segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Osso Vaidoso: Animal

TENHO VOZ, ÀS VEZES CANTO*

Dificilmente se encontraria em Portugal, nos anos 90, projecto mais arrojado do que o dos Três Tristes Tigres, banda formada por Ana Deus (voz), Alexandre Soares (guitarra eléctrica), Paula Sousa (teclados, abandona a banda depois do primeiro álbum) e Regina Guimarães (letras). Ainda que, após 'Comum' (1998) a banda tenha começado um interregno só pontualmente quebrado, as colaborações entre os membros da banda continuaram.


O projecto Osso Vaidoso volta a juntar Ana Deus, Alexandre Soares e Regina Guimarães, no álbum 'Animal' que, não estando de todo muito distanciado do trabalho dos Três Tristes Tigres, é relativamente diferente. A electrónica que caracterizava os Três Tristes Tigres e que os destacava da cena musical portuguesa, parece agora ter desaparecido, em detrimento de um som muito mais cru e simples, que continua a coadunar-se perfeitamente com a voz fortíssima de Ana Deus.
'Animal' abre com Elogio da Pobreza, com letra de Regina Guimarães, que posiciona os Osso Vaidoso numa realidade muito actual, porque nela ouvimos o prenúncio na penúria, ainda que haja uma mensagem relativamente irónica que funciona como uma esperança: mas há coisas que são minhas, mesmo que levem tudo, eu ainda sou meu. A voz de Ana Deus sabe aproveitar a subtileza da letra numa performance heterogénia e quase romântica. E será nesse registo que a maioria das canções se vão colocar, com mais experimentalismos umas vezes que noutras.
Seguem-se duas canções com letras de Alberto Pimenta, Coca-Cola Song e Ni Ha Rias, que se ajustam perfeitamente à atmosfera de 'Animal'. Aliás, as letras cheias de cacofonias e trocadilhos funcionam muito bem na voz de Ana Deus, que sabe tornar díspares as repetições e tira o melhor partido do ritmo dos versos.
Poligamia tem letra de Valter Hugo Mãe e é, eventualmente, a canção que mais se destaca pela negativa no álbum. A letra pretensamente subversiva nunca deixa de soar previsível e o roçar na ordinarice não a faz subversiva, antes a torna um tanto anedótica, e nem a performance de Ana Deus, irregular e quase descontrolada, nem a brilhante presença suja e excessiva da guitarra eléctrica chegam para fazer valer a canção.
Felizmente, a canção que se segue, Animal, com letra da própria Ana Deus, é uma das melhores do álbum e a canção, sendo menos irregular, tem uma energia muito intensa, com a voz arrastada e suave a intercalar com os solos de guitarra eléctrica, que parecem como que glosas de um mote qualquer que apenas se pressente. A discreta electrónica que se faz ouvir aumenta a estranheza da canção.
Bem Mal é um poema de Charles Cros, adaptado por Regina Guimarães e resulta numa canção fresca e despreocupada que contrapõe eficazmente a atmosfera algo pesarosa da canção anterior. O refrão acaba por ser muito catchy, e, na sua insistência na mesma frase, acaba por se entranhar.
Uma das faixas mais impressionantes de 'Animal' será Matematicamente, em que a voz da Ana Deus parece fazer um diálogo consigo mesma, fazendo uso da espantosa letra que Regina Guimarães escreveu a partir do seu livro 'Dix-Sept Écoutes' (2010). Uma vez mais, regressa-se ao tema da penúria que encontrávamos em Elogio da Pobreza, mas esta letra é mais dramática, e esse dramatismo é reforçado pela melodia violenta que a guitarra eléctrica faz parecer uma espécie de batimento cardíaco que vai acelerando. Dentro ainda do mesmo registo se encontra Cacofonia, mais uma letra de Regina Guimarães, que inclui uma série de jogos fonéticos, que Ana Deus transforma numa performance mirabolante, a derivar livremente da guitarra eléctrica, pesada e frenética.
O Um e o Muito é uma das canções mais contidas de 'Animal', mas é também uma das letras mais curiosas de Regina Guimarães, que parece partir veladamente da canção infantil do chapéu de três bicos e acaba por criar um poema intenso, de uma orientação quase spinoziana, traçada a partir do corpo como forma de relação com os outros. A sonoridade é também um pouco diferente das restantes canções: há várias mudanças de ritmo, alguns sons mínimos a acompanhar a guitarra eléctrica, que é ora alta e impositiva, ora discreta e subtil.
Segue-se Madame, com um poema em francês de Regina Guimarães onde Ana Deus sabe reinventar alguma chanson française, tendência que depois se anula propositadamente um pouco na sonoridade acústica e luminosa, que parece, como Bem Mal, aludir a uma espécie de despreocupação que resulta algo irónica quando ouvimos o texto que está a ser cantado, um tanto sarcástico, sobre a portugalidade e a emigração.
A terminar fica Ponto Morto, uma canção suave mas sorumbática, que ora parece uma canção de embalar, ora revela um experimentalismo que a torna estranha, tirando partido da letra de Regina Guimarães, que retoma o tema do copo como centro sensível que cria uma percepção do mundo e das relações humanas.


Distanciados, portanto, daquilo que eram os Três Tristes Tigres, os Osso Vaidoso são um projecto original e denso, que por trás da relativa simplicidade sonora escondem uma complexidade conceptual impressionante. Ana Deus revela-se não só uma cantora de uma versatilidade extrema, como uma inteligente intérprete para as letras. Destas, destacam-se evidentemente as de Regina Guimarães, que não abdica da qualidade poética que lhe conhecemos dos livros de poesia para se inserir na 'forma' das letras. Se o fado, principalmente a partir de uma certa parte do trabalho de Amália Rodrigues e da totalidade do trabalho de Mísia tem sabido reconhecer a importância das palavras na música, num universo musical exterior ao fado, dificilmente encontraríamos melhor exemplo de um projecto poético fundido num projecto musical. E uma vez mais, fica provada a criatividade dos três membros essenciais da banda, que continuam capazes de inventar e de reinventar, produzindo assim, em 'Animal' um álbum moderno a todos os títulos.




*é um verso de Elogio da Pobreza

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