quinta-feira, 11 de abril de 2013

'Modo Mudando' de Vasco Graça Moura, 50 anos depois

A par de um percurso literário bastante intensivo, em particular na poesia, Vasco Graça Moura tem sido conhecido também, ou nalguns casos principalmente, pela sua participação na política portuguesa e pelo seu trabalho ligado a várias instituições como a Imprensa Nacional-Casa da Moeda, a Gulbenkian e, mais recentemente, o CCB, entre outras.
Da sua bibliografia, poder-se-iam destacar vários títulos, mas a atenção, por norma, recai sobre livros como ‘A Furiosa Paixão Pelo Tangível’ (1987), ‘Uma Carta no Inverno’ (1997), ‘Poemas Com Pessoas’ (1997) ou ‘Laocoonte, Rimas Várias, Andamentos Graves’ (2005), livros mais recentes para um autor que publica os seus primeiros livros a partir do princípio da década de 60.
Uma leitura de livros mais recentes de Vasco Graça Moura revela-nos alguns fios condutores na poesia do autor: uma reinvenção das estruturas clássicas, a utilização simultânea de léxicos eruditos e quotidianos, o diálogo constante com as artes plásticas e a música, o rigor rítmico, a preocupação política e um jogo obsessivo com o real, que passa pela sua transformação, pela sua reinvenção e pelo processo denso e complexo que liga o real ao poético.


Em 2013 assinalam-se os 50 anos de produção literária de Vasco Graça Moura, assinalados tanto pela edição em dois volumes da sua ‘Poesia Reunida’ como pelo livro de ensaios ‘Discursos Vários Poéticos’. Será uma boa ocasião, talvez, para revisitar o primeiro livro do autor, ‘Modo Mudando’, cuja primeira edição, do autor, de 1963, é recordada num dos melhores poemas de ‘O Concerto Campestre’ (1993).
‘Modo Mudando’ é um conjunto de 40 poemas (38 dos quais estão presentes no primeiro volume da ‘Poesia Reunida’.) que abrem com uma citação de T.S. Elliot:

So here I am (…)
(…)
Trying to learn to use words (…)

ideia que é talvez tutelar neste primeiro livro. Tutelar porque, dela, se podem extrair dois conceitos básicos, ambos muito presentes nestes poemas: por um lado as palavras, enquanto elementos específicos de valor próprio, e, por outro, as experimentações com esses elementos e com os seus valores.
Os poemas, ora longos e torrenciais, ora breves e contidos, contêm imagens fortes e contundentes que se conseguem, essencialmente, pelo isolamento de certas palavras, que ficam como que suspensas num verso, ganhando significação própria e, com ela, um poder transformador sobre a imagem de que falam.

imprevista   magnética
elástica
             como novelos
surgiste com novo ser
do sábio jogo dos membros

lemos em a contorcionista. Outro exemplo deste isolamento transformador pode encontrar-se em tu, entre poemas:

refluem como alíseos    ou gaivotas
esvoaçam como folhas    ou cabelos

lisos   ovais   a seixos
se assemelham

Neste aspecto, a poesia de Graça Moura nos pareceria, em 1963, perfeitamente alinhada com as experiências do ‘Poesia 61’, bem como com as experiências que, na década de 50, surgiram com o Surrealismo e a Poesia Concreta. No soneto nova meditação sobre a palavra, encontramos esta ideia que pode confirmar essa herança

assim a palavra se prestasse
ao jade    ao jogo    ao jugo de uma toda
arte poética e nunca ripostasse
em golpes repentinos de judoka

assim nunca o poema se traísse
na trama aleatória de uma aposta
perdida    no seu hábil mecanismo
traria o juro ao artesão que o monta

                trata-se, de facto, de uma herança e não de uma filiação. Isto porque a poesia de Graça Moura, nesta altura ainda em fase inicial, parece aceitar uma certa estranheza e a justaposição de imagens e linguagens aparentemente opostas, mas sabe evitar os excessos em que muitas vezes caíram as experiências da poesia Surrealista e, talvez mais ainda, da Concreta. Ao longo de ‘Modo Mudando’ sente-se vários ecos mais eruditos, não só através da reincidência na forma do soneto, como também numa série de pequenos detalhes em que há uma espécie de piscar de olhos a um certo classicismo (Exemplo disso são poemas como para a poesia da água guardada, still life and da vinci ou mordaz mordendo.). Este conhecimento profundo da história da poesia, que haveria de proporcionar livros tão impressionantes como ‘Quatro Sextinas’ (1973), as ‘Sequências Regulares’ (1978) ou os ‘Sonetos Familiares’ (1995) só para citar os exemplos mais evidentes, é precisamente aquilo que impede Vasco Graça Moura de, nestes poemas, se deixar levar pelo erro do non-sense abstracto que votou ao fracasso as experiências de vários autores nas correntes já citadas.


                Anos depois deste livro, em um cão para pompeia do livro ‘A Furiosa Paixão Pelo Tangível’, diz o autor, com refrescante ironia:

«você é um cerebral», disse-me cloé, flava e enervada.
«sim», disse-lhe eu com prudência, «mas há tantos,
e o amor e a morte sempre foram pensáveis».

e é interessante constatar como, no primeiro livro, estes princípios são já notórios. Já nestes primeiros poemas, Graça Moura, ainda que por vezes apaixonado, se revela também extremamente cerebral e, diga-se, também bastante irónico por vezes. Não falta a ‘Modo Mudando’ uma carga emotiva (Leia-se um poema como substância.), mas a todo o momento ressalta dos poemas uma carga intelectualizada, muitas vezes conseguida através da aspereza das próprias palavras que tornam a leitura quase agreste, e também uma carga algo sarcástica, uma espécie de desvio em relação àquela emotividade, quando esta parece prestes a aproximar-se do sentimentalismo (O caso do poema to a murdered girl é um dos mais claros.).
Para finalizar esta nota, penso que seria interessante pensar no poema inaugural de Graça Moura, chamado precisamente poema,

silenciosamente aproximo-me do poema
circundo-o duma palavra     faço nela
uma incisão deliberada

e exponho a ferida ao ar sem protegê-la
para que infecte e frutifique

de resina   ainda com gosto a papel húmido
o poema cresce    ramifica-se
comovidamente do cerne para a casca
inteiro    liso    adstringente   sinuoso

mas
todo o poema é perfeitamente impuro

funciona como uma espécie de arte poética cujos princípios são ainda os da poesia do autor, mesmo da mais actual que, afinal, tão distante parece estar deste primeiro livro. No entanto, nestes poucos versos, está presente a ligação do real com a escrita poética, a infecção que esta sofre e que vai ampliá-la, e essa impureza que faz parte do poema e cujos sentidos parecem variar de texto para texto mas que, no geral, parece ser um símbolo de como o poema se encontra entre duas realidades: uma a do real propriamente dito e outra a do real poético. Impuro, o poema pode ser, então, o lugar entre os dois, que nos permite oscilar de um para o outro. Não nos esqueçamos que, ao infectar, a ferida que vem do poema frutifica, enriquece-nos.

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