A Maria Keil
Não, eu não posso esquecer aquele dia em que julguei que por uma moeda a Primavera seria toda minha.
Ia por um caminho onde a luz era clara, o ar puro, frescos os tons dos verdes: onde os aromas das mimosas e violetas se confundiam na sua doçura. Onde sobre o ribeirinho de água límpida havia a graça duma estreita ponte. Onde se não ouvia mais do que o canto dos pássaros.
Sonhava com a beleza da Primavera, respirava fundo e sentia-me feliz.
Mas de súbito o meu olhar esbarrou nuns olhos grandes e tristes; olhos que eram dum rosto miúdo e pálido, dum corpo magro doente. E o olhar fixou-se num vestidinho roto, numas mãos pequenas e infantis.
Os meus sonhos foram interrompidos. Irritada, porque aquilo cruelmente me acordou, pus uma moedas nessas mãos e bradei: «Vai com Deus!»
O corpo magro, o rosto miúdo e pálido desapareceram da paisagem primaveril.
A luz era clara, frescos os tons verdes; a água do ribeirinho, límpida. E só se ouvia o canto dos pássaros. Nada disso porém me fazia já sonhar, não bastava para eu me sentir feliz. Atrás das mimosas doiradas, das violetas azuis, havia agora milhões de rostos miúdos e olhos tristes; torciam-se numa dor sem fim milhões de mãos pequenas e infantis.
Enganei-me quando julguei que por uma moeda a Primavera seria toda minha.
Ilse Losa
Grades Brancas
1951, ed. Centro Bibliográfico de Lisboa
desenho de Maria Keil
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