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domingo, 27 de abril de 2014

mudinha e quieta




















pé ante pé há-de chegar a morte:
alminha vagabunda, enquanto ofegas
são as gotas da vida cabras cegas
na hora escapulida que te exporte.

alguém dirá que ao criador te entregas,
terás um atavio em lenho forte
e um necrológio do melhor recorte:
azar, lampejos, erros teus, refregas.

se da outra vida algum contacto póstumo
acaso se consente então a sós tu mo
dirás depois e se gostaste ou não.

mas se não for assim não ficas mal
mudinha e quieta, por sinal,
há gente bem pior no panteão.


Vasco Graça Moura
3 de Janeiro de 1942 - 27 de Abril de 2014

terça-feira, 1 de abril de 2014

um cão para pompeia
























aos amantes enlaçados contraponho
um cão de pompeia, decerto ele andaria
a brincar junto ao forum, à cata de algum osso,
quando o vesúvio o caçou, mais lesto,

para moldá-lo em pedra-pomes.
insisto em vê-lo como um bicho magro e descuidado,
de penúria diuturna. passou de leve
pelos peristilos, alheio ao luxo, à corrupção,

à astrologia, e nunca dos triclínios
lhe caiu um naco envenenado, nunca se tornou
nem animal simbólico, nem mito que ganisse.
nunca foi encontrado nas escavações, mas é para aqui chamado.

era um cão, just a dog, com pulgas e
que alçava a perna como todos os cães
e ladrava e mordia quando era preciso.
fazia pela vida e, fauno das esquinas, pelas cadelas no cio.

alguma tabuleta diria cave canem em tésseras minúsculas,
sem alaridos da história, e só sobreviveu
nos livros de latim expurgados, misturada
com a guerra das gálias e alguns nomes de deuses.

eu canto um cão sem fábula nem pedigree, que não fugiu aos fados,
um rafeiro vulgar, digamos, de plínio
o velho que, a propósito, morreu perto dali,
talvez uivando, uns dias depois dele.

“você é um cerebral”, disse-me cloé, flava e enervada.
“sim”, disse-lhe eu com prudência, “mas há tantos.
e o amor e a morte sempre foram pensáveis”.
e acrescentei “e depois? que mal faz isso ao cão?”


Vasco Graça Moura
A Furiosa paixão pelo tangível
1987, ed. Quetzal
pintura de Paul Klee

segunda-feira, 15 de julho de 2013

primitivos flamengos
















para os primitivos a
felicidade estava na minúcia
da transcrição do real:
a textura das coisas era

levada muito a sério,
o brilho dos metais, a
perfeição de uma haste
a elevar-se de uma jarra, a

tapeçaria caindo em
largas pregas, outros tecidos
dobrados silenciosamente,
ou, para lá do rosto oval

de alguma santa, a paisagem
a rasgar-se azul e verde,
até se esfumar, longínqua. e
por entre baldaquinos, espaldares,

trabalhados dosséis,
a luz existia na pele das coisas e a
alegria era a serena confiança
de se estar no mundo, podendo

copiar estas aparências


Vasco Graça Moura
O Retrato de Francisca Matroco e outros poemas
1998, ed. Quetzal
pintura de Jan Van Eyck

quinta-feira, 11 de abril de 2013

'Modo Mudando' de Vasco Graça Moura, 50 anos depois

A par de um percurso literário bastante intensivo, em particular na poesia, Vasco Graça Moura tem sido conhecido também, ou nalguns casos principalmente, pela sua participação na política portuguesa e pelo seu trabalho ligado a várias instituições como a Imprensa Nacional-Casa da Moeda, a Gulbenkian e, mais recentemente, o CCB, entre outras.
Da sua bibliografia, poder-se-iam destacar vários títulos, mas a atenção, por norma, recai sobre livros como ‘A Furiosa Paixão Pelo Tangível’ (1987), ‘Uma Carta no Inverno’ (1997), ‘Poemas Com Pessoas’ (1997) ou ‘Laocoonte, Rimas Várias, Andamentos Graves’ (2005), livros mais recentes para um autor que publica os seus primeiros livros a partir do princípio da década de 60.
Uma leitura de livros mais recentes de Vasco Graça Moura revela-nos alguns fios condutores na poesia do autor: uma reinvenção das estruturas clássicas, a utilização simultânea de léxicos eruditos e quotidianos, o diálogo constante com as artes plásticas e a música, o rigor rítmico, a preocupação política e um jogo obsessivo com o real, que passa pela sua transformação, pela sua reinvenção e pelo processo denso e complexo que liga o real ao poético.


