segunda-feira, 26 de março de 2012

A Rosa Doente



A rosa que adoece
é um leito e um corpo.
Penetrou nela o verme
que em segredo a destrói.


É um verme invisível
um insecto da noite.
A vida destruída:
oculto obscuro amor.

William Blake
(trad. Gastão Cruz)
Doze Canções de Blake
1980, ed. O Oiro do Dia
desenho de William Blake

sábado, 24 de março de 2012

Canção para o dia de hoje


Tori Amos feat. Maynard James Keenan: Muhammed My Friend

terça-feira, 20 de março de 2012

Não o Sonho


Talvez sejas a breve
recordação de um sonho
de que alguém (talvez tu) acordou
(não o sonho, mas a recordação dele),
um sonho parado de que restam
apenas imagens desfeitas, pressentimentos.
Também eu não me lembro,
também eu estou preso nos meus sentidos
sem poder sair. Se pudesses ouvir,
aqui dentro, o barulho que fazem os meus sentidos,
animais acossados e perdidos
tacteando! Os meus sentidos expulsaram-me de mim,
desamarraram-me de mim e agora
só me lembro pelo lado de fora.

Manuel António Pina
Atropelamento e Fuga
2001, ed. Asa
desenho de Robbert van Wynendaele

segunda-feira, 19 de março de 2012

Canção para o dia de hoje


Lamb feat. Damien Rice: Back to Beginning (Da edição especial do álbum '5', 2011)

sexta-feira, 16 de março de 2012

quinta-feira, 15 de março de 2012

Hora Grave


Quem chora agora algures no mundo,
     sem motivo chora no mundo,
     chora por mim.


Quem ri agora algures na noite,
      sem motivo ri na noite,
      ri de mim.


Quem vagueia agora pelo mundo,
      sem motivo vagueia pelo mundo,
       vem até mim.


Quem morre agora algures no mundo,
       sem motivo morre no mundo:
       olha para mim.

Rainer Maria Rilke
(trad. Maria João Costa Pereira)
O Livro das Imagens
2005, ed. Relógio d'Água
fotografia de Slava Mogutin

quarta-feira, 14 de março de 2012

Maria Ondina Braga



13.1.1932- 14.3.2003

Hélia Correia: A Terceira Miséria

UMA POETA EM TEMPOS DE INDIGÊNCIA

Durante cerca de dez anos, Hélia Correia publicou poemas dispersamente por vários jornais e revistas, e ainda que, em 1981, a publicação de 'O Separar das Águas' tenha funcionado como uma escolha da autora pela prosa, talvez seja justo dizer que mesmo na sua escrita de ficcionista, Hélia não abandonou a poesia -se na poesia, mais do que na prosa, parecem inserir-se os seus livros. Poesia publicada também houve, ainda que rara: 'A Pequena Morte' (1986) publicado juntamente com 'Esse Eterno Canto' de Jaime Rocha, e 'Apodera-te de Mim' (2002).


As raízes da formação helenística de Hélia Correia eram nítidas em 'Apodera-te de Mim', e o seu livro mais recente, 'A Terceira Miséria', acabado de lançar, retoma a sombra da Grécia. No entanto, tanto à partida como depois da leitura, 'A Terceira Miséria' parece ocupar um lugar muito específico na poesia que conhecemos de Hélia. Reparemos que os dois livros prévios são edições discretas e de tiragem reduzida (Ainda que de um apurado cuidado gráfico, típico das edições da Black Sun.) ao passo que agora, pela primeira vez, Hélia publica poesia numa edição de maior visibilidade, da Relógio d'Água, que talvez permita a este livro uma difusão maior do que a dos outros.
Para entender uma possível razão para isto, só mesmo lendo o livro. 
Vista de determinado ponto de vista, toda a obra de arte tem uma dimensão política. 'A Terceira Miséria' é um poema só, dividido em 33 fragmentos, que se debruça sobre a Grécia -e não só- de forma a dar-nos uma dimensão de que mundo é este em que actualmente vivemos. Se se torna quase chavão dizer que o desconhecimento do passado é uma condenação a repeti-lo, este poema tem a eficácia de mostrar-nos que esse chavão não deixa de traduzir uma realidade. No centro do poema fulgura a plenitude clássica da Grécia no seu apogeu cultural. Esse centro fornece-nos as linhas mestras para um desenho da actualidade não necessariamente grega, mas europeia

