quarta-feira, 2 de março de 2011

China Doll


Eu ia na passadeira com um propósito mas

a gravata de um homem atirou-me para o coração
do abismo. Uma insuspeitada gravata de seda
com pintas discretas, o catalizador

da vertigem. Aquilo que o vento levantava
na avenida era uma espécie
de música, um barulho de sinos remoto

e descompassado, viam-se algumas flores
a entrar na boca do esgoto como se fosse ali
a casa delas. E sem deixar eco qualquer coisa ruía

nas fachadas, o próprio oxigénio era nesse instante
como uma língua estrangeira. Eu sentia na garganta os tambores
do sangue e os prédios enfadonhos pulsavam
na taquicardia, caíam em desamparo

para a cova do meu peito. Do outro lado da rua
um sinal de trânsito foi a minha âncora.

Rui Pires Cabral
Música Antológica & Onze Cidades
1997, ed. Presença
desenho de Tony Bevan

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