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sábado, 26 de setembro de 2015

Outrebleu/ Outremer (2)


Nunca mais nada
será como dantes.
Eis-nos enfim de visita
ao lugar que não havia
onde as árvores se abraçam
até à  nossa asfixia.

Regina Guimarães
Outrebleu/ Outremer
2010, ed. Hélastre
pintura de Michele del Campo

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

salmo I (no dia 25 de abril)


a solidão é a única coisa que continuamos a partilhar
a solidão...
tudo mais é procura inútil
nós não procuramos nada
nós somos o panfleto vivo
contra a descoberta

reivindico perante o deus uma culpa que é só minha...

não _ berrou Luciano, o jogral.
depois disto vociferou uma série de monossílabos irrecuperáveis
mas quem acredita na tua bochecha linda
que está no transístor, na capa, na cassete
e na enseada verde onde o sol lambe as águas

Luciano, meu arroto cor-de-rosa,
podes parar os teus guinchos de esquilo.
podes parar.
reivindico perante o deus uma culpa que é só minha
a culpa que não cegou os meus múltiplos olhos azuis
apesar dos eclipses

onde está a tua consciência cósmica?
não ouves pulsar o coração da terra?
e o arfar da erva?
e o vento que mais uma vez te esculpe?

o teu espaço é limitado pela barriga de uma mãe ciosa
que não ousa parir-te

                                    (II)
bonjour, Monsieur Chloroforme
elle a dit d'un air agacé

Regina Guimarães
Ritos de eterna posse
1974, ed. autor
imagem: Emil Nolde

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Uma iniciativa necessária


Hélastre é o nome da produtora cultural que, desde o final dos anos 70, no Porto, reúne o trabalho de, não só mas principalmente, Regina Guimarães e Saguenail. Os dois têm um extenso trabalho em cinema e vídeo e também em literatura. Numa linha tão discreta que se torna quase clandestina, os trabalhos de Regina e Saguenail têm circulado para um público bastante menor do que lhes seria merecido. Há nessa atitude algo de incorruptível que deve ser elogiado. Quer nos filmes, quer nos livros, há uma completa ausência de cedências. Cada "objecto" produzido pela Hélastre é uma obra de arte do princípio ao fim. No caso dos livros (que foi como, para mim, isto começou), não são só os textos ou os desenhos que são produção artística. O objecto livro é também uma obra de arte, que se articula e se funde na própria natureza da escrita. Em nenhum momento o projecto deixa de ser arte e passa a ser objecto comercial, mesmo ao assumir um formato dito comercial. Há um preço a pagar por estas coisas, claro, nomeadamente uma certa invisibilidade num meio cultural muito arrogantemente elitista e incapaz de se movimentar fora dos parâmetros mais convencionais. Os nossos intelectuais prezam o "marginal", mas não demais: isto não é feitio, é mesmo defeito.
Pouco convencional é também a mais recente iniciativa de Regina Guimarães e Saguenail: a de disponibilizar na internet, integralmente e gratuitamente, as suas obras. A vasta bibliografia de ambos encontra-se já consultável e a filmografia estará completa em breve. No caso de Regina, é de assinalar o ressurgimento de duas peças improváveis: a sua secção na "Antologia de alunos do liceu António Nobre" e ainda o pequeno livro "Ritos de eterna posse", uma edição de autor de 1974, nunca referida nas bibliografias.
Mais do que pouco convencional, esta é uma iniciativa necessária (usando a expressão do arquitecto Keil do Amaral): necessária porque pode ser a forma ideal para que se divulguem e conheçam finalmente duas das obras mais ímpares e interessantes da cultura portuguesa recente. Além de livros e filmes, o site disponibiliza textos dramáticos e textos críticos.



quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Os catacteres góticos


é preciso precipitar o conhecimento da doença.
_entretanto muita nobreza e saltimbancos
como algas que a águas esbofeteia.
a matéria adultera-se dia a dia
recua a cartilhagem ocre das árvores
como uma sonoridade agressiva e impotente.
trompa anal do vento (vergonhas de gente com vergonha)
a ração descorada da tua pele de pêssego e de fases solares.

a primavera chega porque os fariseus a fazem fermentar
abre a boca e fecha os olhos faisões passeiam sobre os fruncos.
a manicure esfrega as pernas friorentas
e sugere um pouco mais de meiguice e má-vontade.
bendita a terra estéril e surda que não lhes paga.

letra e espírito das flores do desmaio.

