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sábado, 3 de janeiro de 2015

Memorial temporário #7


Alguns apontamentos, meus, sobre o último livro de José Saramago, que podem ler aqui.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Memorial temporário #6

Um pequeno apontamento (meu) sobre um poema do livro de estreia de Yvette K. Centeno, aqui.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Memorial temporário #5



Uma versão corrigida do meu texto sobre os «Órgãos epistolares», ainda o mais recente livro de poesia de Eduarda Chiote. Aqui.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Memorial Temporário #3


''A batota inocente de Florbela Espanca'', um texto meu sobre algumas cartas da escritora ao segundo marido, que podem ler aqui.

(na imagem, o retrato de Florbela por Graça Martins)

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Amélie Nothomb: Acide Sulfurique

A EXTINÇÃO DA HUMANIDADE

O mundo da escritora belga francófona Amélie Nothomb é definitivamente o do confronto. Desde o seu primeiro romance, 'Hygiène de L'Assassin' (1992), e escrevendo ora num registo declaradamente autobiográfico como em 'Le Sabotage Amoureux' (1993) ou 'Stupeur et Tremblements' (1999), ora num registo ficcional imaginoso e efabulado como em 'Mercure' (1998) ou 'Barbe Bleu' (2012), Amélie aborda sempre a colisão entre dois seres normalmente opostos, cujas diferenças se entrelaçam em textos de um pendor filosófico em que a capacidade argumentativa se torna o centro da narrativa, mais importante, por vezes, do que os acontecimentos propriamente ditos. Aliás, ainda que as tramas dos romances de Nothomb sejam por norma bastante criativas, elas sustentam-se quase inteiramente nas ideias que permitem colocar em cena.

O romance que a escritora publicou em 2005, 'Acide Sulfurique' mantém-se dentro deste universo confrontacional, mas representa um desvio em relação à maioria dos romances de Nothomb. Isto porque, ao passo que em livros como os acima referidos o conflito essencial é entre duas pessoas, ou então entre um pequeno grupo de pessoas, 'Acide Sulfurique' aumenta violentamente a escala do confronto, ao mesmo tempo que, em certos aspectos, também remove um dos elementos desse conflito.
O que este romance nos propõe é uma espécie de fábula distópica, em que uma série de anónimos são raptados nas ruas (Uma referência ao Jardin des Plantes diz-nos que se tratará das ruas de Paris, ainda que possa não ser exclusivamente a capital francesa o lugar dos raptos.) e levados para um campo de concentração que é palco de um reality-show chamado 'Concentration'. No programa encontramos os prisioneiros, todos designados por um código com três letras e três números, e os guardas, os kapos, encarregues de os torturarem e de os encaminharem, dois por cada dia, até às câmaras de morte.
Quando a kapo Zdena se apaixona por uma das prisioneiras, Panonique, parece-nos que está encontrado o típico duelo nothombiano, entre uma vítima e o seu carrasco, levadas ao diálogo mais violento ou menos pela paixão, neste caso uma paixão proibida e não correspondida.
Mas Amélie Nothomb nunca perderia a noção de que uma ficção com uma sinopse assim compreende uma dura crítica à sociedade voyeurista de modelos inspirados no premonitório e preocupante romance de George Orwell, '1984'. Orwell imagina que no futuro, todos seríamos vigiados pelo Big Brother, e precisamente essa entidade emblemática se tornou título de um reality-show que experimentava vigiar continuamente um grupo de pessoas. Mas Amélie vai mais longe na sua dissertação. Ela imagina um programa que não aspira ser 'a novela da vida real' (Como em Portugal se apresentava o 'Big Brother'.) mas sim uma novela em que se assiste directamente à degradação de um grupo de pessoas durante os seus últimos dias. A escritora lança o mote logo na primeira frase do livro:

Vint le moment où la souffrance des autres ne leur suffit plus; il leur en fallut le spectacle.
(p.9)

com esta frase, Nothomb não só desmascara logo à partida a premissa de 'Acide Sulfurique', como define imediatamente qual será o centro do romance: o sofrimento. E, logo depois, a exploração desse sofrimento enquanto entretenimento para uma sociedade fria e desafectada que perde a noção da realidade e qualquer conceito de humanidade. 
Naquilo que este romance tem de futurista e de distópico, ele roça a ficção científica, pelo menos naquilo que encontramos, por exemplo, em Asmiov, sobre a derrota e a extinção da raça humana. Amélie Nothomb não extingue em 'Acide Sulfurique' a raça humana, mas extingue a humanidade, pelo menos enquanto sistema de valores e de sentimentos e de consciência.
E assim, entrelaçado com o duelo entre Zdena e Panonique, surge-nos um muito mais amplo conflito, que é o dos prisioneiros, representados por Panonique, e o público, elemento ausente que se faz representar apenas por números, os números das audiências. Entre uns e outros, surgem, por um lado, os 'organizadores' do programa, que o manipulam de maneira a manter o interesse do público; e os jornalistas, que se dividem entre os mais populistas e os pretensos intelectuais, que ora incitam ora analisam o programa, acabando por inclusivamente tentar boicotá-lo.
A relação entre Zdena e Panonique vai evoluindo ao ponto em que se começa a prever um esquema para permitir a fuga aos prisioneiros, enquanto as audiências vão subindo, atraídas pela figura simbólica de Panonique que se torna uma espécie de mártir que representa a pureza restante num mundo que se destrói a si mesmo.


Como se vê, não só em 'Acide Sulfurique' Amélie aumenta largamente a escala do conflito retratado, como o torna mais complexo. Esta mudança de escala torna-se, pelo menos na primeira parte do livro, de certa forma desconcertante. A escrita de Nothomb mantém todas as características que já encontramos desde 'Hygiène de l'Assassin', é uma escrita simples, directa mas poética e sensível, e essa escrita parece, no início, não estar plenamente adaptada à escala do romance. Os capítulos curtos soam como resumos de vários aspectos desta 'crónica' e demora um pouco até que a mão de Nothomb se nos mostre perfeitamente à-vontade na dimensão do romance que escreve. Quando isso acontece, efectivamente, reconhecemos em 'Acide Sulfurique' a pujança e a desenvoltura dos restantes romances da escritora belga, e facilmente nos deixamos arrastar. Ela leva-nos ao extremo das ideias mais violentas, apresenta com uma crueza quase glacial o desespero dos seus personagens, conduz-nos através da verdadeira perversão e da verdadeira maldade, que se torna mais avassaladora ainda quando temos noção de que nada disto parte de uma pessoa apenas, mas de uma multidão vaga, da qual, por assim dizer, todos fazemos parte.
'Acide Sulfurique' é, por isso, um romance que experimenta uma ideia, levando-a às últimas consequências e que resulta, enquanto peça artística, num texto intenso e dramático, que resiste à predicabilidade e à histeria que um assunto destes facilmente provocaria. 

domingo, 30 de junho de 2013

Clarice Lispector: Um Sopro de Vida (Pulsações)

TESTAMENTO

Seria um exercício interessante procurar no último livro de vários escritores a marca do confronto com uma morte mais ou menos anunciada. Alguns dos livros mais fortes que já li, foram escritos quando os seus autores sentiam a aproximação da morte e da escrita fizeram campo de batalha derradeiro para enfrentar a sua chegada. Penso, por exemplo, em 'Entre Mim a Minha Morte Há Ainda um Copo de Crepúsculo' (2006) de Egito Gonçalves, cujos últimos poemas se encontram inclusivamente inacabados; em 'A Lume' (1989) de Luiza Neto Jorge, que recolhia inéditos e dispersos escritos alguns nos últimos tempos de vida e de saúde frágil da autora; no 'Diário do Último Ano' (1982) de Florbela Espanca que prenuncia claramente o suicídio. São alguns exemplos, apenas, de livros em que a chegada da morte ocupa um lugar de certa forma central, resultando afinal em textos de uma intensidade e de um poder extraordinários.


Dizer que em 'Um Sopro de Vida (Pulsações)' de Clarice Lispector não se sente esse confronto directo com a morte seria exagerado. A escrita dos fragmentos que compõem este livro começou antes da redação de 'A Hora da Estrela' (1977), último livro publicado em vida por Clarice, e terminou depois. Trata-se, portanto, do último escrito pela autora. Livro desprovido de uma narrativa ou, pelo menos, de uma intriga, como já acontecia com outros livros de Clarice, 'Pulsações' é um diálogo entre um escritor do sexo masculino e Ângela Pralini, a personagem que este se encontra a inventar. Estes diálogos não chegam a formar uma narrativa, um romance propriamente dito, são diálogos e, muitas vezes, monólogos que ora convergem ora divergem, que se expandem e multiplicam em torno de várias questões (A escrita, a vida, a morte, deus, o mundo, os objectos.), à imagem daquilo que já acontece noutros livros de Clarice Lispector. Se relembrarmos que 'A Paixão Segundo G.H.' (1961) era um longo tratado escrito a partir da morte de uma barata, facilmente reconheceremos a continuidade com este último livro. E, a uma leitura menos atenta, parece-nos que a proximidade da morte não fez com que Clarice escrevesse directamente sobre esse tema, nem de uma forma particularmente diferente.
Mas logo no início de 'Pulsações', lemos 

Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém, provavelmente a minha própria vida.
(p....)

