sábado, 17 de novembro de 2012

Agustina tem destas coisas... (33)

«(...) No Mundo, passo por todos, vendo alguns; na vida esqueço-me de quase todos, esquecendo-me de mim. Quase tudo me é indiferente.»
Há nesta carta o característico tom provocador de Florbela. Dirige-se a uma presa, tem que paralisá-la pelo espanto, pela admiração e até pelo desgosto que lhe causar. Mas não deixa de ser certo o que diz.





de 'Florbela Espanca' (1978)

Pas Comme Il Faut

Sobre 'Houselife', o documentário sobre a casa de Bordeaux de Rem Koolhaas



Na mitologia grega, Kronus é o deus que que devora os seus filhos logo que estes nascem, mostrando metaforicamente o quão breve é a vida de uma pessoa na sucessão do Tempo. Outro dos efeitos do tempo, que fica excluído do mito grego, mas que é visível em qualquer estudo de História, é o de operar alterações significativas em certas questões que, uma vez alterado o contexto, encontram significações totalmente diferentes.

Em Mies Van Der Rohe, a depuração a nível de meios, de forma e de materiais, não prejudicava a eficácia das estratégias encontradas para resolver os problemas arquitectónicos implicados na grande maioria da obra. Para este arquitecto, que definia as suas obras como pele e ossos, tinha sentido acreditar que deus está nos detalhes, pois efectivamente era nos detalhes das estratégias, dos programas e das articulações que a obra contrariava a sua simplicidade formal e, na maioria dos casos, material.

Rem Koolhaas, arquitecto holandês cuja obra tem conhecido uma considerável internacionalização, é um dos arquitectos europeus contemporâneos que nos apresenta propostas mais complexas, conceptuais e, daí, polémicas. O próprio discurso do arquitecto, por vezes de uma agressividade algo redutora (Fuck the context, por exemplo), já se tem ocasionalmente sobreposto ao pensamento que fica expresso, por exemplo, em 'S/M/L/XL' e que, independentemente de se concordar ou não, tem uma certa amplitude. A obra construída prima pela exuberância formal, pela independência relativamente ao contexto directo do espaço envolvente e por uma relação estreita com a ideia de movimento, que está presente tanto na organização espacial desses edifícios, como no seu aspecto mais plástico.

Se bem que a junção de todos estes factores possa resultar em que, muitas vezes, as obras de Koolhaas sejam mais notadas pela sua aparência escultórica e geometricamente surpreendente, é verdade igualmente que os seus edifícios estão cheios de detalhes que alimentam tanto a poética como a utilização desses mesmos edifícios. O documentário 'Houselife' de Ila Bêka e Louise Lemoîne mostra precisamente a importância dos detalhes numa obra de Koolhaas, a casa em Bordeaux (França).

Mies Van Der Rohe é uma confessa influência de Rem Koolhaas, mas se a força dos detalhes, para Mies, funcionou como Deus, para Koolhaas acaba por funcionar como o Diabo. A opção dos realizadores deste filme, de filmar a empregada nas lides domésticas, acaba por revelar um pouco aquele que parece ser o objectivo, algo tendencioso, do filme, que é o de mostrar como a casa não funciona.

De facto, a casa de Bordeaux é construída com algumas contingências desafiadoras para o arquitecto, principalmente o facto do cliente ser paralítico. A preocupação em não só garantir como facilitar a circulação do cliente pela casa, que se desenvolve em três pisos, é claramente estruturante ao longo de todo o projecto, que conta com plataformas eleváveis, com como com algum mobiliário pensado especificamente para o handicap do chefe de família. Mas, excluindo este tipo de pormenores, Koolhaas emprega uma série de outros, quer tirando partido de tecnologias várias (caso dos joysticks que controlam a abertura das portas e que respondem perante os alarmes), quer para criar toda uma gramática estética e plástica que em muito definirá a casa (portas circulares, degraus de escadas minúsculos, armários removíveis, bancas de betão, etc).