Em 2013 assinalam-se os 50 anos de produção literária de Vasco Graça Moura, assinalados tanto pela edição em dois volumes da sua ‘Poesia Reunida’ como pelo livro de ensaios ‘Discursos Vários Poéticos’. Será uma boa ocasião, talvez, para revisitar o primeiro livro do autor, ‘Modo Mudando’, cuja primeira edição, do autor, de 1963, é recordada num dos melhores poemas de ‘O Concerto Campestre’ (1993).
‘Modo Mudando’ é um conjunto de 40 poemas (38 dos quais estão presentes no primeiro volume da ‘Poesia Reunida’.) que abrem com uma citação de T.S. Elliot:

So here I am (…)
(…)
Trying to learn to use words (…)

ideia que é talvez tutelar neste primeiro livro. Tutelar porque, dela, se podem extrair dois conceitos básicos, ambos muito presentes nestes poemas: por um lado as palavras, enquanto elementos específicos de valor próprio, e, por outro, as experimentações com esses elementos e com os seus valores.
Os poemas, ora longos e torrenciais, ora breves e contidos, contêm imagens fortes e contundentes que se conseguem, essencialmente, pelo isolamento de certas palavras, que ficam como que suspensas num verso, ganhando significação própria e, com ela, um poder transformador sobre a imagem de que falam.

imprevista   magnética
elástica
             como novelos
surgiste com novo ser
do sábio jogo dos membros

lemos em a contorcionista. Outro exemplo deste isolamento transformador pode encontrar-se em tu, entre poemas:

refluem como alíseos    ou gaivotas
esvoaçam como folhas    ou cabelos

lisos   ovais   a seixos
se assemelham

Neste aspecto, a poesia de Graça Moura nos pareceria, em 1963, perfeitamente alinhada com as experiências do ‘Poesia 61’, bem como com as experiências que, na década de 50, surgiram com o Surrealismo e a Poesia Concreta. No soneto nova meditação sobre a palavra, encontramos esta ideia que pode confirmar essa herança

assim a palavra se prestasse
ao jade    ao jogo    ao jugo de uma toda
arte poética e nunca ripostasse
em golpes repentinos de judoka

assim nunca o poema se traísse
na trama aleatória de uma aposta
perdida    no seu hábil mecanismo
traria o juro ao artesão que o monta

                trata-se, de facto, de uma herança e não de uma filiação. Isto porque a poesia de Graça Moura, nesta altura ainda em fase inicial, parece aceitar uma certa estranheza e a justaposição de imagens e linguagens aparentemente opostas, mas sabe evitar os excessos em que muitas vezes caíram as experiências da poesia Surrealista e, talvez mais ainda, da Concreta. Ao longo de ‘Modo Mudando’ sente-se vários ecos mais eruditos, não só através da reincidência na forma do soneto, como também numa série de pequenos detalhes em que há uma espécie de piscar de olhos a um certo classicismo (Exemplo disso são poemas como para a poesia da água guardada, still life and da vinci ou mordaz mordendo.). Este conhecimento profundo da história da poesia, que haveria de proporcionar livros tão impressionantes como ‘Quatro Sextinas’ (1973), as ‘Sequências Regulares’ (1978) ou os ‘Sonetos Familiares’ (1995) só para citar os exemplos mais evidentes, é precisamente aquilo que impede Vasco Graça Moura de, nestes poemas, se deixar levar pelo erro do non-sense abstracto que votou ao fracasso as experiências de vários autores nas correntes já citadas.