Sofremos, sim, de idêntica indigência
Da ruína da Grécia.
(p.13)

e quem sofre somos

Nós, os ateus, nós, os monoteístas,
Nós, os que reduzimos a beleza
A pequenas tarefas, nós, os pobres
Adornados, os pobres confortáveis,
Os que a si mesmos se vigarizam
(p.13)

o que é ainda uma admirável e natural descrição de nós- nós os europeus em crise, sujeitos ao monopólio económico, à corrupção e à perda da independência, nós, sobretudo, que nos perdemos do passado enquanto herança cultural e, daí, política.
A ideia de que é, no fundo, a esta questão que 'A Terceira Miséria' se refere fica clara logo no primeiro fragmento, onde o eco de Hölderlin origina uma espécie de constatação a um tempo angustiada e irónica

Para quê, perguntou ele, para que servem
Os poetas em tempo de indigência?
(p.7)

precisamente esta será a interrogação que origina o poema, uma vez que todo ele é, mais directamente por vezes, outras menos, uma resposta a estes primeiros dois versos

                                Às suas mãos
Atenas viu os quartos, as cozinhas,
A roupa de seus filhos devassados,
As passadas de gelo atravessando,
Cortando os corredores e os corações.
Outra vez conquistada, olhando ainda,
No pequeno intervalo da servidão,
Pela janela, para o fim da rua,
Onde nada se avista. Pois, tal como
Os sentidos do corpo se compensam,
Tomando, como tomam os guerreiros,
O lugar do caído, assim também
Os sentidos da alma se engrandecem
E alcançam o que tanto querem ver:
(p.27)

lemos no fragmento 21. Momentos como este não faltam ao longo de todo o poema, e são bastante importantes, no sentido em que nos mostram que este poema não intenta contrapor um tempo de indigência com um tempo de prosperidade. Antes 'A Terceira Miséria' contrapõe dois tempos de indigência em que a oposição existe na forma como essa indigência de resolve. Essa resolução é aquela que encontramos na explicação das três misérias:

                                           Sim, foi essa
A primeira miséria, a deserção
Dos deuses. A segunda, a sua morte,
Já na morte de Pã anunciada
Pelo lamento dos bosques, o clamor
Lutuoso das ilhas do Egeu.
(p.24)

A terceira miséria é esta, a de hoje.
A de quem já não ouve nem pergunta.
A de quem não recorda. E, ao contrário
Do orgulhoso Péricles, se torna
Num entre os mais, num entre os que se entregam,
Nos que vão misturar-se como um líquido
Num líquido maior, perdida a forma,
Desfeita em pó a estátua.
  
(p.29)

Contrapor estes dois fragmentos é encontrar uma das mais interessantes características do poema. Se repararmos bem, à superfície, este contraponto cruza, além de vários tempos, vários universos, sendo que as primeiras misérias se desenrolam no plano da mitologia, ao passo que a terceira miséria pertence a um plano bem concreto e realista. No entanto, um outro entendimento desta separação de universos pode dar-nos outra possível pista para a leitura de 'A Terceira Miséria': a mitologia era uma parte crucial da cultura grega, e ela representa uma forma de viver, uma forma de olhar o real, forma essa que, no tempo desta terceira miséria, já se perdeu. Se para os gregos os deuses eram uma forma de olhar e resolver a realidade, este tempo com que estamos a lidar, é um tempo em que os deuses, naquele sentido, se perderam, o que pode ser uma maneira de reduzir[mos] a beleza a pequenas tarefas, como se lia no fragmento 7.
No final do livro, encontramos uma Dívida confessada, onde Hélia assume os ecos que neste poema se fazem sentir, de Maria Gabriela Llansol, Hölderlin, Nietzsche, Ésquilo, Glenway Wescott, Plutarco, Tucídides e de Lord Byron. Este último, Byron, é citado pelo seu último poema, On This Day I Complete My Thirty-Sixth Year e onde o chamamento da Grécia que lhe marcou a vida e a escrita se faz sentir. A sua presença em 'A Terceira Miséria' é, de certa forma, das mais significativas. Este poema é escrito no século XIX, já longe da Antiguidade Clássica, quando a Grécia era já um país entre vários da Europa. No entanto, é Byron, poeta, quem diz que a Grécia está desperta. Esse mesmo sentimento de que, sob a Grécia de hoje, que se encontra numa situação semelhante ou pior que a de Portugal e, já agora, do resto da Europa, existe ainda uma possibilidade de recuperar a intensa cultura