e nesta frase está contida já inteira uma espécie de programa. O escritor vai dando algumas pistas que explicam este programa, e nelas se entende que a morte não tardará. Ângela Pralini, a derradeira personagem, não chega nunca a existir numa trama narrativa, ela é, no fundo, aquela que vai, na escrita, salvar a vida do escritor. Ângela é livre, ao ponto de por vezes soar superficial, é uma jovem com muito para viver, tenta escrever mas não consegue, dir-se-ia que anda perdida pelo mundo. No entanto, Ângela não está perdida, está à procura de se definir, à procura de começar, enquanto o escritor se prepara para terminar. No diálogo entre ambos, perpassa uma espécie de trasmissão, como se o escritor entregasse a Ângela a sua vida, para se salvar, no fundo. O confronto com a morte é, por isso, central em 'Pulsações'. O 'Sopro de Vida' que torna Ângela real (Explicado em epígrafe com uma citação bíblica.) funciona como uma espécie de testamento.
Mas Ângela não é, apesar de por vezes parecer, uma projecção do escritor. Ainda que ela surja, pelo menos num primeiro momento, para essa salvação perante a morte, Ângela ganha uma autonomia extrema, ao ponto de, em muitos momentos, quase a lermos como personagem tão real quanto o escritor: esperar-se-ia que ele tivesse, sobre ela, algum controlo; no entanto, esse controlo não existe, o escritor chega a odiar Ângela, sem, no entanto, conseguir desistir dela. É possível que Clarice explore, aqui, a sua própria arte de escrita: a invenção de um personagem, a autonomia posterior dessa personagem, que significa uma espécie de submissão do autor ao livro, que, por assim dizer, o ultrapassa. Por outro lado, a escrita parece, não raras vezes, representar o fio que liga à vida, e é, portanto, a vida que ocupa o lugar central de 'Pulsações'. E, portanto, nessa perda do controlo do escritor sobre Ângela, o que parece existir é uma espécie de batalha com a própria vida _ a escrita apenas reflecte essa batalha. Despido de esperança e sentindo a morte aproximar-se, o escritor deposita em Ângela a responsabilidade de lhe assumir a vida, mas Ângela não será, como ele esperaria, o seu reflexo, sequer o seu epígono. Esta independência entre os dois acaba por ser uma forma de aceitar a realidade da morte, pois a vida, mesmo que continuada por Ângela, não seria a vida do escritor, o seu sopro gerou efectivamente uma vida, imprevisível e autónoma, quase real. O que, apesar de tudo, significa um acto bem sucedido para o escritor, enquanto escritor.


Todo o livro parece construir-se sobre dualidades. Não só entre as personalidades de Ângela Pralini e do escritor, como entre a criação artística e a sua impredicabilidade, a proximidade da morte e a vontade de viver, a esperança e o desespero, a desistência e o prazer profundo de qualquer detalhe.
E é como se existisse em 'Pulsações' uma espécie de subtexto que é o da própria Clarice realmente enfrentando e quase desafiando a própria morte, e os diálogos de Ângela e do escritor parecem por vezes uma espécie de palimpsesto, que subtilmente deixa claro e nítido o texto original. E é nesse jogo entre texto e subtexto que 'Pulsações' redobra a sua intensidade. De facto, Clarice não parece muito diferente aqui, em relação a 'A Paixão Segundo G. H.' ou 'Água Viva' (1973). A intensidade deste livro é aquela que existe nos outros, mas a sua dimensão testamentária torna-se clara a certa altura e, ainda que no início a sua densidade seja assustadora e desconcertante, acaba por tornar-se uma leitura arrebatadora e desarmante.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

'Modo Mudando' de Vasco Graça Moura, 50 anos depois

A par de um percurso literário bastante intensivo, em particular na poesia, Vasco Graça Moura tem sido conhecido também, ou nalguns casos principalmente, pela sua participação na política portuguesa e pelo seu trabalho ligado a várias instituições como a Imprensa Nacional-Casa da Moeda, a Gulbenkian e, mais recentemente, o CCB, entre outras.
Da sua bibliografia, poder-se-iam destacar vários títulos, mas a atenção, por norma, recai sobre livros como ‘A Furiosa Paixão Pelo Tangível’ (1987), ‘Uma Carta no Inverno’ (1997), ‘Poemas Com Pessoas’ (1997) ou ‘Laocoonte, Rimas Várias, Andamentos Graves’ (2005), livros mais recentes para um autor que publica os seus primeiros livros a partir do princípio da década de 60.
Uma leitura de livros mais recentes de Vasco Graça Moura revela-nos alguns fios condutores na poesia do autor: uma reinvenção das estruturas clássicas, a utilização simultânea de léxicos eruditos e quotidianos, o diálogo constante com as artes plásticas e a música, o rigor rítmico, a preocupação política e um jogo obsessivo com o real, que passa pela sua transformação, pela sua reinvenção e pelo processo denso e complexo que liga o real ao poético.


Em 2013 assinalam-se os 50 anos de produção literária de Vasco Graça Moura, assinalados tanto pela edição em dois volumes da sua ‘Poesia Reunida’ como pelo livro de ensaios ‘Discursos Vários Poéticos’. Será uma boa ocasião, talvez, para revisitar o primeiro livro do autor, ‘Modo Mudando’, cuja primeira edição, do autor, de 1963, é recordada num dos melhores poemas de ‘O Concerto Campestre’ (1993).
‘Modo Mudando’ é um conjunto de 40 poemas (38 dos quais estão presentes no primeiro volume da ‘Poesia Reunida’.) que abrem com uma citação de T.S. Elliot:

So here I am (…)
(…)
Trying to learn to use words (…)

ideia que é talvez tutelar neste primeiro livro. Tutelar porque, dela, se podem extrair dois conceitos básicos, ambos muito presentes nestes poemas: por um lado as palavras, enquanto elementos específicos de valor próprio, e, por outro, as experimentações com esses elementos e com os seus valores.
Os poemas, ora longos e torrenciais, ora breves e contidos, contêm imagens fortes e contundentes que se conseguem, essencialmente, pelo isolamento de certas palavras, que ficam como que suspensas num verso, ganhando significação própria e, com ela, um poder transformador sobre a imagem de que falam.

imprevista   magnética
elástica
             como novelos
surgiste com novo ser
do sábio jogo dos membros

lemos em a contorcionista. Outro exemplo deste isolamento transformador pode encontrar-se em tu, entre poemas:

refluem como alíseos    ou gaivotas
esvoaçam como folhas    ou cabelos

lisos   ovais   a seixos
se assemelham

Neste aspecto, a poesia de Graça Moura nos pareceria, em 1963, perfeitamente alinhada com as experiências do ‘Poesia 61’, bem como com as experiências que, na década de 50, surgiram com o Surrealismo e a Poesia Concreta. No soneto nova meditação sobre a palavra, encontramos esta ideia que pode confirmar essa herança

assim a palavra se prestasse
ao jade    ao jogo    ao jugo de uma toda
arte poética e nunca ripostasse
em golpes repentinos de judoka

assim nunca o poema se traísse
na trama aleatória de uma aposta
perdida    no seu hábil mecanismo
traria o juro ao artesão que o monta

                trata-se, de facto, de uma herança e não de uma filiação. Isto porque a poesia de Graça Moura, nesta altura ainda em fase inicial, parece aceitar uma certa estranheza e a justaposição de imagens e linguagens aparentemente opostas, mas sabe evitar os excessos em que muitas vezes caíram as experiências da poesia Surrealista e, talvez mais ainda, da Concreta. Ao longo de ‘Modo Mudando’ sente-se vários ecos mais eruditos, não só através da reincidência na forma do soneto, como também numa série de pequenos detalhes em que há uma espécie de piscar de olhos a um certo classicismo (Exemplo disso são poemas como para a poesia da água guardada, still life and da vinci ou mordaz mordendo.). Este conhecimento profundo da história da poesia, que haveria de proporcionar livros tão impressionantes como ‘Quatro Sextinas’ (1973), as ‘Sequências Regulares’ (1978) ou os ‘Sonetos Familiares’ (1995) só para citar os exemplos mais evidentes, é precisamente aquilo que impede Vasco Graça Moura de, nestes poemas, se deixar levar pelo erro do non-sense abstracto que votou ao fracasso as experiências de vários autores nas correntes já citadas.