A grande eficácia do documentário não é, na verdade, a de mostrar a casa ou de a observar do seu ponto de vista mais directo, enquanto obra de Arquitectura. Pelo contrário, são os aspectos mais prosaicos da vida naquela casa que os realizadores pretendem mostrar.

Lídia Jorge afirmava, no seu romance 'A Costa dos Murmúrios' que não é possível suster uma ruína só com a vontade. 'Houselife' poderia muito bem confirmar que também não é possível suster uma casa só com a vontade. É a manutenção da casa de Bordeaux que é mostrada e, então, vemos como os detalhes de Koolhaas se tornam difíceis de utilizar (portas demasiado pesadas, escadas por onde não é possível transportar nada), difíceis de limpar (uma janela acessível só para quem está dentro da banheira), de uma fragilidade excessiva e custosa (um joystick partido implica a inutilização de uma ou várias portas) e até mesmo negligentes (caso dos pequenos degraus da escada que a empregada sobe carregando o aspirador; ou das varandas sem qualquer tipo de guarda).

O que parece ressaltar de 'Houselife' é que, nesta casa, Koolhaas demonstra uma perícia impressionante no que toca a dominar não só a plasticidade da casa (conseguida não só através da concepção do edificado em si, mas também a nível das texturas dos materiais), mas também do controlo irrepreensível dos campos visuais (os cheios e vazios construídos são formas de relacionar os espaços da casa uns com os outros, e também os espaços da casa com os espaços envolventes, criando, efectivamente, uma atmosfera poética no interior da casa). Mas a durabilidade de um edifício é garantida através da utilização e da manutenção que, neste caso, oferecem inúmeras dificuldades e falibilidades. Koolhas exercita o seu virtuosismo, mas, não podendo destacar-se pela eficácia total do trabalho, acaba por destacar-se pela surpresa que causa, como um adolescente talentoso. E, no fim, a casa de Bordeaux acaba por nos sugerir precisamente o título de um dos capítulos deste filme: pas comme il faut.



quinta-feira, 15 de novembro de 2012

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Lei da Bola


Vulgarmente
os amantes desambientam
estes muitos se deram
em troca de bala.

Pequenas bandeiras a meio pau
adejam um rei
no de cabelos chamuscados (Valsa-Se).

Nenhuma construção domina
a paisagem que Há
e não se avista.

Cavalos sim, q.b.,
tão planetariamente cães num flash
que Eu ar
rombo. Pousadas vacas,

com uma só mancha preta
que se pode prolongar,
ninguém está livre de ser apanhado.

Pela sombra.

Regina Guimarães
Anelar, Mínimo
1985, ed. &etc
imagem de Floria Sigismondi


domingo, 4 de novembro de 2012

L'Homme Approximatif IV (fragmentos)



filtre la fleur passoire de clairière
la fraise tourne son oeil gras à l'intérieur matelassé de lèvres
et l'index du pistil touche l'incrédule plaie du ciel
saccagé par les attaques nocturnes des loutres
étendu auprès de nous où les louches équilibristes se laissent tomber
                                                                             [dans le filet
au saule sont accrochés les harnais de la tristesse
que les longues journées d'automne ont graissées avec caresses
                                                                           [de hamac

*

le linge aux flammes blanches rit dans sa langue d'alcool
et l'insecte voiture d'enfant plie bagages et ressorts
il s'en va sur la route imberbe où la parole brode le liège
et l'arbre suce la résine aux gamelles des coeurs torrides

Tristan Tzara
L'Homme Approximatif
(1ª edição: 1931)
2007, ed. Gallimard
imagem de Lazlo Moholy-Nagy