«Que o meu corpo não seja», escreveu ele,
«Levado, entregue a túmulo inglês.»
Mas foi. Que pode um voto, que podia
Um último poema, dito a custo,
Por quem se ergueu do leito nessa casa
Que o fogo em breve ia destruir,
O que pode o desejo contra a ordem?
Que segurou nos braços essa Grécia
A quem ele deu tudo, quando as urnas,
A do corpo e a das vísceras embarcaram?
(p.35)

lemos ainda no encalço de Byron. A importância da presença deste poeta no poema de Hélia Correia é, como acima disse, bastante, a meu ver, e por isto: primeiro, porque Byron, como se disse, escreve o seu último poema já depois da Antiguidade Clássica e segundo, e bastante mais importante, porque a referência a Byron, que surge a partir do fragmento 27 (Sendo que o poema são 33 fragmentos.), quase no final,. como que encaminhando-nos discretamente para a resposta à pergunta principal deste 'A Terceira Miséria', da necessidade de poetas em tempos de indigência

Para onde olharemos? Para quem?
Certo é que Atenas se mantém oculta
E de algum modo intacta, por debaixo
Do alcatrão, do ferro retorcido.
(p.36)

E esta permanência, que Byron viu no seu último poema, e que Hélia explora neste seu, é talvez a única e grande utilidade dos poetas em tempo de indigência: a de ver e ressuscitar essa Atenas simbólica que existe sobre a actual, é a de recuperar toda uma carga cultural que está perto de se perder completamente, de não deixar esquecer aquele que foi noutros tempos o grande caminho para vencer a adversidade e o caos. A terceira miséria, onde culminam a primeira e a segunda, é, no fundo, uma miséria a que só os poetas conseguem apontar uma saída, como se a sua função fosse não deixar o tempo perder-se do tempo.
Mas mais do que esta mensagem que fica patente em 'A Terceira Miséria', interessa ler o poema com atenção e apreciá-lo em toda a sua intensidade, que excede a própria mensagem, e nos deixa um testemunho potente e fulgurante que, mesmo que se situe no tempo actual, é um testemunho sobre toda uma cronologia que começa na Antiguidade Clássica e termina hoje, escrito com uma força tão acutilante que nos chega a dar a impressão que Hélia Correia pudesse ter atravessado efectivamente todo este tempo.
É difícil falar deste livro no contexto da poesia de Hélia Correia, uma vez que dimensão publicada desta é reduzida, mas 'A Terceira Miséria' parece de alguma forma retormar 'Apodera-te de Mim' que, como acima se disse, procurava já a herança grega. A linguagem de Hélia é aqui mais lapidar e directa, sem por isso perder a sua subtileza, a sua tensão e a sua incandescência que oscila entre a beleza extrema e um realismo quase grotesco, que no prazer exacerbado dos sentidos faz fulgurar o miserabilismo que também passa por este poema. Além disso, talvez mais do que os outros livros, este livro marca um diálogo aberto e rico com várias figuras do pensamento e da literatura. Esse diálogo acaba por intensificar a relação que este poema cria com o tempo, no sentido em que, recuperando o pensamento dessas figuras, Hélia recupera também aquilo que, no tempo delas, era comum a este tempo, mostrando-nos que, no fundo, não se trata dessas figuras estarem à frente do seu tempo, mas sim do facto desse tempo ser, em muito, igual ao nosso, senão o mesmo que o nosso.