                Anos depois deste livro, em um cão para pompeia do livro ‘A Furiosa Paixão Pelo Tangível’, diz o autor, com refrescante ironia:

«você é um cerebral», disse-me cloé, flava e enervada.
«sim», disse-lhe eu com prudência, «mas há tantos,
e o amor e a morte sempre foram pensáveis».

e é interessante constatar como, no primeiro livro, estes princípios são já notórios. Já nestes primeiros poemas, Graça Moura, ainda que por vezes apaixonado, se revela também extremamente cerebral e, diga-se, também bastante irónico por vezes. Não falta a ‘Modo Mudando’ uma carga emotiva (Leia-se um poema como substância.), mas a todo o momento ressalta dos poemas uma carga intelectualizada, muitas vezes conseguida através da aspereza das próprias palavras que tornam a leitura quase agreste, e também uma carga algo sarcástica, uma espécie de desvio em relação àquela emotividade, quando esta parece prestes a aproximar-se do sentimentalismo (O caso do poema to a murdered girl é um dos mais claros.).
Para finalizar esta nota, penso que seria interessante pensar no poema inaugural de Graça Moura, chamado precisamente poema,

silenciosamente aproximo-me do poema
circundo-o duma palavra     faço nela
uma incisão deliberada

e exponho a ferida ao ar sem protegê-la
para que infecte e frutifique

de resina   ainda com gosto a papel húmido
o poema cresce    ramifica-se
comovidamente do cerne para a casca
inteiro    liso    adstringente   sinuoso

mas
todo o poema é perfeitamente impuro

funciona como uma espécie de arte poética cujos princípios são ainda os da poesia do autor, mesmo da mais actual que, afinal, tão distante parece estar deste primeiro livro. No entanto, nestes poucos versos, está presente a ligação do real com a escrita poética, a infecção que esta sofre e que vai ampliá-la, e essa impureza que faz parte do poema e cujos sentidos parecem variar de texto para texto mas que, no geral, parece ser um símbolo de como o poema se encontra entre duas realidades: uma a do real propriamente dito e outra a do real poético. Impuro, o poema pode ser, então, o lugar entre os dois, que nos permite oscilar de um para o outro. Não nos esqueçamos que, ao infectar, a ferida que vem do poema frutifica, enriquece-nos.

domingo, 30 de dezembro de 2012

Le Sabotage Amoureux de Amélie Nothomb

O AMOR EM TEMPOS DE GUERRA

Já aqui falei da escritora belga Amélie Nothomb, que desde a publicação do seu primeiro romance, 'Hygiène de l'Assassin', em 1992, tem conquistado um lugar especial nas letras francófonas, com vários prémios e com o título de mais importante jovem autora francófona. Nothomb é uma espécie de fenómeno de escrita e não só. Cultivada uma imagem de certa estranheza, a obra tem sabido não ficar àquem. Partindo muitas vezes de referências autobiográficas, as obras de Amélie Nothomb sabem expandir-se para uma série de universos mais vastos e mais densos, o que de certa forma explica a aderência de que a sua obra tem gozado. 


Nascida em Kobe (Japão), filha de diplomatas belgas, Nothomb passa a residir em Bruxelas aos 18 anos e os seus livros não raro se debruçam sobre a infância passada sempre em vários países. É o caso do seu segundo romance, este 'Le Sabotage Amoureux' (Ao contrário do primeiro, não se encontra traduzido para português.), que se centra nos anos em que Amélie viveu em Pequim, vinda do Japão, entre os cinco e os oito anos. Situado no início dos anos 70, o romance começa por narrar-nos uma guerra invulgar. Trata-se da guerra travada pelas crianças do bairro de San Li Tun, crianças de várias nacionalidades, sendo que todas se unem para combater as da Alemanha de Leste, representação simbólica dos mitos sobre comunismo. Chegada do Japão, a narradora pensa que o que define um país comunista é a existência de ventiladores, essas flores metálicas que não existiam no país onde nascera. As batalhas diárias são descritas num tom absolutamente desarmante, uma vez que a visão adulta da escritora se funde na visão simuladamente  infantil e assim, de uma narrativa que se traça a partir do imaginário de uma criança (Com bicicletas que são cavalos, por exemplo.) é posta em causa uma estruturação política, e também uma estruturação educativa, enquanto preparação para a idade adulta e a consciência politizada.
No entanto, o cerne de 'Le Sabotage Amoureux' é uma história de amor. A vida no bairro de San Li Tun altera-se com a chegada de dois irmãos italianos. A narradora rapidamente se apaixona por Elena, uma rapariga bela que não adere à brincadeira da guerra, e cuja frieza exerce a maior das fascinações sobre a jovem narradora.
Desse dia em diante, a grande preocupação da narradora é seduzir a recém-chegada. Inicialmente, tenta cativá-la para o jogo da guerra. Percebendo que essa abordagem não é o caminho certo, tenta acompanhá-la nos seus interesses, mas nada resulta. A situação agrava-se quando Elena arranja um 'namorado' francês, um modelo perfeito e balofo de príncipe encantado. A narradora esforça-se por separá-los e, eventualmente, consegue. No entanto, Elena continua a não estar interessada nela. 
Daqui, rapidamente se gera um jogo de poder perfeitamente cruel, em que a submissão e a humilhação cada vez mais se tornam evidentes.
Amélie Nothomb mostra-se perfeitamente capaz de criar esse jogo doentio sem que ele pareça inusitado para duas crianças. O exercício da crueldade é claro, mas está presente nas situações mais vulgares entre crianças, o que confere ao romance uma tonalidade um tanto sarcástica e negra, que chega mesmo a ser assustadora. 'Le Sabotage Amoureux' coloca-nos perante um facto bastante evidente, a favor do qual argumenta de forma muito eficaz: que a inocência é uma falta de consciência sobre o mal, e não a ausência desse mal. Num derradeiro acto de desespero, a narradora diz a Elena que fará tudo o que ela quiser para lhe provar o seu amor. Elena exige-lhe que corra vinte vezes o recreio da escola. Mesmo sabendo que a sua 'vítima' é asmática, exige-lho repetidamente. Quando se aproxima das oitenta voltas ao recreio, a narradora desmaia. Daqui para a frente, o jogo sofre alterações. A partir de um conselho da mãe, a narradora passa a tratar Elena com indiferença. Perdendo de repente o objecto sobre o qual recaem os maus-tratos, Elena começa a interessar-se pela narradora. Evidentemente, no momento em que a narradora volta a ceder, Elena volta a rejeitá-la. E é entre a rejeição, o controlo e o poder que se nasce a crueldade, assunto verdadeiramente central neste romance.


Será ainda bastante irónico que todos os dias a narradora trave uma guerra com os seus amigos, guerra em que uma boa estratégia garante um bom resultado e em que todas as dificuldades poderão ser vencidas; enquanto o simples enamoramento infantil se apresenta, na mesma personagem, como um caminho sem saída. A narradora encontra-se perante uma figura narcisista, que apenas abdica da sua posição de superioridade quando se sente menos adorada. Uma história assim tem muita mais força quando se passa entre crianças. Se com D.H. Lawrence aprendemos que há em quem se submete um poder equiparável ao daquele que domina (Veja-se 'O Oficial Prussiano'.), a verdade é que no romance de Nothomb isso nunca poderia acontecer, porque uma criança de sete anos não tem consciência das potencialidades do seu papel de submissão. E assim a crueldade se torna unilateral e, portanto, mais intensa.
A restante dimensão, política, do romance, surge-nos também com um fulgor interessante, pois, como se disse, mascaradas sobre um imaginário infantil, há uma série de concepções que começam a desenhar-se e que, ainda que passem um pouco para segundo plano na trama da história, não deixam de ter a sua importância e também de exercer sobre o leitor um certo efeito de fascínio.
Mais ainda, 'Le Sabotage Amoureux' mostra-nos ainda qual a natureza verdadeira do universo de Nothomb, que é o do confronto. Tal como no seu primeiro romance (Falo apenas desse, pois este é o segundo.), há, acima de tudo, um confronto entre duas pessoas, em que a resolução significará, provavelmente, a perdição de um, mas não necessariamente a salvação do outro. Nesse jogo, em que não chega a existir propriamente um vencedor, em termos de ideologia ou ética, se situa a narrativa deste livro, que nos assusta, nos diverte e nos entristece, incluindo-nos a nós mesmos, enquanto leitores, no jogo.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