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Elogio de Maria Teresa


Eu que às vezes encontro sem saber porquê
um simples não sei quê em estátuas retratos antigos
de límpidas mulheres desconhecidas
eu que de súbito à primeira vista me apaixono adolescentemente
por essas mulheres mortas mas contemporâneas
de um pobre poeta português do século vinte
levadas até ele talvez por um discreto gesto
às formas e às cores impresso por um homem
que na arte encontrava a única razão de vida
abro a pasta e deparo com o teu retrato
um retrato de passe anos atrás tirado
no sítio suburbano onde primeiro vivemos
e juntos suportámos com surpresa a solidão
de sermos dois e ela só vergar os ombros onde os dias nos poisavam
Conheço outros retratos teus onde também estás viva
um deles bem me lembro estava à minha espera em saint-malo
uma tarde ao voltar do monte saint michel
nesse verão bretão onde então procurava
justificação por mínima que fosse para a vida
numa das muitas fugas de mim próprio
que às vezes empreendo embora antecipadamente certo
de que só pela morte enfim me encontrarei comigo
com todos quantos verdadeiramente amei
alguns desconhecidos e alguns mesmo inimigos
sobretudo sedentos de justiça
de que depois somente de bem morto hei-de dispor daquela paz
que sempre apeteci mas nunca procurei
até por não ter tempo para isso nem sequer para saber
coisas simples como saber quem sou porque ao certo só sei
que muito mais passei naquilo em que fiquei
nem que fossem os filhos ou os versos
que fiquei muito mais naquilo onde passei
como passos na areia no inverno ou repentinas sensações
de me sentir de súbito sensivelmente bem
encher o peito de ar sentir-me vivo
São retratos diferentes de quem foste um breve instante
e nele floriste e apenas não murchaste
por haveres ficado um pouco mais em tais fotografias
Mas há em todos eles uma graça inesperada
a surpresa da corça ou restos dessa raça
que há em ti talvez um pouco mais que nas demais mulheres
expressão sempre surpreendente da surpresa
mesmo até para quem te conhece tão bem como eu te conheço
Se nuns mais do que noutros sem excepção desponta
a madrugada que era e é esse teu riso claro
quem primeiro falou de riso claro
talvez houvesse ouvido a água quando corre sobre os seixos de
um ribeiro
talvez a houvesse visto branca e fresca
mas teve de inventar pra conquistar essa metáfora
quando eu que te ouvi rir não fiz mais do que ouvir
e sei que o som da água imita o teu sorriso
Talvez dentro de séculos se não fale já de ti
coisa aliás sem maior importância
que a de não ter alguém deixado o teu retrato
em qualquer dos museus esparsos pelo mundo
Eu estarei morto e pouco poderei fazer
por ti simples mulher da minha vida
Mas isso não importa importa esta manhã
este bar de milão onde olho o teu retrato
enquanto espero o meu pequeno almoço
saboreio as cervejas em jejum tomadas
e começam de súbito a chegar aos meus ouvidos
inesperados os primeiros acordes do concerto imperador
Se um dia penso porventura te perder
mulher simples recôndita e surpreendente
sobre quem recaiu o peso do meu nome
só então saberei quanto valias verdadeiramente
Estás presente em mim como ninguém
e sabes quão terrivelmente amei e amo outras mulheres
além de ti além de minha mãe
Mas tu tens o meu nome clara rilke tu trocaste
a tua alegre vida irrequieta
no único infeliz dos teus negócios
por um poeta pobre velho e feio como eu
Contigo aprendi coisas tão simples como
a forma de convívio com o meu cabelo ralo
e a diversa cor que há nos olhos das pessoas
Só tu me acompanhaste súbitos momentos
quando tudo ruía ao meu redor
e me sentia só e no cabo do mundo
Contigo fui cruel no dia a dia
mais que mulher tu és já hoje a minha única viúva
Não posso dar-te mais do que te dou
este molhado olhar de homem que morre
e se comove ao ver-te assim presente tão subitamente
Bons dias maria teresa até depois
preciso de tomar o meu pequeno almoço
a cerveja era boa mas é bom comer
como come qualquer homem normal
e me poupa ao perigo de até pela idade
me converter subitamente num sentimental


Ruy Belo
Transporte no Tempo
1973, ed. Moraes
desenho de Elizabeth Eleanor Siddal