Regina Guimarães
Abaixo da Banalidade, Abastança
1980, ed. Hélastre
pintura de Anne Bachelier

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Osso Vaidoso: Animal

TENHO VOZ, ÀS VEZES CANTO*

Dificilmente se encontraria em Portugal, nos anos 90, projecto mais arrojado do que o dos Três Tristes Tigres, banda formada por Ana Deus (voz), Alexandre Soares (guitarra eléctrica), Paula Sousa (teclados, abandona a banda depois do primeiro álbum) e Regina Guimarães (letras). Ainda que, após 'Comum' (1998) a banda tenha começado um interregno só pontualmente quebrado, as colaborações entre os membros da banda continuaram.


O projecto Osso Vaidoso volta a juntar Ana Deus, Alexandre Soares e Regina Guimarães, no álbum 'Animal' que, não estando de todo muito distanciado do trabalho dos Três Tristes Tigres, é relativamente diferente. A electrónica que caracterizava os Três Tristes Tigres e que os destacava da cena musical portuguesa, parece agora ter desaparecido, em detrimento de um som muito mais cru e simples, que continua a coadunar-se perfeitamente com a voz fortíssima de Ana Deus.
'Animal' abre com Elogio da Pobreza, com letra de Regina Guimarães, que posiciona os Osso Vaidoso numa realidade muito actual, porque nela ouvimos o prenúncio na penúria, ainda que haja uma mensagem relativamente irónica que funciona como uma esperança: mas há coisas que são minhas, mesmo que levem tudo, eu ainda sou meu. A voz de Ana Deus sabe aproveitar a subtileza da letra numa performance heterogénia e quase romântica. E será nesse registo que a maioria das canções se vão colocar, com mais experimentalismos umas vezes que noutras.
Seguem-se duas canções com letras de Alberto Pimenta, Coca-Cola Song e Ni Ha Rias, que se ajustam perfeitamente à atmosfera de 'Animal'. Aliás, as letras cheias de cacofonias e trocadilhos funcionam muito bem na voz de Ana Deus, que sabe tornar díspares as repetições e tira o melhor partido do ritmo dos versos.
Poligamia tem letra de Valter Hugo Mãe e é, eventualmente, a canção que mais se destaca pela negativa no álbum. A letra pretensamente subversiva nunca deixa de soar previsível e o roçar na ordinarice não a faz subversiva, antes a torna um tanto anedótica, e nem a performance de Ana Deus, irregular e quase descontrolada, nem a brilhante presença suja e excessiva da guitarra eléctrica chegam para fazer valer a canção.
Felizmente, a canção que se segue, Animal, com letra da própria Ana Deus, é uma das melhores do álbum e a canção, sendo menos irregular, tem uma energia muito intensa, com a voz arrastada e suave a intercalar com os solos de guitarra eléctrica, que parecem como que glosas de um mote qualquer que apenas se pressente. A discreta electrónica que se faz ouvir aumenta a estranheza da canção.
Bem Mal é um poema de Charles Cros, adaptado por Regina Guimarães e resulta numa canção fresca e despreocupada que contrapõe eficazmente a atmosfera algo pesarosa da canção anterior. O refrão acaba por ser muito catchy, e, na sua insistência na mesma frase, acaba por se entranhar.
Uma das faixas mais impressionantes de 'Animal' será Matematicamente, em que a voz da Ana Deus parece fazer um diálogo consigo mesma, fazendo uso da espantosa letra que Regina Guimarães escreveu a partir do seu livro 'Dix-Sept Écoutes' (2010). Uma vez mais, regressa-se ao tema da penúria que encontrávamos em Elogio da Pobreza, mas esta letra é mais dramática, e esse dramatismo é reforçado pela melodia violenta que a guitarra eléctrica faz parecer uma espécie de batimento cardíaco que vai acelerando. Dentro ainda do mesmo registo se encontra Cacofonia, mais uma letra de Regina Guimarães, que inclui uma série de jogos fonéticos, que Ana Deus transforma numa performance mirabolante, a derivar livremente da guitarra eléctrica, pesada e frenética.
O Um e o Muito é uma das canções mais contidas de 'Animal', mas é também uma das letras mais curiosas de Regina Guimarães, que parece partir veladamente da canção infantil do chapéu de três bicos e acaba por criar um poema intenso, de uma orientação quase spinoziana, traçada a partir do corpo como forma de relação com os outros. A sonoridade é também um pouco diferente das restantes canções: há várias mudanças de ritmo, alguns sons mínimos a acompanhar a guitarra eléctrica, que é ora alta e impositiva, ora discreta e subtil.
Segue-se Madame, com um poema em francês de Regina Guimarães onde Ana Deus sabe reinventar alguma chanson française, tendência que depois se anula propositadamente um pouco na sonoridade acústica e luminosa, que parece, como Bem Mal, aludir a uma espécie de despreocupação que resulta algo irónica quando ouvimos o texto que está a ser cantado, um tanto sarcástico, sobre a portugalidade e a emigração.
A terminar fica Ponto Morto, uma canção suave mas sorumbática, que ora parece uma canção de embalar, ora revela um experimentalismo que a torna estranha, tirando partido da letra de Regina Guimarães, que retoma o tema do copo como centro sensível que cria uma percepção do mundo e das relações humanas.