No resto, este poema vai de encontro àquilo a que Hélia Correia nos habituou nos poemas que dela conhecemos, mas também na sua prosa que, agora fica provado por completo, é profundamente poética: uma imagética fortíssima, ligada muitas vezes a situações de violência extrema, numa certa tendência para o caos, imagética essa associada a um outro lado analítico e mais ligado à dimensão psicológica e a um certo contexto cultural das imagens já dadas e que, no caso deste poema, são essenciais para ele, senão a própria motivação dele.
Se este livro servir, como para mim se justifica pensar, como uma forma de marcar uma posição e uma opinião, então ele é certamente uma das opiniões mais informadas, sensíveis e inteligentes sobre este tempo assustador em que vivemos, e não deixa de ser uma irónica resposta para a grande pergunta deste poema, que uma opinião desta natureza venha de uma poeta. Mas talvez uma opinião assim só uma ou um poeta a pudesse dar. E por isso, valeu a pena que deste poema se fizesse uma tiragem mais generosa e mais difundida, por mais que graficamente menos interessante. E claro, vale sempre a pena que se dêem a conhecer poemas de uma poeta, ela sim, verdadeiramente obscura -no sentido em que quase não temos acesso aos seus poemas- poemas esses que só podem deslumbrar-nos, tanto pela sua violência como pela força da sua beleza. O pretexto pode ser o pior, mas 'A Terceira Miséria' é um grande poema e eu só tenho a lamentar que o estrondo que este poema é não cause um estrondo em quem mais precisava dele.

terça-feira, 13 de março de 2012

Canção para o dia de hoje


Russian Circles: Carpe (Do álbum 'Enter', 2006)

domingo, 11 de março de 2012

20 de Março de 1977, domingo


Há muito tempo que não falo a Hadewijch, mas ela está sempre presente diante da minha boca.
O som da água corre abundantemente. A que filho te darás neste momento? Reúno as recordações mais antigas, as vagas e as precisas, sua silhueta se recorta no ponto mais íntimo da casa. Müntzer dorme, e recolhemos nosso espírito no que dizemos,
e no ciciar breve que não nos abandona. Pergunto-te o que não sei:
_Tinha-te dado uma haste metálica, igual a uma que comprara para mim. Com uma flor na ponta.
_Impressionou-me o sentido do presente. Julguei que desejavas que eu morresse.
_Como pudeste pensar...

Maria Gabriela Llansol
Um Arco Singular, Livro de Horas II
2010, ed. Assírio e Alvim
pormenor de pintura de Rogier van der Weyden

sábado, 10 de março de 2012

On This Day I Complete My Thirty-Sixth Year



'Tis time the heart should be unmoved,
Since others it hath ceased to move:
Yet, though I cannot be beloved,
Still let me love!
 
My days are in the yellow leaf;
The flowers and fruits of love are gone;
The worm, the canker, and the grief
Are mine alone!
 
The fire that on my bosom preys
Is lone as some volcanic isle;
No torch is kindled at its blaze--
A funeral pile.
 
The hope, the fear, the jealous care,
The exalted portion of the pain
And power of love, I cannot share,
But wear the chain.
 
But 'tis not thus--and 'tis not here--
Such thoughts should shake my soul nor now,
Where glory decks the hero's bier,
Or binds his brow.
 
The sword, the banner, and the field,
Glory and Greece, around me see!
The Spartan, borne upon his shield,
Was not more free.
 
Awake! (not Greece--she is awake!)
Awake, my spirit! Think through whom
Thy life-blood tracks its parent lake,
And then strike home!
 
Tread those reviving passions down,
Unworthy manhood!--unto thee
Indifferent should the smile or frown
Of beauty be.
 
If thou regrett'st thy youth, why live?
The land of honourable death
Is here:--up to the field, and give
Away thy breath!
 
Seek out--less often sought than found--
A soldier's grave, for thee the best;
Then look around, and choose thy ground,
And take thy rest.

George Gordon (Lord) Byron
The Works of Lord Byron
1832, John Murray ed.
pintura de Caspar David Friedrich

quinta-feira, 8 de março de 2012

Canção para o dia de hoje


Nine Inch Nails: Hurt (Do álbum 'The Downward Spiral', 1994)

terça-feira, 6 de março de 2012

Amigo de Intelectuais


O sr. Francisco, dono do mini-mercado e do snack-bar que ficam de fronte da casa do U., disse-me que "era uma vergonha que, sendo eu amigo de intelectuais, tivesse um tão mau comportamento" (Referia-se ao U., que é seu cliente;........ "Mas sr. Francisco" respondi-lhe eu, à maneira de Júlio Dinis, "o sr. disse: os intelectuais são eles; eu sou apenas seu amigo.
Como posso comportar-me tão bem?"