                Anos depois deste livro, em um cão para pompeia do livro ‘A Furiosa Paixão Pelo Tangível’, diz o autor, com refrescante ironia:

«você é um cerebral», disse-me cloé, flava e enervada.
«sim», disse-lhe eu com prudência, «mas há tantos,
e o amor e a morte sempre foram pensáveis».

e é interessante constatar como, no primeiro livro, estes princípios são já notórios. Já nestes primeiros poemas, Graça Moura, ainda que por vezes apaixonado, se revela também extremamente cerebral e, diga-se, também bastante irónico por vezes. Não falta a ‘Modo Mudando’ uma carga emotiva (Leia-se um poema como substância.), mas a todo o momento ressalta dos poemas uma carga intelectualizada, muitas vezes conseguida através da aspereza das próprias palavras que tornam a leitura quase agreste, e também uma carga algo sarcástica, uma espécie de desvio em relação àquela emotividade, quando esta parece prestes a aproximar-se do sentimentalismo (O caso do poema to a murdered girl é um dos mais claros.).
Para finalizar esta nota, penso que seria interessante pensar no poema inaugural de Graça Moura, chamado precisamente poema,

silenciosamente aproximo-me do poema
circundo-o duma palavra     faço nela
uma incisão deliberada

e exponho a ferida ao ar sem protegê-la
para que infecte e frutifique

de resina   ainda com gosto a papel húmido
o poema cresce    ramifica-se
comovidamente do cerne para a casca
inteiro    liso    adstringente   sinuoso

mas
todo o poema é perfeitamente impuro

funciona como uma espécie de arte poética cujos princípios são ainda os da poesia do autor, mesmo da mais actual que, afinal, tão distante parece estar deste primeiro livro. No entanto, nestes poucos versos, está presente a ligação do real com a escrita poética, a infecção que esta sofre e que vai ampliá-la, e essa impureza que faz parte do poema e cujos sentidos parecem variar de texto para texto mas que, no geral, parece ser um símbolo de como o poema se encontra entre duas realidades: uma a do real propriamente dito e outra a do real poético. Impuro, o poema pode ser, então, o lugar entre os dois, que nos permite oscilar de um para o outro. Não nos esqueçamos que, ao infectar, a ferida que vem do poema frutifica, enriquece-nos.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Quando os dias se movem


usamos nalgumas coisas uma violência simples
isso é romper os símbolos que envidraçam o resto
mas parte quem amamos quando os dias se movem
e se escolheu os limites para a pele aderir

no fundo de nós mesmos omitem-se tais coisas
e criam-se ficções, defesas, crueldades
dos jogos da aparêcia (à vista nos perdemos)
e movem-se nos dias seus múltiplos contrários

e contudo se movem se quem amamos fere
e o faz de razão fria ou esquecidamente
e a alegria se torna um torpe imaginário
quem muito amamos mata: vai-nos desinventando

Vasco Graça Moura
Instrumentos para a Melancolia
1980, ed. O Oiro do Dia
pintura de Mário Botas

quinta-feira, 19 de abril de 2012

A Explosão da Imagem



Há muitos anos numa feira de loiça,
rosa ramalho deu-me um dos seus bonecos
de barro, e contou-me nesse dia a uma amiga
que me acompanhava uma história qualquer
de discussão e zanga: -- e sabe o que eu lhes disse,
menina ? um "caralhinho !" a frase foi
sublinhada com um manguito engelhado
e um riso divertido de barcelos.

passou muito tempo, mas lembro-me, rosa
ramalho recomendou-me que metesse
o boneco de barro cru, modelado de fresco,
no forno na cozinha, assim fiz e aquelas
formas húmidas explodiram pouco
depois, "-- o boneco
foi pró boneco" repetiam a rir-se
outras pessoas, pequeno monstro
mágico, das suas metamorfoses

ingénuas, fez-se pó, é o destino dos monstros
populares e dos outros, no
barro de que são feitos, a
minha amiga casou e mudou de cidade,
já passou mesmo muito tempo.
eu fui à minha vida, entretanto a rosa
ramalho morreu. tenho a certeza
de que ainda discute exclamando
" -- sabe que mais? -- um caralhinho !"
e que sabia o que ia acontecer
quando me disse que o boneco tinha
de ir ao forno. quem faz, desfaz.



Vasco Graça Moura
Poemas com Pessoas
1997, ed. Quetzal

domingo, 4 de março de 2012

Mísia e Vasco Graça Moura


O Mês de Dezembro IV




os namorados mortos não sabiam
e não queriam morrer, nunca ninguém
em verdade o quis já, mas acontece
que quase sempre morte e a amor se tocam


dos namorados mortos não se diga
que já não têm destino nem são livres
sequer de os esquecermos mesmo quando
se lhes apaga o rosto o sítio o nome


os namorados mortos não são fáceis
tu, por exemplo, evitas enredar-te
com o que sabes deles, mas que sabes
além de alguma história ou da aparência?

