terça-feira, 1 de abril de 2014

um cão para pompeia
























aos amantes enlaçados contraponho
um cão de pompeia, decerto ele andaria
a brincar junto ao forum, à cata de algum osso,
quando o vesúvio o caçou, mais lesto,

para moldá-lo em pedra-pomes.
insisto em vê-lo como um bicho magro e descuidado,
de penúria diuturna. passou de leve
pelos peristilos, alheio ao luxo, à corrupção,

à astrologia, e nunca dos triclínios
lhe caiu um naco envenenado, nunca se tornou
nem animal simbólico, nem mito que ganisse.
nunca foi encontrado nas escavações, mas é para aqui chamado.

era um cão, just a dog, com pulgas e
que alçava a perna como todos os cães
e ladrava e mordia quando era preciso.
fazia pela vida e, fauno das esquinas, pelas cadelas no cio.

alguma tabuleta diria cave canem em tésseras minúsculas,
sem alaridos da história, e só sobreviveu
nos livros de latim expurgados, misturada
com a guerra das gálias e alguns nomes de deuses.

eu canto um cão sem fábula nem pedigree, que não fugiu aos fados,
um rafeiro vulgar, digamos, de plínio
o velho que, a propósito, morreu perto dali,
talvez uivando, uns dias depois dele.

“você é um cerebral”, disse-me cloé, flava e enervada.
“sim”, disse-lhe eu com prudência, “mas há tantos.
e o amor e a morte sempre foram pensáveis”.
e acrescentei “e depois? que mal faz isso ao cão?”


Vasco Graça Moura
A Furiosa paixão pelo tangível
1987, ed. Quetzal
pintura de Paul Klee

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