L'Orage Rompu de Jacqueline Harpman

O JOGO DE NÓS MESMOS
Já aqui, a propósito de Amélie Nothomb falei sobre a ausência de fluidez cultural da Europa. Depois de uma investigação mais ou menos detalhada, posso dizer que não existe nenhuma tradução para português da autora, também belga, Jacqueline Harpman. Isto, apesar de Harpman, que aliás faleceu em Maio deste ano, ser uma autora bastante apreciada na Bélgica e em França, tendo inclusivamente sido laureada em 1996 pelo Prix Médicis, pelo romance 'Orlanda'.
Esta nota de leitura, no entanto, será sobre o livro seguinte, editado em 1999, 'L'Orage Rompu', romance em que a formação de Jacqueline Harpman, psicanalista de profissão, é bastante notória.
'L'Orage Rompu' fala-nos do encontro entre dois desconhecidos, a bordo do TEE entre Paris e Bruxelas. Cornélie havia-se deslocado à capital francesa para o funeral do seu ex-marido, Gustave, onde reencontra os dois filhos. Henri é um homem de negócios, que se senta perto de Cornélie, que ela imagina como sendo o mais comum dos mortais. A conversa entre os dois começa quase por acaso. Eventualmente, juntam-se à mesma mesa, a conversa passa do tom circunstancial para um tom íntimo. Em pouco tempo, Cornélie e Henri entram num jogo verbal que parte e chega às suas infâncias, às suas origens e às suas referências. O jogo, realmente, parte e chega a essas questões, mas entre partida e chegada, passa por zonas psicológicas em que a especulação ganha vantagem relativamente à verdade dos factos.
Cornélie, a narradora da história, ocupa o lugar central da trama. O texto em si oscila entre os diálogos dos dois e as memórias que ocorrem a Cornélie. Através destas duas 'formas', podemos perceber a reinvenção que Cornélie faz de si mesma, podendo também partir do princípio que o mesmo acontecerá com Henri.
Na vida de Cornélie, parece haver uma espécie de linhagem de três mulheres de importância crucial: a sua avó, a sua mãe e a sua filha. É através da comparação com estas mulheres que Cornélie se define, uma vez que, logo no início do texto, se define como uma mulher indecisa, dividida e anti-confrontacional. Mas Harpman consegue evitar com bastante eficácia os caminhos mais óbvios e mais básicos da análise psicológica. Se entendemos, por um lado, a tendência da autora para inserir a sua personagem num sistema de correlações familiares e amorosas, por outro também conseguimos ler o texto sem que isso se sobreponha à lógica ou à veracidade que, notoriamente, Harpman procura. Isto é tanto mais importante num romance como 'L'Orage Rompu', que vive da complexidade dos seus personagens, e não da complexidade do seu enredo.
Cornélie conta e reinventa o seu passado sempre através das pessoas que a rodeavam. Fala do pai, falecido precocemente, cuja profissão como gestor de empresas em via de falência, fez com que a família se mudasse frequentemente durante a infância da filha, entre a Holanda, Inglaterra e várias cidades belgas. Só após a morte do pai Cornélie passou a ter residência fixa, em Bruxelas, pnde passa a viver com a mãe e a avó. Uma e outra são figuras fortes. A mãe retoma os clientes do falecido marido e a avó leva a sua vida com uma espécie de leviandade séria, preocupada em ser resoluta face aos sofrimentos. Em plenos anos 60, Cornélie econtra-se a viver na grande cidade, atravessa as reformulações sociais, o feminismo, as revoluções sexuais, enfim, a conquista de uma certa forma de liberdade, no que diz respeito à sexualidade, aos comportamentos, ao trabalho, etc. As colegas de escola de Cornélie, cujos comportamentos são ora conservadores ora modernos, fazem-na descobrir a sua própria psicologia, e, consequentemente, o seu próprio desencaixe, com o qual acaba por ter dificuldades em lidar, durante muito tempo, e que diz essencialmente respeito à descoberta passional.
«Et l'amour, grande-mère? Faut-il aimer?» Elle m'a répondu: «Eh bien, moi, je me suis mariée, alors, je ne sais pas.»
(p.101)
apesar de 'L'Orage Rompu' ser, no geral, uma história de pendor triste, protege-se de excessos porque Harpman domina com relativa facildade uma série de processos de ironia, que reforçam a tendência especulativa que, no fundo, está sempre implicada no (re)contar duma história íntima, como o próprio Henri acabará por constatar:
Nous jouons tous un jeu. On crée un personnage, on le prend pour soi et on s'y enferme. Tout à l'heure, quand vous m'avez parlé de mon complet trois-pièces, j'ai sursauté intérieurement mais bien entendu vous n'en avez rien vu car je suis un homme d'affaires, je négocie, donc je dissimule, c'est comme le poker, on ne doit pas se révéler avant le moment utile.
(p.183)
no fundo, toda a conversa, que faz entrever uma espécie de ligação amorosa subliminar, passa por esse jogo entre o que se esconde e o que se revela, uma espécie de jogo de nós mesmos. Isto porque, como percebemos com a leitura de 'L'Orage Rompu', a própria manipulação dos factos, o eterno jogo interpretativo, não nos afastam da verdade. Porque a interpretação dos factos, sendo pessoal, acaba sendo também autobiográfica. E, por assim dizer, o que gostaríamos de ser, ou o que gostaríamos de ter sido, diz de nós tanto ou mais do que o que somos ou o que desejaríamos ter sido. E, assim, a infidelidade aos factos pode ser uma fidelidade à verdade.
Vous revêz. Tout ceci est un rêve qui se passe entre deux réalités. Nous ne sommes nulle part, nous ne savons pas par où nous passons, nous traversons une campagne toute noire, ce moment ne compte pas, c'est un leurre. Je n'existe pas. Ce que vous coyez que je suis n'existe pas, c'est une effect du hasard, une illusion d'optique qui disparaît quand on bouge la tête.
(p.191)
diz Cornélie, quando o comboio está próximo de Bruxelas. No fundo, toda a viagem, entre duas cidades, através de uma massa negra, parece uma espécie de regresso a essa infância em que a sua família se mudava constantemente, enquanto tudo ainda estava por definir, ou se redefinia constantemente. Assim, enquanto o encontro está prestes a terminar, Cornélie diz que não existe, e que tudo aquilo que deu a Henri não existe, não é verdadeiro. No entanto, apesar de ter suspendido o encontro com Henri por achar que o nascer da paixão (O romper da tempestade que dá título ao livro.) a afastara da verdade e a levara a criar uma melhor versão de si mesma, encontramo-la, no epílogo, dez anos depois recordando esse encontro.
E se, por um lado, o desenlace de 'L'Orage Rompu' nos pode parecer um tanto derrotista, é também verdade que o romance nos deixa uma noção muito clara: que a duração de uma paixão não é o que define a sua intensidade, mas sim a verdade que foi tocada nessa paixão. E assim, um encontro de duas horas, entre duas pessoas, pode ser o mais intenso de uma vida.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Gonçalo Byrne por Paulo Coelho (Col. Arquitectos Portugueses)

No ano passado, a QuidNovi editou uma colecção de pequenas monografias sobre arquitectos portugueses. A colecção chama-se assim mesmo, Arquitectos Portugueses e é, à partida, uma excelente ideia. Sabemos que Portugal não prima nem por valorizar a cultura própria e a Arquitectura não é excepção. Bem pelo contrário, a maioria das monografias que encontramos são sempre sobre os suspeitos do costume e escusado será dizer mais seja o que for.
Aliás, a título de aparte, diga-se que se há alguma coisa que caracteriza profundamente a cultura portuguesa é a sua tendência para os semi-deuses, para a idolatria cega a um ou dois nomes, idolatria essa que faz esquecer todos os outros, independentemente de terem um trabalho (cultural, entenda-se) bom ou mau.
E se isto é característica muitíssimo portuguesa, há que louvar a ideia de fazer uma colecção de monografias sobre arquitectos portugueses. Ainda que se trate de pequenas monografias, seriam, na pior das hipóteses, boas introduções a um leque de arquitectos que vá além de Álvaro Siza e de Eduardo Souto de Moura e, portanto, permitiriam traçar uma imagem mais alargada da Arquitectura em Portugal.
O 11º volume desta colecção é sobre o arquitecto Gonçalo Byrne. Byrne está longe de ser um arquitecto votado a qualquer tipo de secretismo, já que algumas das suas obras públicas estão longe de passar despercebidas, mesmo que o nome passe. No entanto, o que encontramos na bibliografia deste livro é no mínimo angustiante: a lista apresenta seis obras utilizadas que têm isto de interessante: três são de edição italiana, uma espanhola e duas portuguesas. As edições portuguesas são um catálogo e uma revista. Uma das edições italinas já teve direito a tradução portuguesa, mas o facto continua à vista: pouco em Portugal se escreveu sobre Gonçalo Byrne.
Numa situação assim, a publicação desta monografia, nem que, como se disse, ela consistisse apenas numa introdução à obra do arquitecto, seria ainda mais louvável e teria ainda mais significado, uma vez mais cultural.
Mas não é o caso.
O volume é organizado e introduzido por Paulo Coelho, não o escritor brasileiro, mas um arquitecto formado pela Faculdade do Porto, mas com uma carreira ligada principalmente ao design. A incompetência de Coelho para trabalhar sobre Byrne sente-se logo na Introdução em que, ao que parece, introduzir a obra do arquitecto não é a prioridade do autor. Coelho começa bem, enumerando uma série de aspectos mais decisivos para a definição de uma Obra, muitos deles declarados pelo próprio Gonçalo Byrne. No entanto, quando chega a altura de escrever uma pequena conclusão em que se explicasse como as preocupações citadas contribuíram para a construção de uma obra relevante, Coelho escreve o seguinte
 
Com quase cinquenta anos de prática profissional, Gonçalo Byrne tem desenvolvido, com metódica continuidade projectual, uma obra segura e com crescente apuro de preocupações com o território e a cidade. Sendo um dos arquitectos de Lisboa mais conhecidos e apreciados no exterior, é também aquele que mais se aproximava, em termos de atitude e de propostas formais, da chamada "Escola do Porto".
[p.9]
 
daqui, podemos depreender o seguinte: que a obra de Gonçalo Byrne, cujas características haviam sido explicadas, é boa porque, apesar do arquitecto se ter formado na antiga ESBAL, ele se aproxima em determinados aspectos da Escola do Porto. Isto porque um arquitecto em Portugal não pode ter uma obra segura e com crescente apuro de preocupações que seja conhecid[a] e apreciad[a] no estrangeiro se não for da Escola do Porto ou se, não sendo por ela formado, pelo menos se aproximar dela.
Evidentemente, pode parecer que estou a fazer uma leitura um tanto literal ou até de má-fé daquilo que o organizador do volume escreve. No entanto, mais à frente, encontramos a confirmação de que não se trata nem duma leitura muito literal nem duma leitura movida por má-fé. Ao escrever algumas notas sobre um conjunto de casas geminadas em Casal Figueiras (Setúbal), eis o que lemos
 
Byrne coloca [...] uma sequência de casas geminadas com dois andares, realizada contemporaneamente à famosa malha da Malagueira em Évora, assinado [sic] por Álvaro Siza Vieira
[p.10]
 
