CONDE ORLOK EM NEGATIVO
Não passa de uma opinião pessoal minha que, no geral, a grande maioria do bom cinema que se produz actualmente, produz-se na Europa. Hollywood pode tentar ser intelectual e sensível pontualmente, mas é raro que se encontre um realizador cujo projecto pudesse ombrear com o de alguns cineastas europeus, como François Ozon, Agnés Varda, Chantal Ackermann, Eric Rohmer, Pedro Almodovar ou Manoel de Oliveira, isto só para citar os exemplos mais evidentes, excluindo projectos mais alternativos, de um nível de conceptualização ou de conseguimento artístico (essa vertente torna-se cada vez mais secundária) que se torna um desafio para qualquer espectador que esteja habituado, e difícil é não o estar, a um modelo hollywoodesco. Refiro a este título os nomes de Sergei Saguanail Abramovici, Regina Guimarães, António da Silva ou Nicolas Provost, só a título de exemplo. Hollywood, ou pelo menos o cinema americano, não deixam de contar com realizadores muito atípicos que, apesar de tudo, têm sabido permanecer artistas num meio que se torna cada vez mais de mercadores. David Lynch, Woody Allen, Harmony Korine e Larry Clark são, uma vez mais, apenas exemplos.
No que ao cinema de horror diz respeito, o caso é, no entanto, muito diferente. O cinema europeu, pelo menos desde a época de ouro de 'Nosferatu' (1922), não tem tentado (e quando tenta, acaba por falhar) produzir um filme de horror que dê mostras do que uma sensibilidade exterior à americana pode fazer neste género específico. O cinema de horror, talvez devido à conotação com o comercial a que tem sido votado desde há largos anos para cá, continua sendo produção essencialmente americana: quer nos casos mais mainstream, quer no caso do cinema independente. O cinema japonês tem sido uma das maiores falácias no que toca ao cinema de horror. Excepção feita a exemplos como 'Ringu' (que originou a versão americana de Gore Verbinski, 'The Ring'), a maioria do cinema japonês que se classifica na Europa e na América como cinema de horror, não é cinema de horror. É gore, é extreme-gore, é violento e explícito, mas isso continua a ser diferente de ser um filme de horror. Basta lembrar que alguns dos exemplos mais bem conseguidos de cinema de horror não têm pingo de sangue, nem entranhas à mostra, nem violência física. Não me canso de dar o exemplo de 'Session 9' (2001) de Brad Anderson, mas podemos também pensar na extrema contenção de um filme como 'Halloween' (1978) de John Carpenter ou até de 'Jeepers Creepers' (2002) de Victor Salva.
O filme que tem tornado conhecido o realizador holandês Tom Six também não será, por um lado, um exemplo de um filme de horror europeu. 'The Human Centipede' (2010) passou inicialmente despercebido mas tem entretanto conhecido alguma fama como proposta de alguma originalidade. E quanto a originalidade, não haja dúvida que este filme a tem.
O começo é como o começo de centenas de filmes de horror e de géneros semelhantes. Duas raparigas americanas, Lindsey (Ashley C. Williams) e Jenny (Ashlynn Yennie) encontram-se de férias na Alemanha, e perdem-se na orla de um bosque a caminho de uma festa, quando o carro que conduzem avaria. Acabam por caminhar pelo bosque, e encontram uma casa isolada. Pedem ajuda ao sinistro dono, Josef Heiter (Dieter Laser), que acaba por drogá-las. Quando acordam, estão na companhia de um jovem japonês (Akihiro Kitamura) e o dono da casa, cirurgião especialista em separar siameses, explica-lhes o seu projecto de fazer uma operação contrária: juntar vários seres humanos numa espécie de centopeia, ligados através do sistema digestivo, numa ligação boca-ânus. As três vítimas esforçam-se por escapar, Lindsey inclusivamente consegue fugir mas, após uma perseguição absolutamente angustiante pela enorme casa do médico, é recapturada e Heiter consegue levar avante a sua cirurgia. As nádegas do turista japonês são costuradas à boca de Lindsey, cujas nádegas, por sua vez, são costuradas às de Jenny.