Vasco Graça Moura
O Mês de Dezembro e Outros Poemas
1977, ed. Inova
pintura de Mário Botas

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

desenho de jorge pinheiro


na minha mesa está pousado este
retrato à pena de uma mulher sentada.
a sua face rural e melancólica
debruça-se equânime como a fitar por dentro

as figuras de sombra no côncavo das vagas,
ou, citereia de trazer por casa,
sabe de mim, medita intimamente
as coisas certas sobre o meu trabalho.

não pergunto do olhar, nem do sorriso, nem da
serenidade. sei que é tudo interior e devaneia
por artes da memória e de sibila, fixando uma ou outra
passagem dos sonhos e do indizível,

junto à janela quando escuta
as ressonâncias que chegam justamente ao
tampo da mesa e entram ou não entram
inquietas de papel.

Vasco Graça Moura
A Sombra das Figuras
1985, edição do autor
pintura de Jorge Pinheiro

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

O Mês de Dezembro 1


continuamente, escuta, me destruo
e as longas águas sem sossego fogem
e os ossos de dezembro coincidem
e são do inverno estas metamorfoses

não falarei da vida porque a vida
perdidamente triste se sustenta
de surdos pensamentos e desastres
e devagar a luz se lhe estrangula

sempre assim foi esta periferia
da escrita a desfazer-se e é no inverno
que nos olhamos com ferocidade
antes que o tempo devore outros discursos


Vasco Graça Moura
O Mês de Dezembro e outros poemas

1972, ed. Inova
pintura de Caspar David Friedrich

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

celebração de modo mudando


era um livro pequeno, a catorze de fevereiro,
quando num sobressalto fui buscá-lo ao tipógrafo e o levei à livraria,
há trinta anos numa tarde de sábado, creio que era sábado,
e tudo se misturava alegria, apreensão, alguma pose, as frases feitas,
e o tempo frio a las cinco de la tarde.

hoje, com alguma experiência acumulada e vários cepticismos,
muitas frases desfeitas, sobretudo impaciências técnicas,
tenho ainda memórias desse livro tirado a duzentos exemplares
que fui pagando a prestações ali pró carvalhido
e se acaso as paguei todas levei decerto muitos meses.

merece a ode o snr. amaro costa,
que demorava as provas mas dava tais facilidades
e era amigo dos poetas mais novos e admirador dos poetas mais velhos
e fabricava livros de poesia e falava certamente de política
com alguma prudência elementar em tempos policiados.

era em sessenta e três, na tarde de catorze de fevereiro, a do embrulho triunfal.
tornei-me um autor do porto ao entrar com ele na livraria, praia
lá da rua de ceuta, um dia toda lapis-lazuli e coral.
e depois em casa com alguma atrapalhação e sem naturalidade nenhuma,
pus-me a dedicar exemplares aos pais, à namorada.

sempre esperei das letras o que elas não podiam dar-me
até desesperar. e então deram-me tudo, mais ou menos tudo
insensatamente: os ácidos, os gumes, as minhas dinamenes,
os ângulos agudos. citei vezes abundantes os meus mestres,
trinta anos de os pastar, bem os servi, e fui discreto.

Vasco Graça Moura
O Concerto Campestre
1993, ed. Quetzal
pintura de Ângelo de Sousa

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

O Drama Box de Mísia

Fanny Ardant declama o poema de Vasco Graça Moura, "Fogo Preso", traduzido para francês. Uma leitura assinalavelmente sensual e rítmica.


segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

presságios de alfama

névoa e partida
vaivém das vagas
luzes no mar
vela perdida
vozes presagas
a vêm tocar

vozes presagas
quanto agoirar

luz esquecida
como te apagas
a tremular
ó louca vida,
como naufragas
a navegar

vozes presagas
quanto agoirar

morre a gaivota
doente
e à tua rota
vai rente
num triste trino
a chama
o teu destino,
alfama

morte que sem olhos fita
pelo mar vem a desdita
pó de saudades,
cinzas sem lume
escuridão
e tempestades
noite e negrume
no coração

noite e negrume
no coração

às cegas vou
e não sei
quem violou
esta lei
quem poluiu
o meu linho
quem me impediu
o caminho

meu destino já marcado
erros meus que são meu fado


VASCO GRAÇA MOURA
para o álbum "Canto" de MÍSIA