é muito vulgar e correcto que se utilizem comparações destas em ensaios. Por norma, utilizam-se por duas razões: ou se cita uma obra que influenciou aquela de que se fala, ou então citam-se obras realizadas ao mesmo tempo, de maneira a dar uma ideia do contexto em que a obra surge. O problema com a compração estabelecida por Paulo Coelho é que não responde perante nenhuma destas hipóteses: a malha da Malagueira não pode ter influenciado particularmente Byrne, porque é mais ou menos cueva; e se o objectivo é contextualizar as casas de Casal Figueiras, citar um exemplo é insuficiente, seriam precisos mais alguns.
Portanto, este fragmento do texto serve precisamente o mesmo propósito que o outro: o de aproximar Byrne da Escola do Porto e excluir a ideia de que outras escolas possam formar arquitectos de referência.
Por alguma razão a cultura portuguesa parece não evoluir, mesmo quando cresce. A mentalidade que a Introdução de Paulo Coelho revela é, de facto, um pouco aquela que a própria Escola do Porto atravessa desde há muitos anos, uma mentalidade extremamente portuguesa: vivem voltados para um passado glorioso que não deixa de ser passado, mas autoproclamam-se modernos por inovarem nas coisas menos importantes. Para mais sobre este assunto, leia-se O Caso Mental Português de Fernando Pessoa. É uma análise da cultura portuguesa da época e, para nossa amargura, uma análise da cultura portuguesa de hoje, que pouco ou nada mudou desde 1932, quando o texto veio a lume pela primeira vez.
A realidade, que interessou pouco a Paulo Coelho, é outra: Gonçalo Byrne, nascido em 1941 em Alcobaça, fez o curso de Arquitectura na Escola Superior de Belas-Artes Lisboa e a partir daí tem, efectivamente, construído uma obra original e segura em Portugal e lá fora.
No entanto, e isso não mereceu particular referência a Coelho, Byrne não se limitou a ser arquitecto: tem um longo currículo como professor em Arquitectura: na Árvore do Porto, em Coimbra, na Universidade Autónoma de Lisboa e no ISCTE também em Lisboa; e ainda em Lausanne (Suíça), Leuven (Bélgica), Barcelona (Espanha), Nancy (França), Veneza (Itália), Graz (Áustria), em Harvard, Pamplona (Espanha), Mendrisio (Suíça), Navarra (Espanha) e Alghero (Itália). Estas listas são atiradas para a Cronologia, no final do volume, quase sem referência na Introdução, o que significa negligenciar um outro lado do trabalho de Byrne, pois o constante, ou contínuo mesmo, envolvimento do arquitecto com as Universidades e com a vida académica implica sempre um papel activo na formação cultural de futuros arquitectos, e, mais importante ainda do que isso, um papel activo na tentativa de recriar e tornar eficiente e evoluída (Como se disse, há uma diferença significativa entre crescer e evoluir.) uma verdadeira cultura arquitectónica, que falha largamente a Portugal, sendo esta monografia de Paulo Coelho um exemplo crasso da fragilidade da cultura arquitectónica em Portugal, que começa muitas vezes pelos próprios arquitectos, concentrados em alimentar o mito de si mesmos _ou daqueles que são já mito e não convém deixar de adorar _mais do que em fomentar uma cultura.
Se a Introdução vale alguma coisa, é pela inclusão de três textos assinados por Gonçalo Byrne em que a sua percepção e as suas preocupações em Arquitectura são referidos e explicados, de uma forma relativamente sintética e adequada. A leitura desses textos será muito mais orientadora do que a Introdução propriamente dita, para depois vermos as obras seleccionadas para apresentação nesta monografia.
Relativamente à secção de Projectos, deixo algumas notas: antes de mais, uma nota bastante positiva para a inclusão de desenhos do arquitecto, que nos permitem observar a noção de espaço e as prioridades dele no momento de iniciação do projecto, pois todos esses aspectos estão por demais presentes nos desenhos. As fotografias também são boas, focando frequentemente o interior dos edifícios e evitando esgotar-se em mostrar o aspecto exterior/estético deles. No entanto, há que assinalar que as plantas, cortes e alçados surgem sem indicação de escala, e em dimensão bastante reduzida, o que, nalguns casos inviabiliza a leitura desses desenhos técnicos. Nalguns casos (Por exemplo, a Casa nel Parco ou o Edifício Estoril-Sol.) os projectos são apresentados sem qualquer planta útil ou mesmo sem planta alguma, o que se torna um tanto difícil de compreender num livro de Arquitectura.
Os textos de Paulo Coelho não aprofundam muito, como não poderiam aprofundar numa edição desta natureza, mas revelam-se mais ou menos úteis, traçando na maioria dos casos bons retratos escritos dos edifícios. Se há uma falha nestes textos é de não tentarem traçar propriamente uma ligação entre o pensamento de Byrne, expresso em vários textos, e a obra e até de não traçar muito fortemente ligações entre umas obras e outras. Os projectos são analisados num caso-a-caso, mas não investem em especificar as continuidades que existem de umas obras para as outras. Valem, portanto, as descrições precisamente assim, como descrições das obras. Outra coisa que surpreende é a maneira como estão escritos os textos sobre obras construídas no estrangeiro. Temos a Sede da Província do Brabante Flamengo em Leuven (Bélgica), a Casa nel Parco em Jesolo (Itália) e a requalificação do Quarteirão em Ospedaletto em Veneza (Itália). O que surpreende nestes textos é que Coelho, que na Introdução se mostrava tão pródigo em contextualizar obras, não seja capaz de analisar ou de sequer referir aquilo que a Arquitectura belga ou italina tenha tido de ponderante ou de influente nas obras que Byrne projectou para esses países. No caso do quarteirão em Ospedaletto, há referências ao gótico predominante no terreno, mas essa referência não vai além de si mesma, perdendo-se qualquer oportunidade de entender em que é que a escala, o traçado ou até a ideologia do período Gótico tiveram de importante no projecto de Byrne.
Excepção a tudo isto é o longo texto que explica o Museu Nacional Machado de Castro (Coimbra), não por ser longo, mas por tocar precisamente em quase todos os aspectos mais importantes para explicar uma obra por demais complexa tanto a um nível conceptual como a um nível construtivo.
Só é de lamentar que, por exemplo, a requalificação da zona evolvente do Mosteiro de Sta Maria de Alcobaça ou o invulgar conjunto de moradias em Óbidos não tenham tido tão minucioso tratamento (Assinale-se uma vez mais que talvez a natureza da edição não o tenha permitido.).
Outra coisa ainda que me parece que valerá a pena dizer, mas que não é uma crítica directa a este livro, uma vez que se trata de uma prática corrente na edição de livros de Arquitectura em Portugal: nota-se uma quase completa negligência daquilo que possa ser o pensamento e a cultura dos arquitectos. Escasseiam as referências a textos escritos pelos autores, a publicações em que tenham estado envolvidos, e muitas vezes até à importância que outros arquitectos e mesmo outros artistas ou pensadores tiveram para aqueles de quem se fala. Este desinteresse a que se vota a formação intelectual do arquitecto justifica muitas vezes a pobreza das análises que sobre eles se escrevem.
Para concluir, retomarei um pouco aquilo que disse na introdução desta nota de leitura. Pouco de verdadeiramente aprofundado se escreveu sobre Gonçalo Byrne em Portugal. Ironicamente, o nosso país tem alguns arquitectos dignos de análise e de interesse (Alguns, apenas: Fernando Távora, Manuel Taínha, Francisco Keil do Amaral, Cassiano Barbosa e Arménio Losa, Inês Lobo, entre vários outros.), no entanto, aqueles que efectivamente organizam edições com maior amplitude preferem debruçar-se sobre aqueles que já deixaram de ser arquitectos para serem semi-deuses, e não vale a pena fingir que não estou a falar de Álvaro Siza e de Souto de Moura. No que isto resulta é na quase ignorância em relação aos restantes nomes que formam o universo da Arquitectura em Portugal. É preciso não nos esquecermos que estes livros não devem ser escritos no sentido de serem lidos por um público especializado: é preciso que a cultura arquitectónica exista fora do círculo mais restrito. E portanto, é assim que estamos: em Portugal há dois semi-deuses e não há cultura arquitectónica. E o resultado é que essa fragilidade cultural, cuja consequência mais directa é a total ausência de sentido crítico relativamente à Arquitectura, não se fará sentir só no público não especializado (Onde muitas vezes estão os clientes.), mas também nos próprios arquitectos ou naqueles que escrevem sobre Arquitectura, que, profundamente incultos, se encontram apenas capazes de reforçar os mitos que já existem, e que, cada vez que tentam ter um discurso minimamente analítico ou crítico fazem a triste figura de beatas que se ajoelham na missa sem da Bíblia conhecerem mais que aquilo que o padre lê. É o que acontece com este livro e é pena, porque um arquitecto como Gonçalo Byrne mereceria mais.
 
 
fotografia da Reitoria da Universidade de Aveiro (1992)

Fotografia da Sede de Província do Brabante Flamengo, Leuven (Bélgica) (1998)

Planta do conjunto de moradias em Óbidos (2004)
 

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

O Poder da Submissão

 
 
