sexta-feira, 4 de março de 2011

Regina Guimarães: Caderno do Regresso

A CASA ETERNA


O percurso poético de Regina Guimarães tem sido intensivo, e proporcionalmente monosprezado. Apesar de me parecer que se trata de um dos casos de maior originalidade na nossa poesia, por várias razões, a sua obra tem passado um tanto despercebida. O motivo maior, diria eu, será a natureza das suas edições. Além de ocasionais passagens por editoras comerciais mas de culto -caso da &etc e da Felício & Cabral- a maioria dos livros de Regina encontram-se editados pela Hélastre, produtora cultural que a própria dirige, juntamente com o marido, o realizador e escritor Saguenail. E o que o trabalho da poeta ganha em liberdade perde depois em visibilidade. Isto não será uma questão de grande importância, pois sabemos que a visibilidade depende de factores acima de tudo arbitrários. No entanto, parece-me que falta, definitivamente, um trabalho crítico sério sobre a poesia de Regina Guimarães, existindo apenas alguns ensaios mais extensos sobre ela, como é o caso de "Uma Poética do Devir", de Maria de Lurdes Sampaio (vd. "Vozes e Olhares no Feminino" ed. Afrontamento/Porto2001, ou então aqui.).
Olhando para trás, esta poesia evoluiu de uma inicial obscuridade, que se fazia sentir nos primeiros dois livros, "A Repetição" (1979) e "Abaixo da Banalidade, Abastança" (1980); para um estilo mais depurado, a partir de "Anelar, Mínimo" (1985). Quando falo destas alterações, refiro-me exclusivamente a questões de escrita, porque, naquilo que a poesia de Regina Guimarães tinha de ideias não se alterou. No seu livro de estreia, o poema "O Sátiro" (Que podem ler aqui.) parece-me particularmente esclarecedor destas ideias, funcionando como uma espécie de arte poética. Tendo esse poema por contraponto, parece-me claro como, de facto, uma leitura de todos os livros publicados de Regina denotam efectivamente um universo próprio e também uma grande fidelidade aos princípios da autora relativamente à escrita.
Em 1994, chega-nos um livro de absoluta maturidade: "Tutta" será, a meu ver, um dos melhores livros de Regina, de uma firmeza e invulgaridade assinaláveis. Os livros de 2009, "Orbe" e "Cantigas de Amigo/Lady Boom, As Raínhas", ainda que funcionando como conjuntos específicos e auto-suficientes, confirmam o ponto de maturidade inaugurado por "Tutta".



Em 2o1o surge-nos este "Caderno do Regresso", que não pode deixar de surpreender os leitores de Regina. Surpreender por ser uma recolha tão longa de poesia, maior do que qualquer outra editada no passado, contando com 433 poemas. Trata-se de uma recolha de todos os poemas escritos ao longo de um ano, que afinal até nos lança uma ideia aflitiva, porque nos perguntamos quanta poesia de Regina não continua, até hoje, inédita.
Se até hoje, por razões que não me ocorrem, nunca tentei falar um pouco sobre a poesia de Regina Guimarães, não só a edição de "Caderno do Regresso" é uma boa oportunidade para fazê-lo, como o próprio livro é também um excelente caso para ser analisado. Isto porque ele continua uma fase a meu ver iniciada com "Tutta", mas tem como vantagem sobre as recolhas de 2009 o facto de nos apresentar poemas mais autónomos entre si, não funcionando necessariamente enquanto "unidade específica".
Apetece então apontar alguns aspectos desta poesia.
Em primeiro lugar, a relação da poesia consigo mesma. Desde há muito tempo que encontramos aquilo que podemos designar por "artes poéticas", quase todos os autores a têm. Nos anos 90, assistimos a um estranho fenómeno em que muitos poetas dedicam grande parte dos seus poemas à fascinação da e pela escrita poética, "secando" mais ou menos todos os outros assuntos. Regina Guimarães sempre teve nos seus livros muitos poemas que analisam a relação da poesia consigo mesma. No entanto, não estamos aqui perante essa pose de fascinação. Pelo contrário, a presença dessa "arte poética" tem uma muito válide justificação: a de que o sujeito poético, o "eu" ou os vários "eus" desta poesia se relacionam com o mundo através da poesia. Isolo aqui dois fragmentos que me parecem particularmente elucidativos quanto a isto:

"(...) falo sozinha
numa linguagem de jamais
e já não minha"
(pag.25)


"Combato com a língua
para não sufocar disto e disso."
(pag.48)


estes dois fragmentos mostram-nos, em primeiro lugar, essa relação umbilical com a linguagem. Reparemos que ela é uma relação do indivíduo consigo mesmo, no primeiro, e é uma forma de luta pela sobrevivência, no segundo. São questões importantes para entender a poesia de Regina Guimarães. Em primeiro lugar porque não podemos esquecer que, como aliás lemos no prefácio de Saguenail, a escrita é para Regina um acto quotidiano, de todos os dias, e, portanto, uma espécie de respiração. Ainda, no primeiro fragmento, é de notar que Regina assume a linguagem como algo de individual, mas ao mesmo tempo aberto, ou seja, essa "linguagem de jamais", que nasce, que se reinventa ao ser escrita, torna-se depois "já não minha", ou seja, escapa dos sentidos com que foi escrita para ser lida por outros, que lhe encontrarão outros sentidos. Esse jogo de liberdade poética é, afinal, uma das bases essenciais da poesia.
Avançando para a questão do "combate", proposta pelo segundo fragmento, ele aponta-nos para uma das mais importantes componentes desta poesia, que é a dimensão política. Política, entenda-se não como panfletária ou sequer partidária, mas como discurso que continuamente questiona o sistema vigente, a sociedade, a organização de tudo. A poesia de Regina insurge-se não raras vezes contra essa aceitação ao imposto, revelando-se então interventiva e até subversiva, se quisermos aceitar que esta palavra ainda "exista". A poesia aparece-nos então como uma forma de apresentar novas visões do mundo, como alternativa. Isso fica bem explícito quando lemos

"Ao mundo acrescentas mundo
entre palavras e pausas"
(pag.39)

Poderíamos perguntar-nos se a poesia de Regina Guimarães não se trata de uma busca da utopia. Eu penso que não. O que encontramos, politicamente, nestes textos não é a criação de uma realidade idealista e impossível. É, isso sim, uma incitação a que não aceitemos as coisas apenas porque elas nos são propostas, mas que procuremos ter o nosso olhar sobre elas, um olhar próprio e bem definido.
A inquietação que Regina sente em relação ao estado das coisas é que a leva a "ao mundo acrescenta[r] mundo", um outro mundo.
Como defendi na introdução deste texto, a poesia de Regina Guimarães vem de uma espécie de obscuridade a evoluir para uma maior clareza. Repito no entanto que não estamos perante uma poesia fácil de ler, principalmente dada a sua estranheza, estranheza que me parece neste caso ser sinónimo de originalidade. Além disto, já acima expliquei a questão da leitura aberta. Conjugando estes dois pontos, encontramos então a aceitação dessa incerteza que nesta poesia é essencial. Atentemos neste fragmento:

"As palavras desfazem-se em promessas
que se cumprem e se traem a um tempo
abrindo porta a porta o pensamento
(...) e gozamos o prazer de violar
segredos que nos foram confiados.

usamos, sem pudor, até ao fio
o denso véu de mistério
que morava em cada nome."
(pag.286)

aqui se entende, penso, o que significa essa incerteza: é a propriedade que a palavra tem de, a um tempo, se cumprir e se trair. Assim sendo, o poema pode ser lido e entendido por outros, mas a ideia que o gerou fica apenas no seu autor, não sendo certo se será a mesma ideia a do leitor. E é por isso então que encontramos também esta ideia:

"o que se escreve então
faz-me o imenso favor
de não haver quem o leia
ou de não se poder ler"
(pag.284)