Distanciados, portanto, daquilo que eram os Três Tristes Tigres, os Osso Vaidoso são um projecto original e denso, que por trás da relativa simplicidade sonora escondem uma complexidade conceptual impressionante. Ana Deus revela-se não só uma cantora de uma versatilidade extrema, como uma inteligente intérprete para as letras. Destas, destacam-se evidentemente as de Regina Guimarães, que não abdica da qualidade poética que lhe conhecemos dos livros de poesia para se inserir na 'forma' das letras. Se o fado, principalmente a partir de uma certa parte do trabalho de Amália Rodrigues e da totalidade do trabalho de Mísia tem sabido reconhecer a importância das palavras na música, num universo musical exterior ao fado, dificilmente encontraríamos melhor exemplo de um projecto poético fundido num projecto musical. E uma vez mais, fica provada a criatividade dos três membros essenciais da banda, que continuam capazes de inventar e de reinventar, produzindo assim, em 'Animal' um álbum moderno a todos os títulos.




*é um verso de Elogio da Pobreza

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

[Nada mais belo e difícil]





















Nada mais belo e difícil
que os olhos de alguém que olha
assim transformando o mundo
em quarto nunca habitado
e em cama sempre estranha.

Se a cobra nos morde a cauda
e a obra nos morde a corda
por instantes quero ver
como quem já só acorda
por excepção e não por regra.

Do invisível vestida
te arrenego castidade
do destino abusadora.
Pois moro dentro do corpo
onde me aperta a demora.

Regina Guimarães
Cadernos do Eclipse 2 (novembro 2008 a janeiro 2009)
2013, ed. Helastre
imagem de Igor Kozlovsky e Marina Sharapova

A Minha Rua


Uma velha invisível trauteando
no reduto a que chama seu jardim
juízos, juras, injúrias,
sem começo meio ou fim.

Fala de um amor refém
ganindo como se visse
entrar em si o ladrão
sem poder escapulir-se

Da mulher que não tem filhos
se diz que não alcançou...
Que dizer desta surpresa
de só conhecer na vida
as cordas do estendal
esticadas em sobrecarga
para que jamais se enrede
seu cordão umbilical?

Regina Guimarães
Cadenos do Eclipse 1 (junho a outubro de 2008)
2013, ed. Hélastre
pintura de Dario Puggioni

segunda-feira, 4 de março de 2013

Regina Guimarães/ Ana Deus: Roupa Anterior

Justamente a dimensão de letrista de Regina Guimarães parece ser o seu lado mais divulgado. Desde as primeiras experiências nos Três Tristes Tigres, Regina já escreveu letras para os Clã, os Osso Vaidoso, os Nadadores de Inverno, entre outros projectos, muitos deles a par com Ana Deus
Tendo a publicação em livro da poesia de Regina conhecido uma publicação mais regular nos últimos anos (O que, de resto, é de louvar, uma vez que se trata de uma das vozes mais originais da poesia portuguesa surgida nos anos 80.), é interessante o trabalho mais recente da escritora, este também a par com Ana Deus.

'Roupa Anterior' é um pequeno livro manufacturado, que reúne algumas letras de Regina Guimarães interpretadas em vários projectos por Ana Deus. Mais do que compilar trabalhos musicais, esta pequena mixtape escrita e gravada junta uma série de canções feitas para filmes e espectáculos, sendo, portanto, trabalhos eventualmente mais difíceis de encontrar. Lançado no Porto e em Lisboa, o livro/CD é montado pelas autoras, com imagens de Paulo Anciães Monteiro à mistura, sendo, portanto, cada exemplar único e manuscrito.





sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Lei da Bola


Vulgarmente
os amantes desambientam
estes muitos se deram
em troca de bala.