Enquanto os três sentem a condenação a que não conseguirão escapar, Heiter esforça-se por treinar a sua centopeia humana, enquanto tenta que os seus componentes se conformem com a sua condição. Quando a polícia aparece à procura das turistas desaparecidas, a fuga parece próxima, mas acaba por falhar uma vez mais.
Logo pela sua sinopse, este filme está carregado de uma série de elementos que garantem que seja nauseante e arrepiante, roçando até um certo nível escatológico que o torna extremo e de visionamento delicado. Mas a premissa é criativa. Tom Six parece partir de uma espécie de complexo Frankenstein para imaginar uma criatura, mas aquilo que de mais intenso a criatura tem é a forma de vida dos seres humanos que a constituem. Logo por isso, o filme está já muito conseguido. Não se trata, no entanto, em rigor, de um filme de horror. Uma vez mais, estamos perante uma película asquerosa e revoltante, mas o factor medo não é a primeira forma de relação do espectador com ela.
O que realmente traz este filme para o registo do horror é a realização, extremamente sensível. Mesmo que o início esteja filmado de uma forma parcimoniosamente previsível, a verdade é que todas as sequências filmadas dentro da casa recuperam uma imagética glacial e de um ascetismo que assusta, principalmente no contraponto com o procedimento sangrento que o médico prepara. A própria figura de Heiter é, por si só, um elemento do horrível, com a sua bata branca, cujo corte lhe confere um ar de Conde Orlok em negativo, perfeitamente capaz de nos criar um calafrio. A fuga e perseguição de Jenny faz uso não só dos tempos, como dos próprios elementos da casa, que todos parecem existir para lhe oferecer uma saída que, depois, negam. A própria luz invernosa e nevoenta cria uma espécie de cerco psicológico em volta da casa, que reforça a sensação de que aquelas pessoas não têm hipótese.
Importantíssimas também para a eficácia do filme de Six são as prestações dos actores, particularmente das três vítimas, que são de um realismo impressionante no que toca a mostrar o desespero da situação. Acabam por gerar no espectador um sentimento muito extremo de pena ou de piedade. Akihiro Kitamura faz um monólogo, quase no final do filme, inteiro em japonês. E ainda que não consigamos entender as palavras que diz, ele é de tal forma expressivo e compungente que é impossível que o espectador não entenda, no mínimo, a mensagem que ele tenta passar.
Portanto, bem vistas as coisas, ainda que este filme, à partida, não constituísse exactamente um filme de horror, a utilização que Tom Six faz de uma série de recursos deste género, acaba por conferir ao filme os elementos de horror que a sinopse não contém. E inclusivamente, 'The Human Centipede' parece até conter uma espécie de mensagem política, sobre o perigo de nos deixarmos costurar uns aos outros, de perdermos a nossa individualidade ou a nossa identidade, ficando dependentes do sucesso de outros para obtermos o nosso próprio sucesso. Mesmo nessa mensagem, nota-se uma mão extra-hollywoodesca. Tom Six acaba por produzir uma proposta muitíssimo interessante, que merece de facto ser apreciada nos seus detalhes e na sua sensibilidade, que são o seu ponto-de-vantagem em relação àquilo que se está a fazer no cinema de horror actualmente.
O filme que tem tornado conhecido o realizador holandês Tom Six também não será, por um lado, um exemplo de um filme de horror europeu. 'The Human Centipede' (2010) passou inicialmente despercebido mas tem entretanto conhecido alguma fama como proposta de alguma originalidade. E quanto a originalidade, não haja dúvida que este filme a tem.