O Marquês de Sade terá sido dos primeiros autores a escrever de uma forma directa e crua sobre o jogo de poder que está por vezes implícito na sexualidade. Os '120 Dias de Sodoma', obra onde a imaginação do Marquês se revela de forma mais exacerbada, colocam-nos perante um grupo de quatro homens que se retiram para uma mansão com quatro meretrizes e uma trupe de escravos e escravas, com quem satisfarão as suas extravagâncias sexuais.
O escândalo que os livros do Marquês causaram prolongou-se por muitos anos e se, hoje, já temos um leque bastante mais alargado de autores mais recentes que falam directamente sobre sexo e sexualidade, a verdade é que parte do pudor em ler ou falar de certas obras não desapareceu totalmente.
Léopold de Sacher-Masoch é um exemplo, um pouco mais próximo de Sade e, no princípio do século XX, três nomes surgem para se tornarem definitivos no universo da literatura erótica: D.H. Lawrence, Henry Miller e Anaïs Nin.
Precisamente Anaïs Nin estreou-se nos livros em 1932 com um pequeno estudo intitulado 'D.H. Lawrence: An Unprofessional Study', um ensaio que causou uma certa polémica, por ser uma mulher a analisar e a louvar a obra de Lawrence, que a maioria dos críticos rejeitava, pelo seu conteúdo erótico um tanto desabrido para a época. Hoje, Lawrence é relativamente apreciado e, ainda que nem todas as suas obras gozem da mesma popularidade, grande parte dela encontra-se disponível, analisada e traduzida em várias línguas. Em português, encontramos vários dos livros deste autor.
 
 
A nota que aqui quero deixar refere-se a alguns aspectos (E não ao todo.) de um conto de D.H. Lawrence cuja primeira tradução para português foi, penso, a editada em 1987 pela Hiena Editora, em tradução de Aníbal Fernandes, entretanto reeditada pela Assírio e Alvim.
O prefácio, escrito pelo tradutor, tem como título 'Senhor e Servo'. Não ao acaso, pois um dos aspectos mais singificativos deste conto prende-se precisamente com a questão do poder, e da sua relação com o erotismo.
O conto veio a público pela primeira vez numa revista em 1914, e, ainda no mesmo ano, foi incluído num livro de contos do autor, ao qual dava título. Fala-nos de um oficial prussiano e da sua ordenança, um soldado mais novo, forte e bem parecido. O texto acompanhará a relação entre os dois, em que a atracção sexual nunca consumada é sublimada através da relação de poder.
O que aqui é analisado, a relação entre desejo e poder, já tinha sido, de certa forma, abordada pelo Marquês de Sade nos '120 Dias de Sodoma'. No entanto, Lawrence e o Marquês encontram-se, na mesma questão, em frentes opostas. O Marquês fala-nos essencialmente do poder do senhor sobre o seu servo, um poder que não se anula nem conhece hesitações. Um dos exemplos mais claros disto prende-se com a questão da penetração, que poderíamos interpretar como uma forma de simbolizar não o poder, mas certo poder: o que acontece entre os senhores e os seus escravos no livro do Marquês é que a penetração não é, de facto, símbolo de poder algum, porque, mesmo quando são penetrados pelos seus escravos, os senhores continuam sendo senhores, continuam a deter todo o poder, tal como os escravos continuam a ser escravos e nada mais.
A razão essencial disto está na própria escrita do Marquês: os escravos dos '120 Dias de Sodoma' não são pessoas, são objectos para serem utilizados, e as únicas personagens com direito a profundidade são os senhores. Os escravos, um pouco como acontecia na democracia grega, não são seres humanos, ou, se o são, são-no de uma raça inferior e sem direitos.
'O Oficial Prussiano' de Lawrence não se identifica com esta perspectiva. A sua análise é mais cuidada e o conto, escrito na terceira pessoa, centra-se tanto naquilo que sente o oficial como naquilo que sente o seu subalterno. O desejo sexual acontece de parte a parte, mas nenhum dos dois se deixará dominar pela inclinação pouco aceitável para a época e para o contexto. Assim, o desejo é violentado pela negação e canalizado para a agressividade. O oficial passa a mal-tratar fisica e psicologicamente o seu subalterno, trazendo-lhe o seu sadismo uma agradável sensação de controlo, tanto como uma certa vergonha que pressupõe um ligeiro sentimento de culpa. Por sua vez, o subalterno odeia o seu capitão, sem no entanto conseguir odiá-lo plenamente, e sem conseguir evitar o jogo em que sai espezinhado. Quando, na segunda secção do conto, consegue finalmente rebelar-se, matando o seu capitão, é consumido por uma desolação e uma desorientação que o impedem de reagir, acabando por morrer também.
O que, no fundo, é analisado neste conto de Lawrence, é a relação de codependência entre o senhor e o seu servo. Em Sade, os escravos, despidos da sua condição humana, estão nas mãos dos seus senhores, que podem fazer deles o que quiserem, não tendo os escravos qualquer hipótese de rebelião ou de libertação e os senhores, seguros pela inamobilidade do seu poder, podem perfeitamente eliminar os seus escravos, pois, de seguida, encontrarão outros. E, efectivamente, são poucos os escravos sobreviventes no final dos '120 Dias de Sodoma'. O próprio Sacher Masoch, em 'A Vénus das Peles' apresenta-nos um homem de bom nascimento que voluntariamente se torna escravo de uma mulher de bom nascimento também. Mas mesmo assim, encaminha-se para a tendência de Sade pois, ao tornar-se escravo, esse homem abdica da vontade própria, da capacidade de fugir, do livre-arbítrio, enfim, de toda a identidade, comportando-se de forma muito semelhante aos escravos da obra de Sade.
Em Lawrence, as coisas processam-se ao contrário. Depende o servo do senhor tanto quanto o senhor depende dele. A sexualidade desviada para a agressividade origina um jogo doentio de poder e agressão de que ninguém pode sair vencedor, porque o servo, ao ser vítima, tem também poder, quando muito o poder de fazer do senhor o seu senhor. Daí que no conto não haja uma concretização do desejo. A concretização anularia o jogo, tornaria iguais senhor e servo. O mesmo acontece com a morte, essa sim consumada. O servo assassina o seu senhor, mas percebe que a sua vida acabou também, e acaba por efectivamente definhar, ficando lado a lado com o seu senhor na morgue. Ou seja, ao tentar libertar-se do seu senhor, mantando-o, o servo sela o seu destino: não poderá libertar-se. O mesmo teria acontecido se fosse ao contrário, pois o senhor não poderia ser senhor sem o seu servo. A submissão do servo é, portanto, uma forma outra de exercer o poder.
A intromissão do poder na sexualidade, como em muitas outras coisas, já foi analisada em literatura, em psicanálise e nas mais variadas áreas. O poder do dominínio e o poder da submissão são assunto de muitos textos e não só e se esse poder é bom ou mau, fica ao cargo de cada um.
Aquando da publicação do seu 'Caim', José Saramago referiu-se à bíblia como um manual de maus costumes e um catálogo de crueldade. Concordo. O romance de Saramago colocava Caim numa divagação por vários cenários bíblicos que argumentavam a favor desta ideia. Mas sobre os jogos de poder entre senhor e servo e a perversidade que pode existir nesses jogos, a própria bíblia contém alguns exemplos interessantes. Como qualquer texto, a bíblia é susceptível de várias leituras e, portanto, aquela que aqui deixo, não invalida que outras pessoas tenham outras leituras deste episódio, como não invalida que eu mesmo tenha outras leituras deste episódio.

Um fariseu convidou-o para comer consigo. Entrou em casa do fariseu eu pôs-Se à mesa. Ora uma mulher, conhecida como pecadora naquela cidade, ao saber que Ele estava à mesa em casa do fariseu, trouxe um vaso de alabastro com perfume; colocando-se por detrás d'Ele e chorando, começou a banhar-Lhe os pés com lágrimas; enxugava-os com os cabelos e beijava-os, ungindo-os com perfume. Vendo isto, o fariseu que O convidara disse consigo: «Se este homem fosse profeta, saberia quem e de que espécie é a mulher que lhe está a tocar, porque é uma pecadora!» Então Jesus disse-lhe: «Tenho uma coisa para te dizer, Simão». «Fala Mestre», respondeu ele. «Um prestamista tinha dois devedores: Um devia-lhe quinhentos denários e outro cinquenta. Não tendo eles com que pagar, perdoou os dois. Qual deles o amará mais?» Simão respondeu: «Aquele a quem perdoou mais, creio eu.» Jesus disse-lhe: «Julgaste bem.» E, voltando-se para a mulher, disse a Simão: «Vês esta mulher? Entrei em tua casa e não Me deste água para os pés; ela, porém, banhou-Me os pés com as suas lágrimas e enxugou-os com os seus cabelos. Não Me deste um ósculo; mas ela, desde que entrei, não deixou de beijar-Me os pés. Não Me ungiste a cabeça com óleo, e ela ungiu-Me os pés com perfume. Por isso, digo-te Eu, que lhe são perdoados os seus muitos pecados, porque muito amou. Mas aquele a quem pouco se perdoa, pouco ama.»
Lucas 7:36-47
 
independentemente da beleza desta cena, ela implica um acto de submissão, em que Maria Madalena, serve Jesus Cristo, lavando-lhes os pés e enxugando-lhos com os seus cabelos, o que coloca Cristo numa posição de senhor. Representando a servidão uma forma de amar, em troca, Cristo perdoa a Maria Madalena os seus pecados.
Vendo as coisas assim, o próprio conto de D.H. Lawrence ganha outros contornos. Se o exercício do poder não se esgota, em ambas as partes, no próprio prazer desse exercício, haverá outras compensações. No caso de Lawrence, a compensação parece ser a própria vida, o direito a uma identidade, seja ela qual fôr. Por outro lado, ainda podemos encontrar uma terceira compensação para o exercício do poder: agredir ou ser agredido são, para respectivamente o senhor e o servo, a forma que existe de manter por perto o objecto de desejo, de alimentar não o corpo, mas uma fantasia. Não é de desprezar, porque a não-concretização do desejo sexual não é infrutífera: enquanto não se concretiza, permite imaginar as coisas mais prazerosas, e a própria fantasia proporcionará uma satisfação, apenas não a mais imediata.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Amor e Razão: Aproximações