Pequenas bandeiras a meio pau
adejam um rei
no de cabelos chamuscados (Valsa-Se).

Nenhuma construção domina
a paisagem que Há
e não se avista.

Cavalos sim, q.b.,
tão planetariamente cães num flash
que Eu ar
rombo. Pousadas vacas,

com uma só mancha preta
que se pode prolongar,
ninguém está livre de ser apanhado.

Pela sombra.

Regina Guimarães
Anelar, Mínimo
1985, ed. &etc
imagem de Floria Sigismondi


segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Vésperas de Valer


Agora vale tudo mesmo os sintomas
tudo se desprende duma árvore colossal
apenas um espírito felino ameaça não descer.
A copa encantada esconde
um poente de ovos de ouro.
Os cimos afugentam.
Os valores geminados já não trepam
E nas falsas alturas acasala-se o medo.
Uma cruzada de aves descansa num tapete
Um descuido de asas, uma paciência de cartas extremas.

As redondezas entreolham-se com um rigor
Inusitado.

Regina Guimarães
O Extra-Celeste
1991, ed. Hélastre/ AEFLUP
pintura de James Ensor

terça-feira, 8 de maio de 2012

A Farda Rota



Nós que não caímos do céu
perguntamos ao primeiro que aparece.


Quando as lágrimas não chegam
todas juntas a fazer um mar
acabou o quê? O quê acabou.


Acabou o quê e respondemos
era noite à hora de partirmos
brilhava ela qual armadura
sorria qual elmo perdido
da cabeça perdida do guerreiro
peça única deste museu
onde a guerra e eu
começamos atrasados
porque outros chegaram primeiro.


Nós que não caímos do céu nem nos erguemos
rareia o ar à nossa volta e respondemos
era dia no campo de batalha
e noite no acampamento
lanças e panelas
bandeiras e lençóis.
e a se a lâmina for pura
a ferida não tem cura.


A carne reina morta ou viva
tanto faz.

Regina Guimarães
Tutta
1994, ed. Felício & Cabral
desenho de Alberto Péssimo

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Fauvisme



Les villes s'imprègnent des couleurs
que les campagnes ont perdues
ou libérées
-pollens et duvets,
rouilles et argiles
cendres et poussières d'étoiles.


Les villes refoulent des orages
et roulent sur la pente du couchant
cherchant la foudre de leurs dents
telles des oranges sanguines
consanguines.


Les villes déchirent de leurs dents
le chevalet du peintre en promenade
pour offrir aux figures qui les hantent
un paysage à dévorer
d'un seul trait.


Elles font d'une pierre deux coups
et marchandent leur lumière
dans un lexique
haut
en
couleur,
comme on dit.


Cependant,
au coeur immédiat des villes,
toutes les couleurs aspire à l'azur.
D'où cette grisaille
qui les dévêt
souvent sans uns parole.


Un jour
la nuit tombera des arbres
fleur après fleur
feuille après feuille
moineau après moineau.


Alors
nous manquerons de rigueur
mais le temps sera au rendez-vous.


Ta fenêtre, ma fenêtre
sera ouverte
toute la nuit durant
sur des langues inconnues
merveilleusement parlées
par des passants
merveilleusement inconnus.

Corbe (Regina Guimarães )
Lieux Dits
2011, ed. Hèlastre
pintura de Henri Matisse

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Educação do Olhar



Ao príncipe do sexo inconsolável
pedi um espelho.
Mas ele deu-me uma espada
e disse:
na lâmina te mirarás.

Regina Guimarães
Algum(ns) Texto(s) Avesso(s) à Ideia de Obra
in 'Vozes e Olhares no Feminino'
2001, ed. Afrontamento/ Porto, 2001, Capital Europeia da Cultura
desenho de Graça Martins

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Bailado Básico



paralisadaranha da paixão
desfazendo as costuras dos Universo
como o vestido de caxemira da noite
no mais ébrio dos encontros.
provérbio da pedra.


os macambúzios animais parecidos ficaram por baixo
no púbis purpurado de coisas doentiamente diferentes
taberna tenebra galáctica
o belo dálmata cego no coração da água.
ululando o luxo (corações ao alto)
e as lulas luminosas da lua.
a bijuteria dos humanos para estragar muitas festas.


equitação no leito de soluço
o oblongo sabugo da almofada
sifão serial.


epílogos paralelos como as caudas paralelas de lagarto no bilhar da pradaria tautológica.
em cada haste da erva.