Sebastião Alba
Ventos da Minha Alma
2006, ed. Quasi
desenho de Isabel de Sá

Sou Fujimoto: House O


Actualmente, a Arquitectura Japonesa contemporânea é apreciada e estudada um pouco por todo o mundo, particularmente através da obras de Kenzo Tange, Tadao Ando, Kazuyo Sejima, Ryue Nishizawa ou Sou Fujimoto, alguns dos quais inclusivamente laureados com o Prémio Pritzker. Mas será talvez justo dizer que o grande impulsionador da Arquitectura contemporânea japonesa terá sido o Terramoto de Hanshin-Awaki em 1995. A partir dele, coube aos Arquitectos trabalhar sobre determinadas necessidades sociais, que afectavam directamente a construção, e que, depois do terramoto, ficavam em aberto. É a partir daqui que se retomam alguns ideais modernistas, ligados à simplicidade, à funcionalidade, ao despojamento e a uma forte sensibilidade cultural, acrescidas da vontade dos arquitectos de pensar ou repensar as questões da habitação e do próprio conceito de Arquitectura.
Sou Fujimoto tem uma obra fortemente alicerçada sobre a vontade de pensar a habitação e a construção, como, aliás, percebemos sem dificuldades pela leitura de ''Primitive Future'', o ensaio escrito pelo próprio e que melhor aborda e analisa esta obra. Questões como a noção de público e privado, da escala, de uma relação do novo com o tradicional e do moderno com o ancestral, e ainda das possibilidades abertas pelas noções mais básicas de habitação têm sido das mais decisivas para o percurso de Sou Fujimoto, e também das que têm feito desse percurso um bastante peculiar mesmo no contexto da nova Arquitectura japonesa.


Um dos vários exemplos do cariz reflexivo e insólito do trabalho de Sou Fujimoto é a Casa O. A encomenda pedia uma casa de fim-de-semana para um casal, em Tateyama, na costa sudeste do Japão, a duas horas de Tóquio. O terreno é em frente do mar, numa formação rochosa.
Vista em planta, a solução criada por Fugimoto para esta proposta, parece ser construída através da recriação dos galhos de uma árvore, sendo vivida como um único espaço, contínuo, que se divide sem que essas divisões sejam marcadas de forma rígida ou abrupta, ou seja, em detrimento da fluidez e liberdade do espaço, Fugimoto abdica de paredes e portas no interior. As separações necessárias para a criação dos vários espaços exigidos por uma casa são então conseguidos através da própria morfologia do projecto, com as suas reentrâncias, esquinas e ramificações. A propósito desta casa, Fujimoto fala de uma 'Arquitectura de distâncias'. Este conceito torna-se visível uma vez que observemos mais atentamente a casa, e percebamos que, através da utilização do betão, por um lado, e do vidro, por outro, ao percorrer a casa somos levados a diferentes relações com o espaço exterior, como se, de acordo com os diferentes pontos da casa, dentro do mesmo espaço pudéssemos estar ora perto ora longe dos espaços que a rodeiam. Por isso nos parece efectivamente natural que o arquitecto diga que 'Criar Arquitectura não é mais que criar várias distâncias'.




O processo criativo atravessou várias fases até chegar á sua versão final, mas é também certo que a estratégia pensada por Fujimoto para a Casa O parece ter estado definida desde a primeira ideia conhecida, em que um só segmento rectangular é dobrado e torcido, de maneira a suscitar já uma variedade de espaços e já organizados de forma fluida. A ideia vai-se tornando mais complexa e mais ramificada, o que nos mostra a vontade de Fujimoto de atender às contingências do terreno. Assim, manipulando mais atentamente a forma original, o arquitecto consegue criar momentos de intimidade/ privacidade, e outros em que o habitante pode criar um contacto mais intenso com o Oceano Pacífico ou com as formações rochosas sobre as quais a casa está construída. Aliás, o terreno foi também decisivo para várias das opções de Fujimoto para a Casa O, uma vez que outra das suas preocupações foi a da integração da casa com esse terreno. Assim, sobre a formação rochosa, o que Fujimoto implanta é uma formação monolítica irregular, em que um ponto de entrada não é claro. As paredes de betão serão lisas e polidas no interior, mas no exterior mantém uma textura rugosa e quase tosca, precisamente no sentido de minimizar a diferença entre o betão e as rochas. Mas uma vez dentro da casa, os grandes painéis de vidro dão sobre o mar, funcionando como uma explosão, e, dada a colocação destes painéis no esquema da casa, encontram-se várias vistas do mesmo mar, indo assim a casa de encontro à ideia de Fujimoto de 'fazer uma casa com vários oceanos'.






