segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Sermos Nós e Sós


Vi-te rastejante e repulsiva, depois de uma cena
(de puro masoquismo),
implorares-me
por amor de Deus
não me deixes.
Se tu soubesses o quanto me foi constangedora
a tua humilhação.
Como tive de conter-me para não te esbofetear.
Oferecias-te (Judas!)
quando tudo quanto eu desejava era que te enforcasses
perante o meu silêncio -dignamente.
Mentes quando evocas lealdade -"Esse feliz rigor"
Nunca existiu: clareza. Entre nós. Apenas manipulação.
Entendes agora
por que a minha poesia se torna cada vez mais
crua; por que prescindo, nela, de ternas
efusões? -Cara lavada: rugas à mostra: e o tempo
nosso -a idade dos órgãos.
Sem transplantes
cirúrgicos.
Não digas que falo deste modo por nada termos a perder.
Temos -um amor sem retorno.
Indiferente à esperança e ao desespero.
Não há mais nele, como outrora, palavras endurecidas
como um pedaço de ti
na minha boca: só saliva. Sida -gritos de morte.
Envelhecemos
e nem as pequenas e brancas florescências dos nossos
sexos nos redimem: acredita e de uma vez
por todas: "A eternidade
abandonou-nos".


Eduarda Chiote
Órgãos Epistolares
2011, ed. Afrontamento
fotografia de Ralph Eugene Meatyard

1 comentário:

Graça Martins disse...

muito bom o poema da Eduarda,feroz...
a foto acompanha muito bem as palavras.
Beijnho