Regina Guimarães
Abaixo da Banalidade, Abastança
1980, ed. Hélastre
pintura de Victor Brauner

terça-feira, 18 de outubro de 2011

O Homem do Saco


Uma incontinência de vapores oleará as máquinas que se furtam
aos ritmos colectivos
aos coaxos perfeitos
aos amores volúveis.
O homem do caso lava-se uma vez por século, pensava eu, entre duas colheradas de sopa. No círculo branco debruado de azul flutuavam troços de couve arrepiada: semi-cerrados olhos destrinçavam as rotas: suas rosas, seus ventos. O quadro acima desescrito prolongava-se anormalmente; no círculo marejado de azul (debruado de verde?) pousavam moscas, cabelos, caliça. A íris escapava ao minúsculo labirinto da podridão. Meu olhar, porque me abandonavas?
Era preciso lapidar o homem do saco.

Outras feras felizes devorariam as palavras vãs que de mim fizeram o que fui. Um céu apa-lavrado abater-se-ia sobre o nada que das feras restaria. A felicidade reinaria caso se tomasse O NOVO ESPÍRITO DE CONTRADIÇÃO. No azul e verde dos mapas, as serras encolheriam as garras. A terra em-fim plana enrolar-se-ia num gracioso esgar.

Este peditório reverterá a favor da compra de um saco. O saco será arrematado em leilão público. O comprador do saco percorrerá mundo, enviará postais. Os clichés assombrarão um número razoável de gavetas. Reconciliado com o mundo, voltará o homem com o seu saco despejado.

A lua infestada de cães. O rabo, talvez, entre as pernas. O saco, decerto, às costas.

Nas ruínas respira-se o futuro do passado. As ruínas rimam com violadores, intrusos, visitantes. Nelas se perde e reorganiza o sentido plástico. As formas ferozes debruam-se de cor-dura, as vacas emagrecem a olhos visto e quem tudo pode, tudo vomita. Golfadas de crepúsculo lavam as pedras que sabem banir os objectos do sacrifício. Nas ruínas corre o leite das mamas moles das madrastas.

Regina Guimarães
in 'Ruínas'
1990, série 'Elogios', Quatro Elementos editores
colagem de Raoul Hausmann

domingo, 12 de junho de 2011

A Mal Acabada 6

E tudo nasce de tão mudo
gritando
entre dois instantes de tristeza
ou de estudo

Acordo estranha a mim
como fato esquecido num roupeiro
e saio da cama
sabendo o muito que fica
por despertar


Regina Guimarães

A Mal Acabada

2011, ed. Hélastre

quarta-feira, 30 de março de 2011

Ângelo de Sousa, 1938-2011


Sempre riscaste brancuras

te manchaste de marfins

pois sem ferida ...a cor não fora.

E o resto se lavava e deslavava

em manhã de barrela e nódoa

dessa luz do que não há

na tela a toda a trama ensaboando

buscando o timbre de outras primárias

luz sobre luz sobre luz sobre sombra.


Agora que rompeste a convenção do negro

e nos deixaste sem geometria de amar

estou certa de que acharás

a mão de mil dedos

o quadrado da rosa

o pássaro em seu infinito trapézio

o rio onde não falta a terceira margem

o triângulo manco de torso em osso

a fonte que é eterna

por se beber a si mesma.


Mas será que encontrarás a nossa sombra

e a resgatarás de ser anã

por entre ramos gigantes

tornando-a furta-cores

e ladra de luz

canina

agarrada às canelas do mendigo

ao cu do rico

ao caudal da multidão

como uma fotografia

instantaneamente perpétua.