No fundo, muitos dos princípios teóricos que têm definido o percurso de Sou Fujimoto são evidentes na estratégia e na concepção da Casa O. A sua preocupação com a ancestralidade, ligada à caverna ou à gruta, ajuda-nos a compreender a disposição dos materiais na casa; a alusão aos galhos das árvores reforça a relação que este arquitecto tanto tem explorado com a Natureza; e o tratamento dessa ideia representa mais uma hipótese para as novas abordagens da geometria que Fujimoto já vem operando em muitos dos seus projectos.
Mas, acima de tudo, a Casa O mostra-nos que como é, de facto, construir de uma forma absolutamente moderna recorrendo apenas aos conceitos mais primários, abrindo-se, assim, caminho para esse 'futuro primitivo' que Fujimoto tem vindo a desenvolver.






BIBLIOGRAFIA
''Parallel Nippon – Arquitetura Contemporânea Japonesa (1996-2006)'' (Catálogo da exposição), São Paulo, Dezembro de 2010
El Croquis, nº 151, 'Sou Fujimoto'
C+A Magazine, nº 12, 'Sou Fujomoto: House O'
Fujimoto, Sou: Primitive Future, 2008, Inax Publishing

segunda-feira, 5 de março de 2012

Promises Like Pie-Crust



Promise me no promises, 
So will I not promise you: 
Keep we both our liberties, 
Never false and never true: 
Let us hold the die uncast, 
Free to come as free to go: 
For I cannot know your past, 
And of mine what can you know? 

You, so warm, may once have been 
Warmer towards another one: 
I, so cold, may once have seen 
Sunlight, once have felt the sun: 
Who shall show us if it was 
Thus indeed in time of old? 
Fades the image from the glass, 
And the fortune is not told. 

If you promised, you might grieve 
For lost liberty again: 
If I promised, I believe 
I should fret to break the chain. 
Let us be the friends we were, 
Nothing more but nothing less: 
Many thrive on frugal fare 
Who would perish of excess.



Christina Rossetti
Poetical Works
1904, ed. MacMillan

fotografia de Arthur Tress

domingo, 4 de março de 2012

Não posso esquecer aquele dia

A Maria Keil



Não, eu não posso esquecer aquele dia em que julguei que por uma moeda a Primavera seria toda minha.

Ia por um caminho onde a luz era clara, o ar puro, frescos os tons dos verdes: onde os aromas das mimosas e violetas se confundiam na sua doçura. Onde sobre o ribeirinho de água límpida havia a graça duma estreita ponte. Onde se não ouvia mais do que o canto dos pássaros.

Sonhava com a beleza da Primavera, respirava fundo e sentia-me feliz.

Mas de súbito o meu olhar esbarrou nuns olhos grandes e tristes; olhos que eram dum rosto miúdo e pálido, dum corpo magro doente. E o olhar fixou-se num vestidinho roto, numas mãos pequenas e infantis.

Os meus sonhos foram interrompidos. Irritada, porque aquilo cruelmente me acordou, pus uma moedas nessas mãos e bradei: «Vai com Deus!»

O corpo magro, o rosto miúdo e pálido desapareceram da paisagem primaveril.

A luz era clara, frescos os tons verdes; a água do ribeirinho, límpida. E só se ouvia o canto dos pássaros. Nada disso porém me fazia já sonhar, não bastava para eu me sentir feliz. Atrás das mimosas doiradas, das  violetas azuis, havia agora milhões de rostos miúdos e olhos tristes; torciam-se numa dor sem fim milhões de mãos pequenas e infantis.

Enganei-me quando julguei que por uma moeda a Primavera seria toda minha.

