante Gabriel Rosetti
The House Of Life
1881



segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Pinturas de Elizabeth Eleanor Siddal

Uma vez mais, incitado pela leitura do romance "Adoecer" de Hélia Correia, que concluí há uns dias, lembrei-me de assinalar aqui uma questão que me parece interessante na história de Elizabeth Eleanor Siddal e de Dante Gabriel Rossetti.
Elizabeth é mais conhecida por ter sido obsessivamente desenhada por Rossetti e, eventualmente, mais ainda por ter sido ela a modelo da "Ophelia" de Millais.
Aquilo que é menos conhecido é que Elizabeth era, ela mesma, pintora e poeta. Os seus trabalhos plásticos chegaram, inclusivamente, a ser incluidos em exposições dos Pré-Rafaelitas, sendo ela a única mulher do grupo.
Mais ainda, o romance de Hélia Correia vem suscitar uma dúvida interessante: a de que Elizabeth terá alguma presença autoral na pintura do próprio Rossetti. Fez-me pensar num muitíssimo interessante texto de Rosa Montero sobre a relação de Camille Claudel com Rodin, em que nos explica que a influência de Rodin na obra de Camille é muitíssimo analisada, ao passo que a influência de Camille na obra de Rodin é descurada.
Para o bem e para o mal, aqui ficam, entre desenhos e pinturas, dez trabalhos de Elizabeth Eleanor.

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

A beleza de Elizabeth Eleanor Siddall, pintada por Dante Gabriel Rossetti

Estou, de momento, a meio da leitura do mais recente romance de Hélia Correia. "Adoecer" é uma belíssima história de amor, entre dois seres excepcionais, o pintor Pré-Rafaelita Dante Gabriel Rossetti e Elizabeth Siddal, sua companheira e modelo para as mais variadas pinturas.
Se já o poeta Jaime Rocha, companheiro de longa data de Hélia, dedicara vários livros aos Pré-Rafaelitas, entre os quais "Lacrimatória" e "Necrophilya", "Adoecer" é mais uma oportunidade de atravessarmos algumas visões apaixonantes quer dos Pré-Rafaelitas, quer da relação entre Siddall e Rossetti.