domingo, 27 de abril de 2014

mudinha e quieta




















pé ante pé há-de chegar a morte:
alminha vagabunda, enquanto ofegas
são as gotas da vida cabras cegas
na hora escapulida que te exporte.

alguém dirá que ao criador te entregas,
terás um atavio em lenho forte
e um necrológio do melhor recorte:
azar, lampejos, erros teus, refregas.

se da outra vida algum contacto póstumo
acaso se consente então a sós tu mo
dirás depois e se gostaste ou não.

mas se não for assim não ficas mal
mudinha e quieta, por sinal,
há gente bem pior no panteão.


Vasco Graça Moura
3 de Janeiro de 1942 - 27 de Abril de 2014

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Memorial Temporário #4


"A morte do debate público'', um texto meu sobre debates, conversas e trocas de opiniões em redes sociais, que podem ler aqui.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

[Quem fala]


























Quem fala
não sou eu
é o outro o que me expulsou
da concha do meu sol


É ele que caminha nos meus passos

e eu olho-o e esqueço-o
Quem pode suportar um reflexo?
Quem pode viver contra o seu duplo?


Eu digo eu ainda

mas sou eu que declino
sou eu que caio
com a ferida do sol que ele me arrancou

António Ramos Rosa
Numa folha, leve e livre
2013, ed. Lua de Marfim
fotografia de Ralph Eugene Meatyard

terça-feira, 1 de abril de 2014

um cão para pompeia
























aos amantes enlaçados contraponho
um cão de pompeia, decerto ele andaria
a brincar junto ao forum, à cata de algum osso,
quando o vesúvio o caçou, mais lesto,

para moldá-lo em pedra-pomes.
insisto em vê-lo como um bicho magro e descuidado,
de penúria diuturna. passou de leve
pelos peristilos, alheio ao luxo, à corrupção,

à astrologia, e nunca dos triclínios
lhe caiu um naco envenenado, nunca se tornou
nem animal simbólico, nem mito que ganisse.
nunca foi encontrado nas escavações, mas é para aqui chamado.

era um cão, just a dog, com pulgas e
que alçava a perna como todos os cães
e ladrava e mordia quando era preciso.
fazia pela vida e, fauno das esquinas, pelas cadelas no cio.

alguma tabuleta diria cave canem em tésseras minúsculas,
sem alaridos da história, e só sobreviveu
nos livros de latim expurgados, misturada
com a guerra das gálias e alguns nomes de deuses.

eu canto um cão sem fábula nem pedigree, que não fugiu aos fados,
um rafeiro vulgar, digamos, de plínio
o velho que, a propósito, morreu perto dali,
talvez uivando, uns dias depois dele.

“você é um cerebral”, disse-me cloé, flava e enervada.
“sim”, disse-lhe eu com prudência, “mas há tantos.
e o amor e a morte sempre foram pensáveis”.
e acrescentei “e depois? que mal faz isso ao cão?”


Vasco Graça Moura
A Furiosa paixão pelo tangível
1987, ed. Quetzal
pintura de Paul Klee