terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

O Sátiro


Notei que por ali passava
carnal
uterina
rósea.
e perguntas-me sobre a palidez dos leitos de urze
e beliscas a camisa de algodão
e tremes
e tens o trejeito
dos operários que bufam com escárnio.
nesta cidade
o frio entranha-se nos filamentos corpóreos
galeria de monstros e de clowns.
as cores diluem-se nas fachadas dos cafés
num enorme plasma que transcende o espaço habitado
intensamente percorrido como mais uma arena.

o corpo é-me estrangeiro, às vezes
os resíduos condensam-se
e nauseabundamente
por entre outros gargarejos
apercebem-se do intervalo da nova distância.

o corpo é-me estrangeiro, às vezes.
a pele que o tempo curte
e os incidentes.

apercebo-me de cada pose
de cada um
de cada vários
e reencontro-me.

falavas-me ontem,
e eu senti o teu passo nocturno e cauteloso
como acalentando um lume secreto.
renasces em mim cruel
e remexes no nada.
peço-te que me oiças,
...........o abismo, já o tinha adivinhado!
.............................já o tinha adivinhado!

o teu olhar é argênteo, queres mais?

sempre a partida-regresso a atordoar o ritual da chegada
sempre.
renovo a minha atenção silenciosa sobre as coisas,
como o pouso de uma ave.

sei que vou mais uma vez repelir o pouso
e mitificar o voo
como uma crença toda esvaziada.

as azinheiras erguem os ramos esguios,
como mãos de fada
e debruçam-se sobre os beirais dos muros
acenando ao vento como as mulheres de dantes
e de agora.

os canaviais sugerem-se e isolam-se
numa entoação de cantos metahumanos.
que volatizam os beijos na cara dos astros.

de vibração, o gume e a senda.
da trilogia com quem manuseio mais uma história.
sugerem-se

tudo me parece assim
auto-suficiente
delicado
diluído
cada rio determina a função vegetativa como determina os meandros
e tudo está latente a meus pés.

prometo-me lutar pela clareza
mas não vou compreender a aparência
que se planifica fugaz no irrepreensível no seu trono.

recuso-me e mitifico o voo.

eu sei que as ervas são híbridas
que os trigos irrompem do jóio
e tudo
e não se preocupam.

aqui as casas plantam-se perenes nos laranjais
os homens percorrem-se na orla dos corpos
e partem para viagens esfumadas como eu.

quantas coisas
não se escrevem
nem se escreverão nos taipais brancos.
só a necessidade do branco
e o estilhaço.
...................................................................

procurar abrir uma gaveta
com a chave dentro dela
eis a felicidade intrínseca.

Regina Guimarães
A Repetição
1979, ed. Hélastre
imagem de Floria Sigismondi

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