Ilse Losa
Grades Brancas
1951, ed. Centro Bibliográfico de Lisboa
desenho de Maria Keil 


Mísia e Vasco Graça Moura


O Mês de Dezembro IV




os namorados mortos não sabiam
e não queriam morrer, nunca ninguém
em verdade o quis já, mas acontece
que quase sempre morte e a amor se tocam


dos namorados mortos não se diga
que já não têm destino nem são livres
sequer de os esquecermos mesmo quando
se lhes apaga o rosto o sítio o nome


os namorados mortos não são fáceis
tu, por exemplo, evitas enredar-te
com o que sabes deles, mas que sabes
além de alguma história ou da aparência?

Vasco Graça Moura
O Mês de Dezembro e Outros Poemas
1977, ed. Inova
pintura de Mário Botas

sábado, 3 de março de 2012

Canção para o dia de hoje


Mastodon: The Czar (I: Usurper, II: Escape, III: Martyr, IV: Spiral) (Do álbum 'Crack the Skye', 2009)

sexta-feira, 2 de março de 2012

A Terceira Miséria, 23



A terceira miséria é esta, a de hoje.
A de quem já não ouve nem pergunta.
A de quem não recorda. E, ao contrário
Do orgulhoso Péricles, se torna
Num entre os mais, num entre os que se entregam,
Nos que vão misturar-se como um líquido
Num líquido maior, perdida a forma,
Desfeita em pó a estátua.



Hélia Correia
A Terceira Miséria
2012, ed. Relógio d'Água
pintura de Frans Snijders