A possibilidade de ler é um dos princípios da poesia. E se esta nos soa tão invulgar, é necessário entender porquê. Não me parecem muito claras as influências desta escrita. Poderíamos aqui e ali encontrar algumas influências do Surrealismo, mas não é possível afirmar que esta é uma poesia surrealista, ou sequer tardo-surrealista. Nos seus momentos mais bizarros, será quando muito surrealizante. Algum simbolismo também não deixa de aqui marcar presença, mas também não é suficiente para definir nada. Penso que o que é necessário é entender que o sistema de referências que aqui existem têm muito mais a ver com elementos que, sendo talvez mais frequentes em todos nós, acabam por se tornar mais inesperadas quando aqui as encontramos. Acima de tudo, é a questão da infância e dos seus fantasmas que me parece a matriz de tudo isto. E esses fantasmas passam frequentemente pelo texto bíblico, pela tradição oral e pelas histórias mitológicas e também a descoberta das possibilidades das palavra, marcadas pela fala, pela oralidade. É difícil encontrar um poema em que não encontramos pelo menos um destes elementos. Mas o que vem tornar a poesia de Regina muito mais do que uma mera sistematização de conceitos é o tratamento que eles recebem, pois nunca existe aqui uma perspectiva historicista mas precisamente uma espécie de anacronismo, em que todos esses elementos são transportados para uma realidade contemporânea que são capazes de explicar.


Por assim dizer, a poesia de Regina coloca-nos perante um mundo doentio e decadente, que é o nosso, e coloca a poesia como reverso desse mundo, analisando-o por meio das referências que nos são comuns e mostrando-nos que a nossa ideia de evolução não é a mais correcta, pois mais não fazemos que repetir o nosso passado e os nossos arquétipos. Mas, ao invés de se tornar uma poesia amargurada na sua acusação, Regina prefere o lado subtilmente irónico. Reparemos, aliás, que, como acima disse, o poema de "A Repetição" que podia ser a primeira arte poética de Regina Guimarães se chama "O Sátiro". Penso que este esquema é precisamente o que aqui há de mais original. Ela mesma assume essa postura quando nos diz

"De mim não esperes espírito
nem frases finas como ponteiros"
(pag.27)

Interessa-me ainda reflectir um pouco sobre o título deste livro. "Caderno do Regresso" parece-me conter realmente duas ideias essenciais, duas linhas de força para entender a atitude poética de Regina Guimarães: a primeira é a do "caderno", como se este livro se tratasse de um caderno de apontamentos, onde os poemas vão sendo apontados, um quase-diário (Para usar a expressão de Yvette Centeno.). A outra ideia é a do "regresso" que quase intuitivamente diríamos que contraria essa ideia do "caderno", uma vez que o regresso pressupõe um abandono prévio, e o caderno pressupõe uma constância. Mas não há aqui essa contradição. Como acima disse, a poesia é para Regina Guimarães um gesto quotidiano. Por isso a poesia é essa "casa" a que se regressa ao longo dos dias, uma espécie de lugar secreto onde o indivíduo se fecha para reflectir sobre o que viveu. Essa é, no fundo, a ideia que encontramos no Eclesiastes, do homem que sempre regressa à sua casa eterna. E a casa eterna de Regina Guimarães parece mesmo ser a poesia.
Resta então entender por que publica tão pouco, por que passam as suas poucas publicações tão despercebidas. Além da explicação que Saguenail nos dá no Prefácio, encontramos esta possível explicação da própria Regina:

"o texto
crucificado na página,
pronto a ser despregado,
envolto em branca mortalha,
colocado no sepulcro,
ressuscitado."
(pag.284)

assim vemos como, de certa forma, o livro mata a poesia. Aproveito aqui para referir um último aspecto que me parece crucial na poesia de Regina: a sua natureza irremediavelmente fragmentária. Os poemas, de certa forma, são estâncias que formarão uma ideia maior, mais completa, mas que está condenada a necessitar sempre de ser continuada e nunca poder ser terminada. É uma escrita viva, que necessita de ser recriada, de ser completada, de sempre crescer. E editá-la na página não deixa de ser assumi-la concluida, "crucificada".
Aparte este senão no problema de editar, só temos que ficar contentes por finalmente termos acesso a uma recolha tão extensa da poesia de Regina Guimarães, uma recolha que bem nos fazia falta para entendermos melhor a sua poesia, e resta-nos apenas esperar que este esquema de publicação, de recolher um ano inteiro de poesia se repita mais algumas vezes.

1 comentário:

Anónimo disse...

Trabalho numa livraria, tenho um cliente que procura o livro "Caderno do Regresso" mas sinceramente não consigo descobrir contactos da editora ou distribuidor a quem pedir o livro. Podem ajudar?Muito grata pela atenção.Maria João Vidigal
(mjvidigal@almedina.net)