Eu te imagino oscilante

como sorriso que não quer apagar-se

porque ainda morde

e lembro

a tua beleza incorrigível

de vermelho e recém-nascido

Regina Guimarães,

O Pintor Morreu

quinta-feira, 17 de março de 2011

Ferida Consentida



Textos de "Um Beijo Dado Mais Tarde" (1990) de Maria Gabriela Llansol, ditos por Regina Guimarães e cantados por Ana Deus. Guitarra de Alexandre Soares.

sexta-feira, 11 de março de 2011

O Antes Peso da Cinza


no tempo em que os animais falavam
ficávamos ímpares de monotonia
na margem.
o barqueiro das evidências depunha-nos aos pés mais um morango cinzento
que nos dizia ainda respeito na espera e na maternidade desconhecida.
sob a sebe de damasco amarelo e dourado da orla da colina
os carteiros descreviam arcos de sub-nutrição e de paixoneta
ferindo os tímpanos da chuva com o embrião da roda da bicicleta suprema.
enquanto flatulentos flirtavam tubarões na tranquilidade.

por mais que não nos queiramos impedir
assiste-nos a dor:
a tampa do bule tem a sua circunferência,
na tampa do bule reproduz-se o lírio das tuas nádegas fumegantes.
assiste-nos anterior a ânsia.
Regina Guimarães
Abaixo da Banalidade, Abastança
1980, ed. Hélastre
desenho de Henry Moore

sexta-feira, 4 de março de 2011

Regina Guimarães: Caderno do Regresso

A CASA ETERNA


O percurso poético de Regina Guimarães tem sido intensivo, e proporcionalmente monosprezado. Apesar de me parecer que se trata de um dos casos de maior originalidade na nossa poesia, por várias razões, a sua obra tem passado um tanto despercebida. O motivo maior, diria eu, será a natureza das suas edições. Além de ocasionais passagens por editoras comerciais mas de culto -caso da &etc e da Felício & Cabral- a maioria dos livros de Regina encontram-se editados pela Hélastre, produtora cultural que a própria dirige, juntamente com o marido, o realizador e escritor Saguenail. E o que o trabalho da poeta ganha em liberdade perde depois em visibilidade. Isto não será uma questão de grande importância, pois sabemos que a visibilidade depende de factores acima de tudo arbitrários. No entanto, parece-me que falta, definitivamente, um trabalho crítico sério sobre a poesia de Regina Guimarães, existindo apenas alguns ensaios mais extensos sobre ela, como é o caso de "Uma Poética do Devir", de Maria de Lurdes Sampaio (vd. "Vozes e Olhares no Feminino" ed. Afrontamento/Porto2001, ou então aqui.).
Olhando para trás, esta poesia evoluiu de uma inicial obscuridade, que se fazia sentir nos primeiros dois livros, "A Repetição" (1979) e "Abaixo da Banalidade, Abastança" (1980); para um estilo mais depurado, a partir de "Anelar, Mínimo" (1985). Quando falo destas alterações, refiro-me exclusivamente a questões de escrita, porque, naquilo que a poesia de Regina Guimarães tinha de ideias não se alterou. No seu livro de estreia, o poema "O Sátiro" (Que podem ler aqui.) parece-me particularmente esclarecedor destas ideias, funcionando como uma espécie de arte poética. Tendo esse poema por contraponto, parece-me claro como, de facto, uma leitura de todos os livros publicados de Regina denotam efectivamente um universo próprio e também uma grande fidelidade aos princípios da autora relativamente à escrita.
Em 1994, chega-nos um livro de absoluta maturidade: "Tutta" será, a meu ver, um dos melhores livros de Regina, de uma firmeza e invulgaridade assinaláveis. Os livros de 2009, "Orbe" e "Cantigas de Amigo/Lady Boom, As Raínhas", ainda que funcionando como conjuntos específicos e auto-suficientes, confirmam o ponto de maturidade inaugurado por "Tutta".



Em 2o1o surge-nos este "Caderno do Regresso", que não pode deixar de surpreender os leitores de Regina. Surpreender por ser uma recolha tão longa de poesia, maior do que qualquer outra editada no passado, contando com 433 poemas. Trata-se de uma recolha de todos os poemas escritos ao longo de um ano, que afinal até nos lança uma ideia aflitiva, porque nos perguntamos quanta poesia de Regina não continua, até hoje, inédita.
Se até hoje, por razões que não me ocorrem, nunca tentei falar um pouco sobre a poesia de Regina Guimarães, não só a edição de "Caderno do Regresso" é uma boa oportunidade para fazê-lo, como o próprio livro é também um excelente caso para ser analisado. Isto porque ele continua uma fase a meu ver iniciada com "Tutta", mas tem como vantagem sobre as recolhas de 2009 o facto de nos apresentar poemas mais autónomos entre si, não funcionando necessariamente enquanto "unidade específica".
Apetece então apontar alguns aspectos desta poesia.
Em primeiro lugar, a relação da poesia consigo mesma. Desde há muito tempo que encontramos aquilo que podemos designar por "artes poéticas", quase todos os autores a têm. Nos anos 90, assistimos a um estranho fenómeno em que muitos poetas dedicam grande parte dos seus poemas à fascinação da e pela escrita poética, "secando" mais ou menos todos os outros assuntos. Regina Guimarães sempre teve nos seus livros muitos poemas que analisam a relação da poesia consigo mesma. No entanto, não estamos aqui perante essa pose de fascinação. Pelo contrário, a presença dessa "arte poética" tem uma muito válide justificação: a de que o sujeito poético, o "eu" ou os vários "eus" desta poesia se relacionam com o mundo através da poesia. Isolo aqui dois fragmentos que me parecem particularmente elucidativos quanto a isto:

"(...) falo sozinha
numa linguagem de jamais
e já não minha"
(pag.25)


"Combato com a língua
para não sufocar disto e disso."
(pag.48)


estes dois fragmentos mostram-nos, em primeiro lugar, essa relação umbilical com a linguagem. Reparemos que ela é uma relação do indivíduo consigo mesmo, no primeiro, e é uma forma de luta pela sobrevivência, no segundo. São questões importantes para entender a poesia de Regina Guimarães. Em primeiro lugar porque não podemos esquecer que, como aliás lemos no prefácio de Saguenail, a escrita é para Regina um acto quotidiano, de todos os dias, e, portanto, uma espécie de respiração. Ainda, no primeiro fragmento, é de notar que Regina assume a linguagem como algo de individual, mas ao mesmo tempo aberto, ou seja, essa "linguagem de jamais", que nasce, que se reinventa ao ser escrita, torna-se depois "já não minha", ou seja, escapa dos sentidos com que foi escrita para ser lida por outros, que lhe encontrarão outros sentidos. Esse jogo de liberdade poética é, afinal, uma das bases essenciais da poesia.
Avançando para a questão do "combate", proposta pelo segundo fragmento, ele aponta-nos para uma das mais importantes componentes desta poesia, que é a dimensão política. Política, entenda-se não como panfletária ou sequer partidária, mas como discurso que continuamente questiona o sistema vigente, a sociedade, a organização de tudo. A poesia de Regina insurge-se não raras vezes contra essa aceitação ao imposto, revelando-se então interventiva e até subversiva, se quisermos aceitar que esta palavra ainda "exista". A poesia aparece-nos então como uma forma de apresentar novas visões do mundo, como alternativa. Isso fica bem explícito quando lemos

"Ao mundo acrescentas mundo
entre palavras e pausas"
(pag.39)

Poderíamos perguntar-nos se a poesia de Regina Guimarães não se trata de uma busca da utopia. Eu penso que não. O que encontramos, politicamente, nestes textos não é a criação de uma realidade idealista e impossível. É, isso sim, uma incitação a que não aceitemos as coisas apenas porque elas nos são propostas, mas que procuremos ter o nosso olhar sobre elas, um olhar próprio e bem definido.
A inquietação que Regina sente em relação ao estado das coisas é que a leva a "ao mundo acrescenta[r] mundo", um outro mundo.
Como defendi na introdução deste texto, a poesia de Regina Guimarães vem de uma espécie de obscuridade a evoluir para uma maior clareza. Repito no entanto que não estamos perante uma poesia fácil de ler, principalmente dada a sua estranheza, estranheza que me parece neste caso ser sinónimo de originalidade. Além disto, já acima expliquei a questão da leitura aberta. Conjugando estes dois pontos, encontramos então a aceitação dessa incerteza que nesta poesia é essencial. Atentemos neste fragmento:

"As palavras desfazem-se em promessas
que se cumprem e se traem a um tempo
abrindo porta a porta o pensamento
(...) e gozamos o prazer de violar
segredos que nos foram confiados.

usamos, sem pudor, até ao fio
o denso véu de mistério
que morava em cada nome."
(pag.286)

aqui se entende, penso, o que significa essa incerteza: é a propriedade que a palavra tem de, a um tempo, se cumprir e se trair. Assim sendo, o poema pode ser lido e entendido por outros, mas a ideia que o gerou fica apenas no seu autor, não sendo certo se será a mesma ideia a do leitor. E é por isso então que encontramos também esta ideia:

"o que se escreve então
faz-me o imenso favor
de não haver quem o leia
ou de não se poder ler"
(pag.284)