quinta-feira, 1 de março de 2012

Mísia em Castelo Branco



Desde a morte de Amália Rodrigues que o Fado passou a estar na moda. O estatuto de Património Imaterial da Humanidade é um pouco o culminar desse surto de popularidade de que, durante muitos e muitos anos, o Fado careceu. A nova geração de fadistas traz-nos boas vozes, traz-nos algumas interessantes propostas. No entanto, em 1990, Mísia lança o seu primeiro álbum, homónimo, um álbum de Fado. A escolha era arriscada, e a invulgaridade de Mísia caiu mal a muita gente. Felizmente que as críticas negativas, aliás, reaccionárias, que cedo se fizeram ouvir, não foram suficientes nem para que ela parasse nem para que sequer se inibisse. Pelo contrário, o projecto de Mísia foi-se tornando cada vez mais complexo, mais intelectualmente elaborado. E, proporcionalmente, cresceu a incompreensão portuguesa a um projecto que outros souberam acolher com a devida atenção e a devida admiração.
Essa incompreensão foi muito visível no Sábado passado, 25, no Cine-Teatro de Castelo Branco. Pela primeira vez em muitos anos, Mísia faz em Portugal uma pequena digressão, apresentando um dos seus trabalhos mais ricos e mais belos, o álbum 'Senhora da Noite', lançado no final do ano passado. É recebida por uma plateia apenas meia-cheia e que parecia ter sérias dificuldades em aplaudir com o mínimo de entusiasmo. Sinceramente, eu não podia ter ficado mais desgostoso. Felizmente, Mísia não se deixou abalar e deu um grande concerto realmente.
Entrou na sala com Senhora da Noite, acompanhada de guitarra portuguesa, viola de fado, violino e acordeão. Ao longo da noite, Mísia foi bastante comunicativa, explicando a génese deste seu mais recente álbum e falando um pouco das autoras cantadas ao longo do concerto.
Assim em Ulissipo passámos por Rosa Lobato de Faria, a poeta, escritora e actriz recentemente falecida e a quem o álbum é dedicado, mas ainda pela também fadista Aldina Duarte em Lua Mãe das Noites, por Adriana Calcanhotto que, ao que contou Mísia, venceu finalmente o medo de escrever para Fado e deu a Mísia Que o Meu Coração Se Cansou. Em Que Silêncio é Esta Voz, Mísia cantou brilhantemente versos de Natália Correia, mas nem sempre as quadras que estão na versão de estúdio, criando assim um novo poema, que, mesmo sendo novo, continuava a adequar-se perfeitamente a todo o contexto em que é cantado. Também de Agustina Bessa-Luís se falou, aquando de Garras dos Sentidos II, que, agora fica provado, continua a resistir como grande canção ao ser cantado sobre o Fado Corrido, em vez do Fado Menor, onde era cantado na sua primeira versão. De facto, este é um momento isolado na obra de Agustina que, além de não ter mais nenhum poema (Pelo menos que seja conhecido.) é famosa pelas suas opiniões mais ou menos controversas quanto a poesia. O seu poema é belíssimo e Mísia conseguiu, mais uma vez, entregá-no-lo prodigiosamente.
Seguiu-se uma guitarrada, que manteve, mesmo assim, o acordeão e o violino, criando um momento realmente intenso. Mísia voltou depois, com Simplesmente, de Amélia Muge, um dos momentos mais serenos do álbum, que ao vivo ganhou outra genica, que também lhe assentou bem.
Depois disto foi tempo de conhecermos outra senhora da noite muito concreta, a prostituta de que fala a Sombra, da actriz e letrista Manuela de Freitas. Um dos momentos mais arriscados da noite seria o seguinte, a Tarde Longa, cujo impressionante poema de Lídia Jorge é cantado, no álbum, acompanhado de piano, instrumento que não existiria no concerto. Mísia interpretou-o com os quatro músicos, e a diferença instrumental fez-se sentir, sem, no entanto, destruir a beleza da versão de estúdio e, bem pelo contrário, criando uma espécie de variação muitíssimo forte do original. O poema confirmou aí a sua fulgurância e Mísia brilhou verdadeiramente.
O primeiro regresso ao passado deu-se a seguir, quando Mísia recuperou, do álbum 'Ritual' (2000) a letra que para ele havia escrito, Cor de Lua. Foi uma escolha muitíssimo interessante, uma vez que esta canção é das mais dramáticas e mais intensas de todo o percurso de Mísia, e entrou no espírito de 'Senhora da Noite' com toda a perfeição. Mais ainda, o facto de, a seguir, termos ouvido O Manto da Rainha, também escrito por Mísia, veio mostrar-nos uma certa unidade que denuncia um interessante universo que encontramos em ambas as letras que conhecemos escritas pela fadista.
A canção que abre o álbum, Fado das Violetas, neste concerto chegou quase no final. É um dos momentos mais intensos de todo o reportório de Mísia, pelo que não deverá ter sido surpresa para quem o conheça que este tenha também sido um dos momentos mais intensos de todo o concerto. De facto, os versos de Florbela Espanca são exigentes, e, cantando-os sobre o Fado Hilário, Mísia consegue conferir-lhes toda a emotividade extrema e quase excessiva que eles exigem. Um fado assim talvez só mesmo Mísia o pudesse pensar e cantar, pois ele exige aquilo que precisamente Mísia tem e poucos mais têm: a capacidade de cantar com o corpo todo.
A terminar, a Raposódia Amália, construída com várias quadras escritas por Amália Rodrigues, que teria resultado melhor ao vivo se o público soubesse aderir -o que não foi o caso.
Profissional, claro, Mísia acabou por regressar para cantar mais duas canções, duas que podemos considerar clássicos do seu reportório. Primeiro, Formiga, outro poema de Rosa Lobato de Faria que, ficámos a saber, nos conta metaforicamente a história dos primeiros e dificultuosos anos de carreira da cantora. E, a terminar, Lágrima, mais um poema de Amália Rodrigues, e que Mísia gravara duas vezes: no álbum 'Fado' (1993) e em 'Ritual'. Sendo uma das canções mais interessantes de Amália, Mísia soube dar-lhe nova roupagem e torná-la sua e foi um final muito digno para um espectáculo brutal.
Se neste concerto houve aspectos negativos, eu só vi um: que Mísia não tenha voltado com mais frequência aos álbuns passados. Os regressos foram essencialmente a 'Ritual', mas a verdade é que seria possível ir buscar outros momentos, uma vez que Mísia desde sempre teve mulheres a escrever para ela e, de álbum em álbum, encontramos canções que teriam feito todo o sentido para esta 'Senhora da Noite'.
Em tudo o resto, Mísia brilhou, como esperaria qualquer um que lhe conheça o percurso. Pelo menos para mim, não ficam dúvidas de que Mísia, por mais que a ignorem, continua a ser a maior e a melhor. Take that Portugal!!!