domingo, 30 de junho de 2013

Clarice Lispector: Um Sopro de Vida (Pulsações)

TESTAMENTO

Seria um exercício interessante procurar no último livro de vários escritores a marca do confronto com uma morte mais ou menos anunciada. Alguns dos livros mais fortes que já li, foram escritos quando os seus autores sentiam a aproximação da morte e da escrita fizeram campo de batalha derradeiro para enfrentar a sua chegada. Penso, por exemplo, em 'Entre Mim a Minha Morte Há Ainda um Copo de Crepúsculo' (2006) de Egito Gonçalves, cujos últimos poemas se encontram inclusivamente inacabados; em 'A Lume' (1989) de Luiza Neto Jorge, que recolhia inéditos e dispersos escritos alguns nos últimos tempos de vida e de saúde frágil da autora; no 'Diário do Último Ano' (1982) de Florbela Espanca que prenuncia claramente o suicídio. São alguns exemplos, apenas, de livros em que a chegada da morte ocupa um lugar de certa forma central, resultando afinal em textos de uma intensidade e de um poder extraordinários.


Dizer que em 'Um Sopro de Vida (Pulsações)' de Clarice Lispector não se sente esse confronto directo com a morte seria exagerado. A escrita dos fragmentos que compõem este livro começou antes da redação de 'A Hora da Estrela' (1977), último livro publicado em vida por Clarice, e terminou depois. Trata-se, portanto, do último escrito pela autora. Livro desprovido de uma narrativa ou, pelo menos, de uma intriga, como já acontecia com outros livros de Clarice, 'Pulsações' é um diálogo entre um escritor do sexo masculino e Ângela Pralini, a personagem que este se encontra a inventar. Estes diálogos não chegam a formar uma narrativa, um romance propriamente dito, são diálogos e, muitas vezes, monólogos que ora convergem ora divergem, que se expandem e multiplicam em torno de várias questões (A escrita, a vida, a morte, deus, o mundo, os objectos.), à imagem daquilo que já acontece noutros livros de Clarice Lispector. Se relembrarmos que 'A Paixão Segundo G.H.' (1961) era um longo tratado escrito a partir da morte de uma barata, facilmente reconheceremos a continuidade com este último livro. E, a uma leitura menos atenta, parece-nos que a proximidade da morte não fez com que Clarice escrevesse directamente sobre esse tema, nem de uma forma particularmente diferente.
Mas logo no início de 'Pulsações', lemos 

Eu escrevo como se fosse para salvar a vida de alguém, provavelmente a minha própria vida.
(p....)

e nesta frase está contida já inteira uma espécie de programa. O escritor vai dando algumas pistas que explicam este programa, e nelas se entende que a morte não tardará. Ângela Pralini, a derradeira personagem, não chega nunca a existir numa trama narrativa, ela é, no fundo, aquela que vai, na escrita, salvar a vida do escritor. Ângela é livre, ao ponto de por vezes soar superficial, é uma jovem com muito para viver, tenta escrever mas não consegue, dir-se-ia que anda perdida pelo mundo. No entanto, Ângela não está perdida, está à procura de se definir, à procura de começar, enquanto o escritor se prepara para terminar. No diálogo entre ambos, perpassa uma espécie de trasmissão, como se o escritor entregasse a Ângela a sua vida, para se salvar, no fundo. O confronto com a morte é, por isso, central em 'Pulsações'. O 'Sopro de Vida' que torna Ângela real (Explicado em epígrafe com uma citação bíblica.) funciona como uma espécie de testamento.
Mas Ângela não é, apesar de por vezes parecer, uma projecção do escritor. Ainda que ela surja, pelo menos num primeiro momento, para essa salvação perante a morte, Ângela ganha uma autonomia extrema, ao ponto de, em muitos momentos, quase a lermos como personagem tão real quanto o escritor: esperar-se-ia que ele tivesse, sobre ela, algum controlo; no entanto, esse controlo não existe, o escritor chega a odiar Ângela, sem, no entanto, conseguir desistir dela. É possível que Clarice explore, aqui, a sua própria arte de escrita: a invenção de um personagem, a autonomia posterior dessa personagem, que significa uma espécie de submissão do autor ao livro, que, por assim dizer, o ultrapassa. Por outro lado, a escrita parece, não raras vezes, representar o fio que liga à vida, e é, portanto, a vida que ocupa o lugar central de 'Pulsações'. E, portanto, nessa perda do controlo do escritor sobre Ângela, o que parece existir é uma espécie de batalha com a própria vida _ a escrita apenas reflecte essa batalha. Despido de esperança e sentindo a morte aproximar-se, o escritor deposita em Ângela a responsabilidade de lhe assumir a vida, mas Ângela não será, como ele esperaria, o seu reflexo, sequer o seu epígono. Esta independência entre os dois acaba por ser uma forma de aceitar a realidade da morte, pois a vida, mesmo que continuada por Ângela, não seria a vida do escritor, o seu sopro gerou efectivamente uma vida, imprevisível e autónoma, quase real. O que, apesar de tudo, significa um acto bem sucedido para o escritor, enquanto escritor.


Todo o livro parece construir-se sobre dualidades. Não só entre as personalidades de Ângela Pralini e do escritor, como entre a criação artística e a sua impredicabilidade, a proximidade da morte e a vontade de viver, a esperança e o desespero, a desistência e o prazer profundo de qualquer detalhe.
E é como se existisse em 'Pulsações' uma espécie de subtexto que é o da própria Clarice realmente enfrentando e quase desafiando a própria morte, e os diálogos de Ângela e do escritor parecem por vezes uma espécie de palimpsesto, que subtilmente deixa claro e nítido o texto original. E é nesse jogo entre texto e subtexto que 'Pulsações' redobra a sua intensidade. De facto, Clarice não parece muito diferente aqui, em relação a 'A Paixão Segundo G. H.' ou 'Água Viva' (1973). A intensidade deste livro é aquela que existe nos outros, mas a sua dimensão testamentária torna-se clara a certa altura e, ainda que no início a sua densidade seja assustadora e desconcertante, acaba por tornar-se uma leitura arrebatadora e desarmante.

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