A possibilidade de ler é um dos princípios da poesia. E se esta nos soa tão invulgar, é necessário entender porquê. Não me parecem muito claras as influências desta escrita. Poderíamos aqui e ali encontrar algumas influências do Surrealismo, mas não é possível afirmar que esta é uma poesia surrealista, ou sequer tardo-surrealista. Nos seus momentos mais bizarros, será quando muito surrealizante. Algum simbolismo também não deixa de aqui marcar presença, mas também não é suficiente para definir nada. Penso que o que é necessário é entender que o sistema de referências que aqui existem têm muito mais a ver com elementos que, sendo talvez mais frequentes em todos nós, acabam por se tornar mais inesperadas quando aqui as encontramos. Acima de tudo, é a questão da infância e dos seus fantasmas que me parece a matriz de tudo isto. E esses fantasmas passam frequentemente pelo texto bíblico, pela tradição oral e pelas histórias mitológicas e também a descoberta das possibilidades das palavra, marcadas pela fala, pela oralidade. É difícil encontrar um poema em que não encontramos pelo menos um destes elementos. Mas o que vem tornar a poesia de Regina muito mais do que uma mera sistematização de conceitos é o tratamento que eles recebem, pois nunca existe aqui uma perspectiva historicista mas precisamente uma espécie de anacronismo, em que todos esses elementos são transportados para uma realidade contemporânea que são capazes de explicar.


Por assim dizer, a poesia de Regina coloca-nos perante um mundo doentio e decadente, que é o nosso, e coloca a poesia como reverso desse mundo, analisando-o por meio das referências que nos são comuns e mostrando-nos que a nossa ideia de evolução não é a mais correcta, pois mais não fazemos que repetir o nosso passado e os nossos arquétipos. Mas, ao invés de se tornar uma poesia amargurada na sua acusação, Regina prefere o lado subtilmente irónico. Reparemos, aliás, que, como acima disse, o poema de "A Repetição" que podia ser a primeira arte poética de Regina Guimarães se chama "O Sátiro". Penso que este esquema é precisamente o que aqui há de mais original. Ela mesma assume essa postura quando nos diz

"De mim não esperes espírito
nem frases finas como ponteiros"
(pag.27)

Interessa-me ainda reflectir um pouco sobre o título deste livro. "Caderno do Regresso" parece-me conter realmente duas ideias essenciais, duas linhas de força para entender a atitude poética de Regina Guimarães: a primeira é a do "caderno", como se este livro se tratasse de um caderno de apontamentos, onde os poemas vão sendo apontados, um quase-diário (Para usar a expressão de Yvette Centeno.). A outra ideia é a do "regresso" que quase intuitivamente diríamos que contraria essa ideia do "caderno", uma vez que o regresso pressupõe um abandono prévio, e o caderno pressupõe uma constância. Mas não há aqui essa contradição. Como acima disse, a poesia é para Regina Guimarães um gesto quotidiano. Por isso a poesia é essa "casa" a que se regressa ao longo dos dias, uma espécie de lugar secreto onde o indivíduo se fecha para reflectir sobre o que viveu. Essa é, no fundo, a ideia que encontramos no Eclesiastes, do homem que sempre regressa à sua casa eterna. E a casa eterna de Regina Guimarães parece mesmo ser a poesia.
Resta então entender por que publica tão pouco, por que passam as suas poucas publicações tão despercebidas. Além da explicação que Saguenail nos dá no Prefácio, encontramos esta possível explicação da própria Regina:

"o texto
crucificado na página,
pronto a ser despregado,
envolto em branca mortalha,
colocado no sepulcro,
ressuscitado."
(pag.284)

assim vemos como, de certa forma, o livro mata a poesia. Aproveito aqui para referir um último aspecto que me parece crucial na poesia de Regina: a sua natureza irremediavelmente fragmentária. Os poemas, de certa forma, são estâncias que formarão uma ideia maior, mais completa, mas que está condenada a necessitar sempre de ser continuada e nunca poder ser terminada. É uma escrita viva, que necessita de ser recriada, de ser completada, de sempre crescer. E editá-la na página não deixa de ser assumi-la concluida, "crucificada".
Aparte este senão no problema de editar, só temos que ficar contentes por finalmente termos acesso a uma recolha tão extensa da poesia de Regina Guimarães, uma recolha que bem nos fazia falta para entendermos melhor a sua poesia, e resta-nos apenas esperar que este esquema de publicação, de recolher um ano inteiro de poesia se repita mais algumas vezes.