sexta-feira, 21 de junho de 2013

[um fragmento]


Faz um dia muito bonito. Chove uma chuva muito fina, o céu está escuro e o mar revoltado. As almas esvoaçam no cemitério, os vampiros estão soltos, os morcegos encolhidos nas cavernas. Aconchego de mistério e terror. Se de repente o sol aparecesse eu daria um grito de pasmo e um mundo desabaria e nem daria tempo de todos fugirem da claridade. Os seres que se alimentam das trevas.
Só me interessa escrever quando eu me surpreendo com o que escrevo. Eu prescindo da realidade porque posso ter tudo através do pensamento.
A realidade não me surpreende. Mas não é verdade; de repente tenho uma tal fome de «coisa acontecer mesmo» que mordo num grito a realidade com os dentes dilacerantes. E depois suspiro sobre a presa cuja carne comi. E por muito tempo, de novo, prescindo da realidade real e me aconchego em viver da imaginação.

Clarice Lispector
Um Sopro de Vida (Pulsações)
1978
pintura de Júlio Pomar

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