 
A cultura popular tem frequentemente colocado em frentes opostas a razão e a emoção, dizendo mais ou menos que amor e razão são dissonantes e incompactíveis. Se na cultura popular esta ideia tem uma incidência muitíssimo acentuada, na cultura erudita também existem vários exemplos desta oposição.
Depois de uma viagem à Bélgica, a partir da qual comecei a procurar e a ler mais aprofundadamente alguns autores belgas contemporâneos e menos recentes, deparei-me com a obra intensíssima da enigmática Hadewijch de Antuérpia (Ou Hadewijch do Brabante.).
O nome de Hadewijch não será totalmente desconhecido para certos leitores portugueses, uma vez que esta mística flamenga do século XIII é uma das figuras presentes nos livros de Maria Gabriela Llansol. Àparte a presença em Llansol, Hadewijch é uma desconhecida na cultura portuguesa, existindo dela apenas algumas traduções de João Barrento no álbum 'Europa em Sobreimpressão: Llansol e as Dobras da História' (2011).
 
 
Editada já em 1980, existe a obra completa de Hadewijch, traduzida do médio-neerlandês para inglês por Columba Hart, que introduz também a edição, prefaciada por Paul Mommers, um dos principais estudiosos belgas a debruçar-se sobre a mística medieval flamenga, e também um dos editores da obra de Hadewijch na Bélgica. A colecção em que este livro está integrado é digna de referência. The Classics of Western Spirituality é uma colecção da Paulist Press americana, que edita traduções de vários textos religiosos principalmente europeus, muitos deles editados pela primeira vez em inglês. Além do alargado leque de autores e tradutores, esta colecção conta ainda com um bom cuidado gráfico, contendo ilustrações e cortinas feitas por artistas contemporâneos.
Sobre Hadewijch, pouco se sabe. Terá nascido no final do século XII e morrido ainda na primeira metade do século XIII. Foi uma das primeiras beguinas da Bélgica, vivendo num tempo em que ainda não existiam os beguinages que hoje conhecemos, as 'cidades da paz', mas sim na fase inicial do movimento, em que as beguinas viviam na casa daquela que tivesse uma casa maior, provavelmente também a mais rica.
Muitas mulheres religiosas da época, algumas das quais com passagem também por beguinages, tiveram direito a biografia. A de Hadewijch, ou não se escreveu, ou foi perdida. Os únicos dados existentes são aqueles que encontramos nos seus escritos: seria possivelmente de nascimento nobre e instruído, pois tinha domínio do latim e do francês, viveu muito provavelmente no Ducado do Brabante, pois os seus textos estão escritos numa variante brabantina do neerlandês-medieval (Uma língua de vários 'dialectos', muito oralizada, em que a mesma palavra pode ter várias grafias, pois é escrita a partir da fonética.), foi de facto uma das primeiras beguinas, tendo sido superiora da comunidade em que viveu e da qual foi banida. A sua obra é constituida por poemas, cartas e um conjunto de visões, textos na sua maioria escritos para as jovens beguinas que Hadewijch instruía na espiritualidade.
Como refere J.-B. Porion no seu 'Écrits Mystiques des Béguines', é pouco clara qual foi a razão para que surgisse o movimento beguinal. Mas, à época, é facto que vários religiosos demonstravam uma vontade de regressar às formas mais primordiais de religião e de comunidade e essa terá sido uma das contingências que, se não originou, pelo menos facilitou, o proliferar de movimentos de beguinas na Flandres, na hoje Holanda, no Sul da Alemanha (Particularmente às margens do Reno.) e no norte de França. Três nomes se destacam no que toca à cultura dos beguinages: Hadewijch, Mechtilde von Magdebourg e Margerite Porete. E os textos destas três mulheres revelam, de facto, uma tendência para repensar a religião e as formas de crer e Hadewijch seria vastamente referida pela geração de teólgos e místicos que se lhe seguiriam, particularmente Jan van Ruysbroek e Eckhart von Hoccheim, sendo portanto o seu nome indispensável para um estudo da mística renano-flamenga da Idade Média.
 
A nota que aqui deixo prender-se-á sobre uma ideia que encontramos em Hadewijch, sobre a relação entre razão e amor, bastante díspar daquela que, por norma encontramos.
Como acontece com a maioria dos teólogos cuevos, Hadewijch escreve sobre o Amor que, evidentemente, não tem uma orientação passional, mas sim sagrada. No entanto, não só pelas inúmeras referências à poesia trovadoresca e de cavalaria, como também pela orientação teológica de Hadewijch para a mística nupcial (Como explica também Porion.), este Amor sagrado não fica a dever nada à intensidade que hoje conhecemos essencialmente ao amor passional e, também por aí, se justifica a modernidade dos escritos de Hadewijch.
Sobre a relação entre Amor e razão, um dos textos mais conclusivos de Hadewijch é a Carta 4
 
(...) we err in very many things that men judge good, and that are really good; but reason errs in these things when men do not understand them properly or practice them; this is where reason fails. Then when reason is obscured, the will grows weak and powerless and feels an aversion to effort, because reason does not enlighten it.   (...)   To put it breafly, reason errs in fear, in hope, in charity, in a rule of life one wishes to keep, in tears, in the desire of devotion, in the bent for sweetness, in terror of God's threats, in distinction between beings, in receiving, in giving _and in many things we judge good, reason may err.
[pag.53]
 
Logo nestas duas ideias, Hadewijch enuncia os actos em que a razão pode falhar, mesmo quando praticados com as melhores intenções. Mas, mais importante do que isso, define a importânica da razão, sem a qual tudo é impraticável: a razão advém de um discernimento errado, mesmo quando não há a intenção de proceder mal. No entanto, quando o discernimento é errado, a vontade torna-se má e inactiva, pois não é iluminada pela razão; o que é o mesmo que dizer que a razão é, em Hadewijch, o motivo e o alento essencial do ser humano, sem a qual se desliza para as trevas.
 
(...)if reason fears God's greatness because of its littleness, and fails to stand up to his greatness, (...) and thinks that such a great Being is out of reach_ the result is that many people fail to stand up to the great Being.
(...) In hope many people err by hoping God has forgiven them all their sins. But if in truth their sins were fully forgiven, they would love God ans perform works of love.
(...) As for the gift of oneself, one errs greatly if he whishes to make it before its time, or lend himself to many alien things for which he is not destined or chosen by Love.
(...) and all the other things we obey that do not belong to perect love: Reason errs in all this.
[pags. 54-55]
 
No decorrer da carta, Hadewijch explica à(s) beguina(s) a quem se dirige onde pode a razão errar em cada um dos pontos que tinha enumerado no primeiro cjunto de fragmentos que aqui isolei. Cito apenas alguns, aqueles que directamente dizem respeito ao Amor, como se disse compreendido religiosamente mas que não será totalmente errado interpretar de outras formas, uma vez que o que muda é essencialmente a entidade amada, e não o sentimento. Como vemos, o medo de que o ser humano seja icapaz de igualar Deus, enquanto símbolo do Amor, é um erro da razão; no desinteresse por compensar o mal com trabalhos de amor, a razão erra e na dedicação a tudo o que não advenha do Amor, a razão erra.
O que Hadewijch parece advogar nesta sua Carta, onde se pressente uma familiaridade com a mística especulativa, é a de que o Amor é impraticável sem a razão. E assim começamos a contrariar a ideia de que Amor e razão são opostos: pelo contrário, têm uma relação intrínseca, de verdadeira co-dependência, pois sem a luz da razão, o amor é vivido nas trevas, alicerçado sobre erros e inépcias. Como explica Columa Hart, é visível, não só neste texto como noutros, que Hadewijch acreditava piamente que a razão era a única forma de garantir um mínimo de segurança ao percorrer o caminho do Amor (Que ela mesma tratará na Carta 15 e que Beatrijs van Nazareth, também ela educada por beguinas, analisará no seu tratado 'As Sete Formas de Amar', mais ou menos contemporâneo de Hadewijch.).
Aliás, no Poema em Estâncias 1 (Hadewijch tem dois tipos de poemas: os escritos em estâncias e um outro conjunto mais pequeno de cartas rimadas, de estrutura mais irregular, por norma com estrofes bastante longas.), Hadewijch aborda brevemente o tema da razão, depois de introduzir aquilo que será uma espécie de renascer para o Amor
 