O começo é como o começo de centenas de filmes de horror e de géneros semelhantes. Duas raparigas americanas, Lindsey (Ashley C. Williams) e Jenny (Ashlynn Yennie) encontram-se de férias na Alemanha, e perdem-se na orla de um bosque a caminho de uma festa, quando o carro que conduzem avaria. Acabam por caminhar pelo bosque, e encontram uma casa isolada. Pedem ajuda ao sinistro dono, Josef Heiter (Dieter Laser), que acaba por drogá-las. Quando acordam, estão na companhia de um jovem japonês (Akihiro Kitamura) e o dono da casa, cirurgião especialista em separar siameses, explica-lhes o seu projecto de fazer uma operação contrária: juntar vários seres humanos numa espécie de centopeia, ligados através do sistema digestivo, numa ligação boca-ânus. As três vítimas esforçam-se por escapar, Lindsey inclusivamente consegue fugir mas, após uma perseguição absolutamente angustiante pela enorme casa do médico, é recapturada e Heiter consegue levar avante a sua cirurgia. As nádegas do turista japonês são costuradas à boca de Lindsey, cujas nádegas, por sua vez, são costuradas às de Jenny.
Enquanto os três sentem a condenação a que não conseguirão escapar, Heiter esforça-se por treinar a sua centopeia humana, enquanto tenta que os seus componentes se conformem com a sua condição. Quando a polícia aparece à procura das turistas desaparecidas, a fuga parece próxima, mas acaba por falhar uma vez mais.
Logo pela sua sinopse, este filme está carregado de uma série de elementos que garantem que seja nauseante e arrepiante, roçando até um certo nível escatológico que o torna extremo e de visionamento delicado. Mas a premissa é criativa. Tom Six parece partir de uma espécie de complexo Frankenstein para imaginar uma criatura, mas aquilo que de mais intenso a criatura tem é a forma de vida dos seres humanos que a constituem. Logo por isso, o filme está já muito conseguido. Não se trata, no entanto, em rigor, de um filme de horror. Uma vez mais, estamos perante uma película asquerosa e revoltante, mas o factor medo não é a primeira forma de relação do espectador com ela.
O que realmente traz este filme para o registo do horror é a realização, extremamente sensível. Mesmo que o início esteja filmado de uma forma parcimoniosamente previsível, a verdade é que todas as sequências filmadas dentro da casa recuperam uma imagética glacial e de um ascetismo que assusta, principalmente no contraponto com o procedimento sangrento que o médico prepara. A própria figura de Heiter é, por si só, um elemento do horrível, com a sua bata branca, cujo corte lhe confere um ar de Conde Orlok em negativo, perfeitamente capaz de nos criar um calafrio. A fuga e perseguição de Jenny faz uso não só dos tempos, como dos próprios elementos da casa, que todos parecem existir para lhe oferecer uma saída que, depois, negam. A própria luz invernosa e nevoenta cria uma espécie de cerco psicológico em volta da casa, que reforça a sensação de que aquelas pessoas não têm hipótese.
Importantíssimas também para a eficácia do filme de Six são as prestações dos actores, particularmente das três vítimas, que são de um realismo impressionante no que toca a mostrar o desespero da situação. Acabam por gerar no espectador um sentimento muito extremo de pena ou de piedade. Akihiro Kitamura faz um monólogo, quase no final do filme, inteiro em japonês. E ainda que não consigamos entender as palavras que diz, ele é de tal forma expressivo e compungente que é impossível que o espectador não entenda, no mínimo, a mensagem que ele tenta passar.
Portanto, bem vistas as coisas, ainda que este filme, à partida, não constituísse exactamente um filme de horror, a utilização que Tom Six faz de uma série de recursos deste género, acaba por conferir ao filme os elementos de horror que a sinopse não contém. E inclusivamente, 'The Human Centipede' parece até conter uma espécie de mensagem política, sobre o perigo de nos deixarmos costurar uns aos outros, de perdermos a nossa individualidade ou a nossa identidade, ficando dependentes do sucesso de outros para obtermos o nosso próprio sucesso. Mesmo nessa mensagem, nota-se uma mão extra-hollywoodesca. Tom Six acaba por produzir uma proposta muitíssimo interessante, que merece de facto ser apreciada nos seus detalhes e na sua sensibilidade, que são o seu ponto-de-vantagem em relação àquilo que se está a fazer no cinema de horror actualmente.
Sem comentários:
Enviar um comentário