God must give us a renewed mind
For nobler and freer love
[p.130]
 
estes versos sintetizam muito bem a ideia de que é a mente _lugar por excelência da razão_ que proporcionará um amor mais nobre e mais livre. Mais ainda, no primeiro verso lemos que é Deus _como já se disse, símbolo do Amor_ quem dará renovação à mente. Esta ideia parece levar-nos a uma espécie de círculo fechado, uma vez que Deus/Amor nos dará a razão, que usaremos para servir o Amor. No entanto, este círculo fechado é livre, mais livre, como o Amor só é quando iluminado pela razão. O valor da palavra 'novo' que será repetido várias vezes ao longo desta última estância do poema tem também um significado bastante específico, pois, como aponta Porion, é muito provável que esta 'novidade' se refira ao surgir das comunidades de beguinas, uma ordem nova, uma forma renovada de crença e de relação com Deus que, podemos concluir, Hadewijch desejaria mais livre e orientada pela razão. Sentimso ainda a mesma inclinação no Poema em Estâncias 7, quando Hadewijch escreve
 
But old souls, they of new wisdom,
Who newly give themselves away to Love
And spare themselves no new trouble_
These I call renewed and old.
[p.146]
 
retomando a ideia do novo e também da razão _aqui escrita como 'sabedoria'_, Hadewijch vai mais longe ao definir o movimento beguinal, pois além de chamar a atenção para essas duas características, refere-se às almas do movimento como sendo 'renovadas e antigas', o que confirma a vontade das primeiras beguinas de, ao afastarem-se das formas de religião cuevas, se renovarem aproximando-se das formas mais primordiais
 
It is a great pity we thus stray,
And that high wisdom remains hidden from us
Which entrusted to the masters
Who give lessons on true Love
(...)
But those who arrange their lives with truth in Love
Are then enlightned by clear reason.
[p.164]
 
é a própria Hadewijch, já no Poema em Estâncias 14 quem confirma a ideia do círculo fechado. A razão vinda de Deus é usada ao serviço do Amor, e o Amor, vivido com verdade, ilumina aquele que ama com a razão. E uma vez mais a rejeição das ordens vigentes da altura faz-se sentir neste poema, quando Hadewijch acusa os 'mestres' cuja função deveria ser ensinar o Amor de, em vez disso, o esconderem daqueles que o procuram, exaltando a poeta, então, aqueles que se separam dos mestres e procuram por si mesmos. Já na Carta 4 Hadewijch falava de um outro erro da razão
 
In desires for devotion, all souls err who are seeking anything other than God. For we must seek God and nothing else.
[p.54]
 
poderíamos argumentar, a favor de Hadewijch, que a razão pertence a cada um e que aceitar cegamente as opiniões de outrem é uma forma de nos pouparmos a nós mesmos ao trabalho de procurar a razão e, assim, chegar ao Amor. Assim, aquilo que fica implícito tanto no Poema 14 como na Carta 4 é que, tanto na procura do Amor como na procura da razão, o caminho é solitário, cada um deverá trilhá-lo por si mesmo, aceitando ajudas, mas não por preguiça ou por aceitação cega. Lemos ainda, no Poema em Estâncias 25
 
For every hour Desire begins anew
To cry: ''Alas, Love! Be all mine!''
Thus she awakens Reason, who says to Pleasure:
''Behold, you must first reach maturity!''
Alas! That Reason should refuse Pleasure
Cuts more than all other pains.
(...)
So Reason shows her the highest degree in Love
[pags. 197-198]
 
e no Poema em Estâncias 30
 
Reason said: ''If you are making a wish now_
It is a provocation of Love_
Reflect that you are still a human being!''
 
Then Reason did me an injury,
I thought it a feud,
That she took from me the attire
Love herself had given me.
I thought it a feud,
Yet Reason taught me to live the truth.
[p.214]
 
nestes dois fragmentos, especifica-se o papel orientador da Razão (Desta vez escrita nos originais com maiúscula.) em relação ao Amor. Será a Razão a mostrar o mais alto grau de Amor, tendo, por vezes, que abrandar ou deter as tentativas daquele que ama de chegar ao Amor, relembrando-o da sua condição humana _e, portanto, imperfeita_ e do caminho por vezes penoso que terá que percorrer para atingir a perfeição no Amor. A palavra maturidade surge aqui com bastante significado. Tal como Beatrjs van Nazareth, Hadewijch aborda a demanda do Amor como um trabalho de amadurecimento. No seu tratado, Beatrjs descreve sete estados do crescimento da alma que, vinda de uma condição imperfeita, se vai aproximando do Amor, até ser um com Ele (Que, aliás, é Ela em neerlandês, pois Minne é feminino.), tornando-se perfeita. Hadewijch aborda, no fundo, o mesmo crescimento nestes fragmentos, correspondendo o crescimento da Razão à maturação da alma daquele que persegue o Amor.
Mas onde talvez Hadewijch mais concretamente relaciona a Razão com a maturação e com todas as questões que a Razão deve tratar para assegurar o caminho do Amor será na sua Primeira Visão.
Vários místicos registaram as suas visões, resultantes de transes, no entanto, de várias perspectivas este tipo de textos, independentemente do seu valor literário, deixam algumas dúvidas aos leitores de hoje. Se na maioria dos casos poderá não haver razões para duvidar que efectivamente esses místicos tenham visto aquilo que descrevem, também sabemos que muitas vezes estas visões aconteciam durante períodos de doença (Caso de Hadewijch.) e também de situações de auto-punição física, o que explicaria certos delírios. Porion vai mais longe no estudo que precede a sua tradução para francês de poemas de Hadewijch e explica, não sem razão, que, hoje, poderá ser difícil distinguir aquilo que possam ser relatos daquilo que possam ser poemas em prosa em que o que se pretende não é descrever uma realidade, mas sim criar uma metáfora que ilustre determinada ideia.
A obra de Hadewijch compreende treze visões (Mais uma 'Lista dos Amantes Perfeitos', considerada geralmente um texto menor no conjunto desta escritora e excluído de várias edições, incluindo irónicamente a destas Obras Completas.), das quais a mais significativa será provavelmente a primeira, pelo que representa de súmula de todas as preocupações teológicas da sua autora. Um anjo conduz Hadewijch pelo Jardim das Virtudes Perfeitas, mostrando-lhe sete árvores, sendo que cada uma representa uma determinada virtude.
 
This tree was wisdom. The first lowest branch, which had the red hearts on its leaves, signified the fear of not being perfect and of forsaking perfect virtues. The second branch was the fear that persons do not show God many marks of homage, and that such a number go astray from the Truth, which is himself. The third branch was the fear that each person must die by the same death whereby our Beloved died, with wisdom to be perfect in each and every virtue in order to die of that death every hour, and to carry that cross, and to die on it each day, and to die with all those who go astray and die.
[p.265]
 
para que melhor se compreenda o significado desta passagem da primeira Visão, convirá talvez citar uma das ideias mais emblemáticas de Hadewijch (Que aliás Jan van Ruysbroek retomou.), deixada na Carta 6:
 
We all indeed wish to be God with God, but God knows there are few of us who wnat to live as men with his Humanity, or want to carry his cross with him(...)
[p.61]
 
esta será talvez uma das mais interessantes ideias de Hadewijch, a de que é fácil desejar a divindade, mas raro desejar sofrer por ela. No fragmento citado da primeira Visão, Hadewijch descreve a árvore da sabedoria como incluindo em si vários significados: o medo de não ser perfeito, o medo de nos afastarmos da Verdade e o medo de que a busca do Amor pela virtude e a sabedoria nos leve a sofrer ou mesmo a morrer como Cristo.
Contrapondo a estas ideias aquela outra expressa na Carta 6, percebemos no que consistirá essa sabedoria, essa Razão: a capacidade de efectivamente viver o Amor para chegarmos a ele, de sofrermos o que ele sofreu, de arriscar, acreditando que, no fim, atingiremos esse Amor que parecia tão impossível.

É possível que hoje olhemos os escritos de Hadewijch como documentos teológicos, como representação de uma ideia estritamente religiosa _o que não será totalmente errado, pois nesse sentido preciso foram escritos. Mas é preciso não esquecer que estes textos não deixam de ser literatura, do que a própria Hadewijch tinha consciência (E intenção.) pois é inegável que lhe encontramos todos os traços de uma verdadeira escritora. E, ao ser assim, os textos passama a abrir-se a várias outras leituras e aquilo que era religioso pode ser, para o leitor ateu, uma representação de um pensamento relativamente à procura do amor digamos terreno pois, como acima disse, o que muda de um para o outro não é o sentimento em questão, mas a entidade amanda. Desta forma, os textos estão longe de perder a sua fulgurância e, bem pelo contrário, o seu pendor especulativo faz-nos pensar e questionar, através de uma escrita escorreita, metafórica, complexa, mas verdadeiramente densa e pensante.

 
 
 
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COLLEDGE, E. (org. e trad.): Medieval Netherlands Religious Literature, London, ed. Sythoff, 1965
HADEWIJCH: The Complete Works (trad. Columba Hart), New York, ed. Paulist Press, col. The Classics of Western Spirityality, 1980
HADEWIJCH D'ANVERS: Écrits Mystiques des Béguines (trad. J.B. Porion), Paris, ed. Seuil, col. Points- Sagesses, 3a ed 2008